Os 30 Anos do Confisco da Poupança, Brasil - Artigo
Artigo
Até hoje, a jornalista Miriam Leitão, editora de economia do
Jornal do Brasil em 1990, não se esquece da coletiva de imprensa de plano
econômico mais confusa de sua vida.
Foi no dia 16 de março de 1990, um dia depois da posse do
presidente Fernando Collor de Mello, quando, no auditório do Ministério da
Fazenda, em Brasília, ela e dezenas de repórteres participaram de uma coletiva
com a equipe econômica do novo governo, o primeiro eleito pelo voto direto
depois de quase 30 anos.
Naquele dia, o terceiro de um feriado bancário, a ministra da
Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, na tentativa de conter uma inflação de 84% ao
mês, anunciou as medidas de um novo plano econômico, o quarto em apenas cinco
anos. Os três anteriores - Cruzado, em 1986; Bresser, em 1987, e Verão, em
1989, todos no governo do presidente José Sarney - fracassaram na missão de
estabilizar a economia.
"Não temos mais alternativas. O Brasil não aceita mais
derrotas. Agora, é vencer ou vencer. Que Deus nos ajude", declarou
Fernando Collor de Mello, em rede nacional, na manhã do dia 16.
O novo pacote econômico, batizado de Brasil Novo e popularizado
como Plano Collor, incluía, entre outras medidas de estabilização, a troca da
moeda (de cruzado novo para cruzeiro, sem corte de zeros), a criação de um
imposto sobre operações financeiras, o congelamento de preços e salários por 45
dias, o aumento das tarifas de serviços públicos (gás, luz e telefone, entre
outros), a extinção de 24 empresas estatais e a demissão de 81 mil funcionários
públicos.
Nenhuma das 27 medidas anunciadas naquele dia, porém,
surpreendeu tanto Miriam Leitão — e os 149,4 milhões de brasileiros que
assistiram à coletiva em cadeia nacional de rádio e TV - quanto o bloqueio das
cadernetas de poupança.
Cerca de 80% do dinheiro aplicado, não só em cadernetas de
poupança e em contas correntes, mas, também, em aplicações financeiras, como o
famoso "overnight", ficou retido no Banco Central por 18 meses. Estima-se
que o governo tenha confiscado o equivalente a cerca de US$ 100 bilhões, o
equivalente a 30% do Produto Interno Bruto (PIB).
"Na hora da coletiva, senti um misto de revolta e
perplexidade. Sabia que aquele plano provocaria um trauma na população. No fim
do dia, chorei muito. O governo cometeu uma violência econômica muito grande
contra o povo brasileiro. Foi o pior dos planos econômicos já feitos no
Brasil", avalia a jornalista Miriam Leitão que, no livro Saga
Brasileira: A Longa Luta de Um Povo por Sua Moeda (2011), se refere ao
pacote como "arbitrário", "ditatorial" e
"tresloucado".
Do dia 19 de março em diante, correntistas e poupadores,
pessoas físicas e jurídicas, só conseguiram sacar 50 mil cruzados novos, cerca
de R$ 8,3 mil em valores atuais.
O restante seria devolvido, em 12 parcelas iguais, a partir de
16 de setembro de 1991, acrescidas de correção monetária e juros de 6% ao ano.
Na semana da posse do presidente Collor, o ministro da Fazenda
do governo Sarney, Maílson da Nóbrega, decretou feriado bancário de três dias:
14, 15 e 16 de março.
Na terça, dia 13, o presidente do Banco Central, Wadico Bucchi,
deu uma entrevista a Folha de S. Paulo para tranquilizar a população: "A
caderneta de poupança é garantida por dois governos: o que entra e o que sai.
Ninguém vai confiscá-la", garantiu. Na dúvida, correntistas e poupadores
formaram longas filas nos caixas eletrônicos durante o feriado bancário.
Na segunda, 19, a situação nas agências se agravou. Dez milhões
de brasileiros, segundo estimativas da Federação Brasileira de Bancos
(Febraban), queriam tirar dúvidas com o gerente, conferir o valor do saldo ou
sacar o dinheiro da conta.
Boa parte preferiu gastar o que sobrou no supermercado ou
guardá-lo em casa. Em muitas agências, faltou dinheiro para tanta retirada. Por
essa razão, muitos gerentes chegaram a ser presos por não terem dinheiro
suficiente em caixa para pagar os saques de seus clientes.
Em Campo Grande (MS), um agricultor teve um dia de fúria ao
confirmar que seu dinheiro estava bloqueado. Ele tinha acabado de vender uma
propriedade da família e, com o objetivo de pagar os estudos dos filhos,
depositado o dinheiro na caderneta de poupança. Indignado com o confisco,
entrou no carro, avançou na direção de uma agência do Banco Safra e estilhaçou
a porta de vidro.
