Nota do blog 1: Crédito da imagem para Adriano Tortora.
Nota do blog 2: Abaixo textos sobre o estúdio Foto Brasil.
Texto 1:
"Onde todo mundo ficava bonito"
Durante sete décadas curitibanos puseram traje de gala para tirar retrato na Foto Brasil, o mais famoso estúdio do Paraná.
A ilha do tesouro:
O acervo do Foto Brasil ajuda a contar a história da capital, mas nenhum pesquisador, por enquanto, pode pesquisá-lo. A maior parte do legado dos irmãos Jacobs e de Isaac Kriger está no Museu da Imagem e do Som (MIS), instalado provisoriamente no antigo Conglomerado Banestado, no Santa Cândida. O material chegou ao MIS em 2001, mas até agora apenas os 19.800 negativos em vidro da coleção foram catalogados, além de 15 mil fotos em 3x4.
O motivo da demora é só um: falta verba. O museu procura um patrocinador para a compra de equipamentos, contratação de pesquisadores e demais investimentos, sem os quais o acervo vai permanecer onde está: à espera, nos arquivos de ferro da instituição. Enquanto isso, a direção da casa espera o dia em que vai poder abrir a sala Foto Brasil, com mostra permanente das imagens de noivas dos anos dourados e os retratos de crianças em nove ou 12 poses, entre outras raridades.
Outra parte do acervo pertence à Casa da Memória, órgão da Fundação Cultural de Curitiba. São 10 mil negativos de vidro e películas, uma máquina 18x24, a primeira da casa, além do cavalinho de madeira, uma das marcas registradas da Foto Brasil.
Cronologia:
1921 Os alemães Carl e Laura Jacobs e seus filhos Carlos, Erich, Willy, Walter e Johanna se estabelecem em lavoura de café na região de União da Vitória.
1922 Um dos filhos do casal, Erich, se muda para Curitiba e se emprega na Foto Heisler, na XV de Novembro. Walter também se emprega na Heisler.
1929 Walter muda para o estúdio de Léo Linsmeyer, na rua XV de Novembro, 80.
1930 Erich e Walter instalam o estúdio fotográfico Irmãos Jacobs, na rua XV de Novembro, 94.
1931 O estúdio é registrado com o nome Foto Brasil.
1936 Issac Wolf Kriger se emprega no Foto Brasil.
1946 Incêndio atinge o prédio, destruindo boa parte do acervo. O Foto Brasil se muda temporariamente para a Ébano Pereira, 28.
1954 Morre Erich. Walter, o irmão com quem ainda fazia sociedade, passa a trabalhar sozinho.
1961 Erwin Jacobs, o Bubi, filho de Willy, passa a fazer serviço de retoque na Foto Brasil.
1970 O funcionário Isaac Kriger se associa a Walter, formando a Jacobs, Kriger & Cia. Ltda.
1980 Bubi se torna o terceiro sócio da foto.
1989 Morre Walter Jacobs e cinco meses depois Isaac Kriger.
2001 O Foto Brasil encerra suas atividades.
Fonte: Casa da Memória.
Reza a lenda que na Curitiba da década de 70, quando a cidade passou a receber levas de paranaenses afugentados pela geada negra que dizimou os cafezais, volta e meia se ouvia uma barbaridade do tipo: "O que é essa tal de Foto Brasil da qual vocês tanto falam?"
Nada poderia deixar mais boquiaberto um curitibano da gema do que uma pergunta como essa.
"A gente dizia que quem não tirou um retrato no Foto Brasil não morou em Curitiba", brinca o dentista e professor universitário Leo Kriger, 65 anos, filho do fotógrafo e restaurador Isaac Wolf Kriger, um dos responsáveis pela fama do estabelecimento que durante sete décadas foi o mais famoso do ramo na capital, quando não do estado.
O sonho acabou para o Foto Brasil em 2001, ano em que o último sócio, Erwin Jacobs, o Bubi, hoje com 72 anos, passou a chave na porta e devolveu o imóvel ao senhorio. Não havia mais como continuar. O mundo, um dia visto da famosa sacada do estúdio, tinha mudado muito, deixando para as páginas da história as fotos em chapas de vidro e os minuciosos retoques nos negativos feitos com lápis e uma mistura de breu com terebentina. Mas como diriam os saudosistas, "o tempo não apaga".
O fotógrafo José Kalkbrenner Filho, do panteão dos célebres fotógrafos curitibanos, guarda em casa uma foto de família feita há 73 anos, por suas contas. "As famílias botavam a melhor roupa para tirar fotografia no Foto Brasil. E não era muito acessível para operário, não", diz o veterano, dono de uma máquina com chapas 24x30 cm, que pertenceu aos irmãos Jacobs, fundadores do Foto Brasil. Ele não abre mão, Kalkbrenner e quem mais conheceu o estúdio concordam: o local era uma grife.
