Vidas Secas 1963 - Vidas Secas
Brasil - 103 minutos
Poster do filme
Vidas Secas é um filme brasileiro de 1963, do gênero drama, dirigido por Nelson Pereira dos Santos para a Herbert Richers. O roteiro é baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos. De acordo com os letreiros inicias, as filmagens foram em Minador do Negrão e Palmeira dos Índios, sertão de Alagoas.
Foi o único filme brasileiro a ser indicado pelo British Film Institute como uma das 360 obras fundamentais em uma cinemateca. Neste filme fica perceptível a influência marcante do neorrealismo italiano na obra do diretor Nelson Pereira dos Santos e o filme se tornou um dos mais conhecidos do movimento chamado de Cinema Novo, que abordava problemas sociais do Brasil.
Em novembro de 2015 o filme entrou na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Foi listado por Jeanne Santos, do Cinema em Cena, como "clássicos nacionais".
Em 1941, pressionados pela seca, uma família de retirantes composta por Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e a cachorra Baleia, atravessa o sertão em busca de meios para sobreviver. Seguindo um rio seco, eles chegam a um casebre abandonado nas terras do fazendeiro Miguel, quando em seguida há uma chuva. Com a recuperação dos pastos, o proprietário retorna com o gado, e a princípio os repele, mas Fabiano diz que é vaqueiro e que a família pode ajudar em vários serviços, então são aceitos. A família tem esperança de prosperar, Sinhá Vitória sonha com uma cama com colchão de couro e Fabiano em ter seu próprio gado. Mas, ao final do primeiro ano de muito trabalho e dificuldades, perceberão que apesar de tudo, a miséria da família persiste e nova seca está para assolar novamente o sertão.
Vidas Secas é um dos filmes que melhor representa as propostas estéticas e políticas do Cinema Novo no Brasil. Nelson Pereira dos Santos, responsável por traduzir Jorge Amado e Machado de Assis para a linguagem cinematográfica apresentou ao mundo uma leitura do romance homônimo de Graciliano Ramos, talvez a melhor produção literária do Romance de 30. Crítico, contundente e com os aparatos agressivos da estética cinemanovista, a trajetória de uma família em constante fuga pelo nordeste brasileiro é bastante atual, algo que infelizmente afirmamos com sensação cada vez menos utópica, principalmente diante do Brasil contemporâneo, mergulhado em suas contradições “de sempre”.
A história não é novidade para qualquer pessoa que tenha ao menos completado o Ensino Médio: Vidas Secas é a saga da família pobre de uma região afetada pela seca, em luta constante para superar a aridez e a hostilidade local. Além destes percalços, os sobreviventes precisam lutar contra algumas instâncias de poder da sociedade, dentre elas, a Igreja e o Estado. Nesta odisseia diária em busca de um trabalho que forneça moradia e comida, a trupe formada por Fabiano (Átila Iório), Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), os dois filhos (menino mais velho e menino mais novo), o papagaio e a cachorra Baleia (personagem de grande impacto e importância para a história) revelam as camadas de desigualdade de uma sociedade desequilibrada.
Diante das suas necessidades, Fabiano implora ao fazendeiro Miguel (Jofre Soares), uma oportunidade. Inicialmente o possível provedor de comida e habitação o repele, mas depois cede espaço, sem deixar, obviamente, de explorar o trabalhador desesperado, numa relação “quase” feudal, salvas as suas devidas proporções. É 1941 e as oportunidades são escassas: Fabiano deseja ter gado para sobreviver, Sinhá Vitória sonha com uma cama confortável, mas com a presença nefasta da seca parece se reaproximar quase um ano depois de muita batalha. Tal como no romance ponto de partida, o ciclo se estabelece e a roda continua a girar. A provável promessa de um lugar melhor para viver é trocada pela necessidade de escapar do clima devastador que traz consigo muita dor e tristeza.