"O dinheiro aplicado nas cadernetas de poupança não era um
dinheiro qualquer. Para muitos, era a motivação para se viver, o meio para se
atingir um sonho ou a esperança de cura para uma doença grave. Era a garantia
de uma velhice digna ou a chance de ajudar um ente querido em
dificuldade", afirma a jornalista e historiadora Francine de Lorenzo
Andozia, autora da dissertação de mestrado Passaram a Mão na Minha
Poupança - Um Estudo sobre o Impacto do Plano Collor no Cotidiano da População
Brasileira Urbana em 1990 (2019), da USP.
"Ao anunciar o bloqueio das poupanças, a ministra Zélia
confiscou não apenas o dinheiro, mas, também, a dignidade das pessoas",
disse Andozia.
No comércio, a situação não era lá muito diferente. Sem
dinheiro, os consumidores mudaram seus hábitos e as lojas ficaram completamente
vazias. O que não foi confiscado pelo governo era usado para fazer
supermercado, pagar contas e comprar remédios.
Para não fechar as portas, donos de bares e restaurantes
passaram a aceitar cheques e a vender fiado. De Norte a Sul, negócios foram
desfeitos, viagens canceladas, casamentos adiados. O prejuízo, dizem os
especialistas, foi incalculável. E, na maioria dos casos, irreversível.
Um empresário de Blumenau (SC), prestes a expandir seus
negócios, ficou só com uma loja. Endividado, passou a tomar empréstimos e a
hipotecar bens. Não aguentou. Em 1999, aos 60 anos, morreu de infarto. Não foi
um caso isolado. Pelo Brasil afora, milhares de empresários não tiveram como
honrar seus compromissos. Foram obrigados a suspender pagamentos e a demitir
funcionários. A maioria foi à falência.
No dia 19 de março, apenas três dias depois do anúncio do
pacote econômico, um dentista de Campos (RJ) tirou a própria vida, com um tiro
no ouvido. Sua família relatou à polícia que ele caiu em depressão ao saber que
suas economias, depositadas na caderneta de poupança, tinham sido bloqueadas.
Com o dinheiro, ele planejava comprar um apartamento em Niterói (RJ) para os
filhos.
"Não tenho conhecimento de aumento das taxas de suicídio,
que possa ser associado às medidas econômicas. Falências podem ter havido, mas
são parte da dinâmica natural de uma economia competitiva", minimiza o
ex-presidente Fernando Collor de Mello.
"Não foram os eventuais erros, se os houve, mas os acertos
do Plano Collor que possibilitaram a estabilização da economia brasileira. Sem
ele, a contenção da escalada inflacionária e a modernização do país teriam sido
adiadas talvez por anos, com consequências irreversíveis para o desenvolvimento
nacional", disse Collor.
A ministra Zélia não foi a única a participar da coletiva de
imprensa que anunciou o Plano Collor. Antônio Kandir, o secretário especial de
Política Econômica; Eduardo Modiano, o presidente do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e Ibrahim Eris, o presidente do
Banco Central, fizeram parte da mesa.
A escolha de Ibrahim Eris para integrar a equipe econômica,
aliás, se deu da maneira mais inusitada possível. Quem conta é o escritor
Fernando Sabino no livro Zélia, Uma Paixão (1991): "Zélia
pretendia falar com Ibrahim Elias, antigo colega seu, mas a secretária, por
engano, ligou para Ibrahim Eris. - Bom, já que é você - disse ela, surpreendida
-, precisamos conversar".
O livro de Sabino, escrito a partir de informações dadas pela
própria Zélia, traz pelo menos mais duas revelações curiosas: a poupança só foi
incluída no bloqueio no último momento - a princípio, a medida atingiria apenas
as aplicações do "overnight" - e o valor a ser confiscado só foi
decidido na noite anterior ao anúncio, durante uma festa-surpresa no resort
Academia de Tênis, às margens do Lago Paranoá, em Brasília - os valores de 20
mil e 70 mil também foram cogitados.
"Sempre que tem um problema, Zélia gosta de dar uma trégua
para se distrair, deixando o subconsciente trabalhar. Escreveu num papel os
números 20, 50 e 70 e voltou à festa", escreveu Sabino. "Ao
regressar, havia optado pelos 50 mil".
Hoje, será que a ex-ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de
Mello, se arrepende de algumas das medidas tomadas em 1990? Se pudesse voltar
no tempo, faria algo diferente?
"Se pudesse voltar atrás com as informações que tinha
naquele momento, não mudaria nada", avalia a economista. "Trinta anos
depois, provavelmente, não teria tomado algumas medidas e teria tomado
outras", disse a ex-ministra.