Basta puxar conversa com algum bem-aventurado que tirou retrato na loja na rua XV de Novembro, 94, para ouvir em detalhes a descrição da escada de madeira que rangia, a lembrança das fotos de Fanny Lerner, ainda solteira, na vitrine, assim como o retrato "mimoso" do apresentador de TV Sale Wolokita, no comando do cavalinho de madeira que era a prata da casa. Só Deus sabe em quantos álbuns de fotografia figura esse brinquedo. Chegando ao segundo andar, a imagem, atrás do balcão de madeira, era a de Isaac Kriger, com folga tão famoso na Curitiba de seu tempo quanto Maria Polenta, a italiana que consertava ossos. Já Walter Jacobs, fundador da casa, era o sujeito em silêncio na sala de revelação.
Há quem diga que parte da fama do Foto Brasil se deve a Isaac, o judeu-polonês que tocava bandolim, amava música clássica e foi um dos primeiros curitibanos a ter radiola. Em tempo, entrou para a história como o mais apaixonado dos coxas-brancas e como barista amador: mandava buscar café solúvel na Argentina. Tão simpático quanto original, Isaac bem poderia ser um personagem da literatura. Homem pequeno, de 1,5 metro, fugiu da Polônia no início da década de 30, logo que seus pais previram os estragos que seriam causados pela ascensão do nazismo. Antes de partir, aprendeu um ofício, a fotografia, para que pudesse se virar em terra estrangeira. Foi o que lhe valeu. A família acabou toda vitimada pelo Holocausto e Isaac teve de adotar a nova pátria e seus moradores.
Pelo que se sabe, não se intimidou. Não espanta que muita gente fosse ao Foto Brasil para ser atendido por ele, de desembargadores ao garçom do Restaurante Zacarias. Nada mais natural, o pequenino era um show, subia em cadeiras como se fosse Fred Astaire e era capaz de peraltices como esbarrar um espanador no nariz dos bebês para que rissem. Nas horas vagas, fazia trabalho voluntário para a antiga Delegacia de Menores, registrando maus -tratos sofridos por crianças. Mas seu maior trunfo era o restauro e colorização das imagens. Não se trata de um elogio ao vento. Basta olhar uma imagem carimbada pelo Foto Brasil para conferir a qualidade das revelações, a harmonia da composição e a luz inconfundível.
Nenhuma fotografia saía do estúdio sem ser retocada, o que deu ao local a fama de deixar todo mundo bonito, numa época em que não havia o Photoshop. "Se alguém queria uma foto rápida não ia na nossa loja. Ali, ia demorar mais, pois a gente cuidava de cada imagem. Só que sem tirar a barriga, como fazem hoje", explica Bubi, que também trabalhou no restauro. Ele tira da cartola lembranças de clientes extasiados com a própria imagem. "Cheguei a ganhar beijo por causa dos bons resultados."
Não por menos, formavam-se filas na porta do Foto Brasil, ora de formandos, uma das especialidades da casa eram os álbuns e os quadros gigantescos, ora da meninada com roupa de Primeira Comunhão, muitos chegados até a XV depois de comungar na paróquia e enfrentar um ônibus até o Centro, com roupa branca, terço, vela e catecismo na mão. Tinha de pegar senha. Sem falar nas noivas depois da bênção nupcial, debutantes com mangas arfantes antes do baile e famílias inteiras com roupa de domingo em pleno dia de semana. O que se buscava naquele endereço era um retrato para a eternidade. Pelo que se sabe, ninguém saía decepcionado.
"Esse costume só mudou quando as pessoas, em vez de produzir a memória num espaço como o do Foto Brasil, passaram a produzir a memória em casa, com suas próprias máquinas e filmadora", comenta a socióloga Graça Bandeira, pesquisadora do Museu da Imagem e do Som (MIS), onde está parte do gigantesco acervo do Jacobs, Kriger & Cia. A outra parte está na Casa da Memória, órgão da Fundação Cultural de Curitiba e, o melhor da história, nos arquivos familiares de milhares de curitibanos. As provas da existência dessa documentação são flagrantes: álbuns de madeira, recheados com lâminas de papel-foto e papel-arroz, totens de formatura, retratos colorizados e pastas com a inscrição na capa, "Foto Brasil", saltam das gavetas por ai.