Juntamente com Herbert Richers e Luis Carlos Barreto, o cineasta assumiu a produção do filme, além do desafio que era dar uma roupagem cinematográfica ao romance em questão, ao dirigir e roteirizar. A estrutura crítica se manteve. Como homem das imagens, criador que dispõe de outros códigos, tais como a linguagem verbal oral, os créditos, os sons não verbais (ruídos e efeitos sonoros) e as imagens, Nelson Pereira dos Santos estava ciente do processo de tradução e da impossibilidade de fidelidade, uma maldição que ainda hoje acomete alguns que acreditam na fidelidade da obra cinematográfica em relação ao material literário que serve como ponto de partida. Diante do romance desmontável de Graciliano Ramos, algumas mudanças foram realizadas para atender às necessidades do roteiro: alguns fatos que ocorrem nos capítulos 03 (Cadeia) e 08 (Vila) estão justapostos no filme. Um flashback relativamente importante do capítulo 10 (Contas) ocorre momentos antes. Além disso, o cineasta acrescentou alguns elementos próprios, principalmente as adequações políticas, adaptadas ao seu contexto.
Por meio de uma leitura política, Nelson Pereira dos Santos abrange debates sobre reforma agrária, além da estrutura social brasileira. Em entrevistas, o cineasta alegou que “Graciliano Ramos é um dos romancistas que melhor expressam uma visão consistente da região Nordeste”, complementando que “o que o livro diz sobre o Nordeste em 1938 é ainda válido nos dias atuais”, isto é, em 1963, mas nada muito diferente de 2018, pelo menos no que tange ao desequilíbrio entre as estruturas que erguem a sociedade brasileira, cheia de altos e baixos, poucos ricos e muitos pobres abaixo da linha da miséria. Para o realizador, era necessário discutir estes assuntos, pois na época, muitos setores da sociedade estavam com seus debates afiados.
As suas peculiaridades técnicas não dialogam com o cinema agradável, isto é, com as narrativas esteticamente padronizadas. Não que o cinema de apuro estético formal seja ruim, ao contrário, pode ser extremamente prazeroso e crítico, sem perdas para ambos os caminhos, mas o que Nelson Pereira dos Santos faz em Vidas Secas, juntamente com a sua equipe, com destaque especial para a cinematografia de Luis Carlos Barreto, é incomodar o espectador com a sua câmera que expõe frames que cortam, queimam e traumatizam. Com planos longos, lentos e o calculado uso de diálogos para evitar verborragia e dispersão, o filme toca em seus pontos críticos sem necessitar de “berros”. Há uma sequência que merece destaque, entre tantas, todas formidáveis: na Igreja, os meninos estão espremidos, juntamente com Baleia, durante o ritual católico, o que representa com simplicidade, mas muita força, o caráter pouco convidativo e repressor do ambiente em questão.
Diante das ressonâncias da estética neorrealista, os 103 minutos de filme, realizado entre Minador do Negrão e Palmeira dos Índios, no sertão de Alagoas, deflagram a miséria e o ocaso com as classes menos abastadas através de travellings que revelam bastante do espaço cênico hostil, do constante uso do plano subjetivo para indicar o olhar humanizado da cachorra Baleia, bem como o trabalho sonoro, um dos principais responsáveis pelos momentos de inquietação do filme, haja vista a sua capacidade de se estabelecer como uma espécie de encapsulação de todo o território nordestino, um ambiente que através do violino arranhado e do carro de boi, ganha representações bastante metafóricas na evocação do atraso da região.
Eleito pela ABRACCINE como um dos 100 Melhores Filmes de Todos os Tempos, “honraria” que Nelson Pereira dos Santos divide com outros filmes seus inclusos nesta mesma lista (Rio, Zona Norte e Rio 40 Graus), Vidas Secas é uma produção de 1963 que ainda não envelheceu, pois a necessidade de debate acerca da reforma agrária, da luta contra a miséria e a desigualdade social está no topo da lista de temas que precisam de solução imediata.
Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, baseado na seminal obra homônima de Graciliano Ramos, é dos filmes mais tristes do cinema. Uma tristeza particular, brasileira, nordestina. É sobre a face mais cruel da nossa desigualdade social, um dos elementos formadores do nosso país. Sobre pessoas que vivem abaixo da linha da miséria, vagando de esperança em esperança, sonhando com comida, água, sombra, um par de sapatos, chuva, uma cama para dormir. Os conflitos dos personagens são elementares como é a vida das pessoas no sertão nordestino, que anseiam pelo mínimo para uma existência digna.