O drama de milhões de brasileiros que tiveram seus sonhos
interrompidos pelo Plano Collor ganhou as telas da TV, em novelas como Rainha
da Sucata (1990), de Silvio de Abreu; as salas de cinema, em filmes
como Terra Estrangeira (1996), de Walter Salles e Daniela Thomas; e
as prateleiras das livrarias, em romances como A Felicidade é Fácil (2011),
de Edney Silvestre. Neste, Bárbara é "uma das milhares, se não milhões, de
vítimas do Plano Collor". Aos 17 anos, ela resolve entrar ilegalmente nos
EUA, para ganhar a vida como faxineira e manicure. Ex-correspondente
internacional do jornal O Globo e da TV Globo, Silvestre garante ter conhecido
muitas "Bárbaras" em Nova York, onde morou de 1991 a 2002.
"Suas histórias eram dolorosamente parecidas. Eram
mulheres jovens e bonitas, ex-universitárias de diversos Estados do Brasil, que
tinham abandonado seus cursos por não poderem pagá-los e se sustentavam em Nova
York como call girls", relata o jornalista e escritor.
"A vida de uma pessoa expatriada numa cidade competitiva
como Nova York não tem um pingo de glamour. Na maioria dos casos, elas se
alimentam mal, não dormem direito e vivem com medo de deportação".
Uma pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada no dia 23 de
março de 1990, apenas uma semana depois do anúncio, revelou que 81% dos
entrevistados avaliaram o Plano Collor como "bom".
Em um primeiro momento, o pacote econômico surtiu efeito. De
84%, a inflação despencou para 3%. Mas, por pouco tempo. Em junho, subiu para
9% e, no mês seguinte, voltou para a casa dos dois dígitos: 12%.
À medida que o custo de vida subia, o índice de aprovação do
Plano Collor caía. Em abril de 1990, o Instituto Datafolha registrou 71% e, em
janeiro de 1991, 23%.
Em um misto de raiva e desespero, os cidadãos expressavam sua
insatisfação das mais diferentes maneiras: enquanto uns recorriam à Justiça,
solicitando a restituição de suas perdas no Plano Collor; outros preferiam
escrever cartas indignadas para as redações de jornais e revistas.
"Como eu me sinto? Como um réu que foi julgado e condenado
por si mesmo. Votei no homem e ele me condenou a passar fome", escreveu um
leitor da Folha de S. Paulo, na edição do dia 15 de abril de 1990.
Menos de um ano depois, no dia 31 de janeiro de 1991, a
ministra Zélia Cardoso de Mello lançou um segundo plano econômico: o Collor II.
De nada adiantou.
No dia 10 de maio de 1991, apenas um ano e dois meses depois de
sua nomeação para o cargo, foi substituída pelo economista Marcílio Marques
Moreira.
"O desgaste de Zélia foi muito grande com o bloqueio da
poupança, com questões pessoais e com o fato de ser uma mulher jovem no comando
da economia, mas, principalmente, com a decisão de manter a moratória da dívida
externa.
A pressão dos credores externos (bancos, em especial) e do
governo dos EUA foi enorme e Collor desistiu de manter Zélia", analisa o
economista Carlos Eduardo Carvalho, professor da PUC-SP e autor do artigo As
Origens e a Gênese do Plano Collor (2006).
Desde 1997, Zélia Cardoso de Mello mora em Nova York, onde
trabalha como consultora de economia.
"Até hoje, ouço críticas ao confisco da poupança, mas isto
não tem nada a ver com a minha mudança para os EUA. Na época, eu estava casada
com o Chico Anysio e a decisão de se mudar para os EUA partiu dele, que sofreu
um acidente e, por essa razão, se ausentou da TV por um ano", explica a
economista.
O governo do presidente Collor também teve um desfecho
melancólico. Acusado de liderar um esquema de corrupção, o ex-presidente sofreu
um processo de impeachment e foi afastado do cargo no dia 29 de setembro de
1992. Em seu lugar, assumiu o vice, Itamar Franco.
Depois de renunciar à presidência no dia 29 de dezembro de
1992, Collor de Mello teve seus direitos políticos cassados por oito anos.
Cumprida a punição, conseguiu se eleger senador por Alagoas, em 2006.
"Mais do que a imagem de um jovem idealista e visionário
que assumiu a chefia do Poder Executivo aos 40 anos, gostaria de ser lembrado
como um presidente à frente do seu tempo, que propôs e implementou medidas
duras, corajosas e fundamentais para a modernização do país", afirma o
senador.
Texto da BBC.
Nota do blog: Foi o caos, arrebentaram com o Brasil. E, até
hoje, nenhum deles foi preso...