A quantidade de pesquisas que esse acervo, o público e o privado, pode render, não se conta na ponta dos dedos. É possível investigar a moda na Curitiba do século 20; as relações familiares, particularmente a hierarquia; padrões de beleza; religiosidade; festejos; além dos processos fotográficos, da lâmina de vidro à era pré-digital. "Até a gestualidade típica de cada época dá para investigar", acrescenta a antropóloga Ana Maria Hladczuk, autora, em parceria com Oksana Boruszenko, do estudo Jacobs, Kriger & Cia, Foto Brasil, publicado no Boletim da Casa Romário Martins em 1991. É um dos raros documentos sobre o assunto. O que é uma pena.
Fotografias ainda são usadas com cerimônia em pesquisas históricas. Não bastasse, é um tipo de fonte que esbarra na falta de informações, já que se acumulam, na maioria das vezes, à mercê da informalidade doméstica. O fotógrafo Orlando Azevedo, que preserva em seu estúdio uma das mesas do Foto Brasil, sabe bem quanto custa um levantamento histórico sobre fotografia. Ele adquiriu o acervo dos irmãos Alberto e Augusto Weiss, pioneiros da arte do retrato na capital, e esbarra na velha dificuldade: a falta da legenda. A ideia é fazer um livro, com parte da coleção com cinco mil chapas de vidro e as histórias da Foto Progresso, plantada de 1880 à década de 80 na Rua São Francisco, onde hoje é o Joker's.
Para levantar o máximo de dados sobre Weiss, Azevedo, fatalmente, mergulhou no universo das fotos de estúdio das primeiras décadas do século passado. Fala com fluência de Bianchi, retratista que fez a vida em Ponta Grossa, Arthur Wischral, do lapeano Glück. Viraram seus velhos amigos. Deles, garante, ficou a lembrança de um tempo em que tirar fotografia era um ritual cercado elegância e de regras. "Havia uma liturgia. O tempo de exposição era grande, não se podia piscar. Pedia-se pose. Os fotógrafos daquele tempo eram ourives do ofício", resume Azevedo, sobre o ouro que Jacobs e Kriger, entre outros, deixaram nos lares curitibanos. Texto de José Carlos Fernandes.
Texto 2:
"Ao Bubi da Foto Brasil, aquele abraço"
Aconteceu na fila do supermercado, dia desses. "O senhor não é o Bubi da Foto Brasil?", perguntou uma mulher para o veterano Erwin Jacobs, 79 anos, vulgo Bubi. Ficou surpreso, de fato. Não esperava, a essa altura, que alguém ainda lembrasse do estúdio fechado em 2001, a seu ver, tempo o bastante para cair no limbo. Ou pelo menos assim quer acreditar. Esse texto é para pedir que reveja seus conceitos.
A Foto Brasil foi criado em 1931, na rua XV de Novembro, 94, pelos irmãos Erich e Walter Jacobs. Cinco anos depois, a dupla de luteranos alemães emprega o judeu polonês Isaac Kriger, um foragido da guerra anunciada, selando a paz universal. Formava-se, aos poucos, a imbatível Jacobs, Kriger e Cia, preferida da freguesia por nada menos do que sete décadas. A Foto Brasil não era a mais barata: era a melhor, razão suficiente para que milhares subissem a escada de madeira que rangia horrores e esperassem a hora de ser atendidos. Sim, fazia fila. De casais, escoteiros, oficiais do NPOR, infantes no dia da primeira comunhão, emergentes e assalariados.
O baixinho Kriger até podia ser a estrela da casa. Uma figura. Se preciso fosse, equilibrava-se na ponta de uma cadeira para conseguir a melhor foto. Tinha se safado de coisa bem pior. Muitos se lembram dele com o espanador na cara das crianças, para que sorrissem, antes ou depois de espirrar. Nas horas vagas, tocava bandolim. Mas, justiça seja feita, 50% da fama da Foto Brasil se devia a Bubi, mesmo sendo um tipo arredio, que gostava de ficar no último andar, fazendo o que a clientela esperava que fizesse, retoques nos negativos com breu, terebintina e lápis, tecnologia disponível na pré-história do photoshop.
Erwin, o Bubi, foi um guri como tantos do bairro São Francisco, reduto da comunidade alemã da Curitiba antiga. Subia o Pico do Marumbi e bem se lembra de suas andanças de mocidade ao lado dos caras que foram o suprassumo daquela geração, gente como o futuro ambientalista Henrique Schmidlin, o Vitamina, e José Kalkbrenner Filho, o Kalk, um dos decanos da fotografia no Paraná.