Lançado em 1963, antecedeu em poucos meses a Deus e o Diabo na Terra do Sol, o que acabou atrapalhando a trajetória do filme, pois eram muito comparados. O filme de Glauber recebeu aclamação mais imediata que o de Nelson, principalmente no Brasil, o que fez com a recepção de Vidas Secas fosse mais dividida num primeiro momento. Daí se vê que comparações desse tipo nos afastam das discussões mais importantes. São dois filmes brasileiros essenciais, afinal de contas. Talvez não tenham a mesma fama, mas certamente possuem a mesma excelência artística.
Indicado à Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1964, venceu o Prix Cinémas d’Art et d’Essai, do júri da associação francesa de cinemas de arte, o prêmio do júri do Office Catholique Internacional du Cinéma e o Prêmio de Meilleur Film pour la Jeunesse, júri formado por estudantes universitários. Tornou-se respeitado internacionalmente, citado como um dos melhores expoentes do Neo-realismo italiano, sendo publicamente citado por outros mestres como o próprio Glauber, e Jean-Luc Godard. E é importante lembrar que Nelson já tinha no currículo obras muito importantes como Rio 40 Graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957) marcos do início do Cinema Novo.
A obra conta a história de uma família de retirantes no sertão de Alagoas, em 1941. Fabiano (Átila Iório), Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), dois filhos pequenos e a cachorra, Baleia. Em longos planos, poucos diálogos, e sem apego à narrativa tradicional de atos e trajetória de personagens, Nelson traz a secura da escrita de Graciliano para a decupagem e montagem, apresentando sem pressa e floreios a duríssima vida daquelas pessoas com pouca ou nenhuma perspectiva, massacrados pela arbitrariedade das classes dominantes e a desonestidade do patrão.
O diretor manteve-se fiel à obra literária, principalmente em relação à simplicidade da trama. Os eventos têm seu tempo, e acontecem no ritmo da vida daquelas pessoas. Há várias pequenas sequências de ações muito simples, das personagens se relacionando com o espaço cênico e entre si através de olhares e expressões. Essa escolha pode dar a entender que faltam palavras para compreendermos com mais riqueza de detalhes a trama, mas essa ideia se esvai ainda nos primeiros minutos.
Faz parte do conceito da obra uma compreensão do que é o sertão, qual é o seu tempo, temperatura, que condições ele impõe a quem o atravessa. E a aridez (no sentido amplo da palavra) pela qual os personagens passam não se vai uma vez que o incômodo está estabelecido. Ficamos mais tempo, os planos duram mais do que o nosso instinto de preservação demanda, pois naquela realidade o tempo passa devagar, ainda mais quando se caminha horas no calor, com sede, fome e fadiga. Ao vermos o cotidiano banal e sem filtros daquela família, sua caminhada errante ganha peso completamente diferente, distante de arcos dramáticos esquemáticos, e mais condizente com as histórias sobre as pessoas que Graciliano queria retratar. Não há necessidade de querer mais que isso, já é suficiente. Qualquer artificialismo para tornar a história mais reconhecível ou palatável iria contra o cerne da obra.
Exemplo disso também é o corretíssimo uso do som. Sem trilha musical convencional, o som pontua discretamente as dificuldades daquelas vidas através de ruídos diegéticos como o som do carro do boi, ou no acorde de um violino desafinado, como na abertura e encerramento. É um elemento discreto, mas que cumpre papel importante para situar o desconforto daquelas pessoas.
Ao mesmo tempo, a direção de Nelson é bastante precisa e econômica, auxiliada pela concisão da montagem de Rafael Justo Valverde e Nello Melli. Uma vez que se compreende o ritmo das ações é perceptível o quanto o filme é direto ao ponto, com a decupagem estabelecendo com sucesso de quem é o ponto de vista de cada cena, com os acontecimentos na tela sempre sendo compreendidos com simplicidade, de maneira visual. É uma direção simples, mas que tem como base uma compreensão de cinematografia muito avançada. Nelson tem domínio o tempo todo das informações que passa, e o faz no tempo certo, compreendendo as possibilidades que o espaço e seu elenco proporcionavam, estabelecendo sempre uma marcação de cena orgânica aos atores, indiscutivelmente pertencentes à geografia vista na tela. O naturalismo é tão impactante, que muitas vezes parece que se está vendo um documentário. Observe, por exemplo, como são filmados os diversos animais que permeiam a história, em especial os abutres.
Talvez o destaque que primeiro salta aos olhos, a fotografia de Luiz Carlos Barreto e José Rosa realmente salta aos olhos em cada plano. A combinação do preto e branco com o forte contraste ressalta de maneira orgânica e impactante os signos que fazem parte daquela geografia: a forte incidência do sol, a secura do solo, a vegetação da caatinga. Na verdade, poucas vezes o cinema brasileiro viu uma integração tão impressionante entre direção de fotografia, direção de arte (a vegetação labiríntica do sertão torna-o um cenário extraordinário) e elenco. São indivisíveis, dão ricos elementos aos outros, alimentam-se disso, existem por isso, na verdade, criando uma relação palpável, que extrapola o que está na tela. É vivo, real, indiscutível.
Mesmo com poucas palavras, cada personagem tem tempo de tela suficiente para que conheçamos seus desejos, que normalmente tratam-se de anseios muito imediatos. O mundo existe a partir daquelas pessoas, e o jeito de cada uma interfere nos demais. É apenas aquilo que existe, aquelas pessoas naquele lugar. A angústia de cada um é mostrada através das trocas de olhares, ou quando esses olhos não se cruzam, ou quando falam um por cima do outro, ou quando apenas observam com curiosidade uma ratazana (ou seja, almoço) passando. Vale ressaltar a marcante Sinhá Vitória de Maria Ribeiro, com a dor e cansaço de uma vida no olhar, e a participação do então desconhecido Jofre Soares, o fazendeiro, que despontou nesse filme, e mais tarde se tornou um dos maiores nomes do cinema brasileiro. E claro, Baleia, uma cachorra aparentemente ordinária, sem pedigree, mas que rouba o filme em todo plano que aparece, sendo a personagem mais imediatamente reconhecida depois de todos esses anos.
E tudo caminha para a sua inevitável morte. Não tenho receio de dizer que a morte de Baleia é dos maiores momentos do cinema brasileiro. Na verdade coloco dentre outros para ter o mínimo de responsabilidade, pois não consigo imaginar um momento tão impactante quanto este, no nível simbólico e estético. É absolutamente impressionante, coisa de gênio, inesquecível. Uma espécie de síntese do quanto a secura daquelas vidas acaba matando inclusive as coisas bonitas que possuem.
O final também reserva um discurso bastante contundente de Sinhá Vitória sobre a condição de “bicho” que vivem, em que tudo é negado, dificultado ao extremo. É a fala, na verdade, de muitas pessoas que enfrentaram situação parecida nos sertões do nordeste, que inspiraram a obra do escritor alagoano. Nos últimos anos, entretanto, tal discurso foi fartamente acusado de ser vitimista. Em momentos assim, como os que vivemos hoje, obras como Vidas Secas tornam-se ainda mais relevantes, pois contribuem como registro artístico e histórico para a compreensão de que enquanto houver pessoas sem o que comer, onde morar, é inadmissível como ser humano pensar que vitimismo é o oprimido contestar esta condição, e não o privilegiado abrir mão de regalias. E o fato da obra permanecer intacta quanto a sua contundência e relevância comprova que a obra de Nelson e Graciliano é gigantesca na cultura brasileira, mas também revela o quanto precisamos evoluir como sociedade, como seres que possuem empatia uns pelos outros.