Quanto a ele, sonhava ser engenheiro agrônomo, trabalhar na Klabin e fazer a vida boa no interior. Foi um projeto, até ser informado de que seu tio Walter precisava dele na Foto Brasil. E nem um pio. Os colegas dos fotoclubes, uma onda, então, dariam piruetas, mas ele se sentiu mandado para a Ilha de Alcatraz. Não dava a mínima para fotografia. Além do mais, tinha o sonho da agronomia e o namoro engatado com a bela Clair Becker, sua vizinha.
O fotógrafo não lembra quem lhe ensinou a fazer retoques, talvez alguma tia que, antes dele, se aventurou pelas lides do pictorialismo. Espécie de pintura sobre a fotografia, esse ofício, em desuso, pode ser definido como uma tentativa ingênua, em tempos idos, de dar status de arte a um processo mecânico, como se fosse preciso. Exige perícia, no que a Foto Brasil não decepcionava. Imagens pintadas, hoje nos acervos do Museu da Imagem e do Som e da Casa da Memória, ficavam expostas nas paredes, deixando a clientela embasbacada com aquelas noivas com panca de Grace Kelly, crianças rosadas como Shirley Temple, todo mundo com cara de rico, feliz e candidato a uma vaga na Metro Goldwyn Mayer. Pictorialismo tinha dessas coisas.
Bubi sentia urticárias a retocar fotos de debutantes. Fazia melhor: retocava, sem uso de cor, as banais fotos 3x4 usadas para matrícula escolar, currículo, documentos em geral. Milagre. Alçou esses retratos funcionais ao status de obra-prima. Todo mundo ficava bonito. Eles, um pão. Elas, um desacato. De modo que as "fotinhas" ganhavam lugar de honra na carteira e, não raro, eram enviadas aos paqueras. Funcionava. Romances nasciam dos ajustes feitos por Bubi. Detalhe, não era mentira. A gente se identificava com o resultado, convencido de que a Foto Brasil tinha captado o nosso melhor momento. Entende? Não raro alguma freguesa se atirava no pescoço do Bubi, agradecida.
"Será que o pessoal não jogou tudo isso fora?" Faça-nos o favor, mestre Bubi. Dá para imaginar o infinito de 3x4 preservados em álbuns e gavetas por aí. Outros estão na lápide dos cemitérios, que ninguém quer passar para o lado de lá com a cara amassada. Com todo o respeito aos agrônomos, se Erwin Jacobs fosse um deles Curitiba teria sido privada do Bubi da Foto Brasil. Nem pensar. Bem dizia o poeta, a vida tem sempre razão.
Mister Bubi:
O fotógrafo não lembra quem lhe ensinou a fazer retoques, talvez alguma tia que, antes dele, se aventurou pelas lides do pictorialismo. Espécie de pintura sobre a fotografia, esse ofício, em desuso, pode ser definido como uma tentativa ingênua, em tempos idos, de dar status de arte a um processo mecânico, como se fosse preciso. Exige perícia, no que a Foto Brasil não decepcionava. Imagens pintadas, hoje nos acervos do Museu da Imagem e do Som e da Casa da Memória, ficavam expostas nas paredes, deixando a clientela embasbacada com aquelas noivas com panca de Grace Kelly, crianças rosadas como Shirley Temple, todo mundo com cara de rico, feliz e candidato a uma vaga na Metro Goldwyn Mayer. Pictorialismo tinha dessas coisas.
Bubi sentia urticárias a retocar fotos de debutantes. Fazia melhor: retocava, sem uso de cor, as banais fotos 3x4 usadas para matrícula escolar, currículo, documentos em geral. Milagre. Alçou esses retratos funcionais ao status de obra-prima. Todo mundo ficava bonito. Eles, um pão. Elas, um desacato. De modo que as "fotinhas" ganhavam lugar de honra na carteira e, não raro, eram enviadas aos paqueras. Funcionava. Romances nasciam dos ajustes feitos por Bubi. Detalhe, não era mentira. A gente se identificava com o resultado, convencido de que a Foto Brasil tinha captado o nosso melhor momento. Entende? Não raro alguma freguesa se atirava no pescoço do Bubi, agradecida.
"Será que o pessoal não jogou tudo isso fora?" Faça-nos o favor, mestre Bubi. Dá para imaginar o infinito de 3x4 preservados em álbuns e gavetas por aí. Outros estão na lápide dos cemitérios, que ninguém quer passar para o lado de lá com a cara amassada. Com todo o respeito aos agrônomos, se Erwin Jacobs fosse um deles Curitiba teria sido privada do Bubi da Foto Brasil. Nem pensar. Bem dizia o poeta, a vida tem sempre razão. Texto de José Carlos Fernandes.