Obras como essa tiram pessoas da invisibilidade, mostram ao mundo que elas possuem rosto, dores, e desejos como todo mundo. É a principal ideia do filme, com isso cumprindo papel maior, inclusive, do que a realização técnica dos departamentos. Essa é uma marca do cinema íntegro de Nelson Pereira dos Santos, que entendia que seus filmes poderiam cumprir papel muito maior do que apenas ser uma realização técnica de qualidade. Quando essa honestidade se alia a um dos melhores textos brasileiros, têm-se uma obra que fala sobre o Brasil de um jeito que talvez nunca se tenha visto novamente. Um dos próceres do Cinema Novo - movimento que revolucionou a cinematografia do Brasil na busca de entender o país e seu povo - Nelson Pereira dos Santos conseguiu em Vidas Secas (1963) estampar com rara felicidade a cara do Brasil das décadas de 1930/40 e ser fiel ao livro de Graciliano no que o livro tem de essencial: mostrar a luta do camponês nordestino para sobreviver as agruras do tempo e superar as adversidades impostas por um sistema cruel, onde prevalece a força dos donos da terra.
Mostra a saga da família de Fabiano (Átila Iório) e sinhá Vitória, juntamente com os dois filhos e a cachorra Baleia na busca constante de vida melhor, numa vida árida em terras secas que expulsa a família camponesa do sertão para a cidade grande, para melhorar de vida e dar futuro para os filhos.
O filme manteve a linguagem contida do livro, que neste ano completa 75 anos. Quase sem música, com poucos diálogos, mostra a dureza do sertão encravado na alma dos camponeses, sujeitos a um sistema que os desumaniza e os coloca em posição de inferioridade pela ignorância a que são submetidos. São analfabetos, de poucas palavras, sem grandes horizontes na vida.
Toda o enquadramento das câmeras possibilita ao espectador perceber o quanto o homem é preso à terra e dela tenta tirar seu sustento, mas despossuído e submetido é explorado pelo dono da terra e humilhado pelo poder local dominado pelos coronéis.
Com fotografia sem lentes artificiais, a película transmite a visão clara e seca do camponês que não vê saída e submete-se às ordens e à natureza, sem pestanejar.
Mas nem filme nem livro são desesperançados como escreveu o jornalista estadunidense Vincent Canby, no New York Times. Para ele, o filme é “tão absoluto, tão desesperançado que é não somente um estado de ser, mas também algo tão incompreensível (para alguém que não conhece a realidade descrita) como outra dimensão no tempo”. Segundo Canby, Vidas Secas é “uma chamada para as armas” para combater a pobreza descrita na obra.
A película conseguiu captar a proposta do escritor em mostrar a aridez das relações humanas no sertão e aprofundar a interiorização dos personagens na busca de entender o que não conseguem pela vida que levam e são forçados a se submeter, numa relação dialética entre homem, natureza e o sistema explorador do trabalho.
“Vidas Secas, o filme, foi fiel, na letra e espírito, ao livro de Graciliano Ramos. A mesma concisão, secura, despojamento, poesia, o mesmo tempo – quase silêncio – dos personagens. Que naquela vida de gente-bicho praticamente não se fala, as pessoas também vão se secando internamente”, diz Helena Salem no livro Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. O próprio diretor explica seu modo de trabalhar essa adaptação ao contar que alcançou “uma liberdade formal muito grande” nas filmagens, mas acrescenta que respeitou “integralmente as duas partes da carta”, qual sejam: “nunca desvirtuar o pensamento do autor, respeitar, portanto, a essência do livro, e a segunda parte, não só referente ao condicionamento histórico, mas fazendo o possível para não alterar a estrutura narrativa que o autor elaborou. Isso porque a forma de contar uma história é determinada pela maneira de pensar”, acentua.
Uma curiosidade mostra atualidade da obra. Quando o filme foi representante do Brasil no Festival de Cannes, na França, em 1964, a crítica francesa ficou abismada com a cena da morte de Baleia, muito realista, e acreditou que a cachorra tivesse sido sacrificada de verdade. Os cineastas tiveram que levar o animal para o festival onde, com status de celebridade, a cadela era levada em todas as apresentações dos integrantes do filme. Desfeito o mal-entendido, Vidas Secas foi muito elogiado. Esse fato mostra que essa onda de dar mais valor a bichos do que a pessoas vem de longa data...
Os personagens portam-se quase como bichos, a sua humanidade desaparece em grande parte porque se igualam a bichos, mas apresentam humanidade, ainda que rudimentar, quando mostram seus sonhos, até mesmo a Baleia parece sonhar, só que os sonhos de Fabiano e de sinhá Vitória vão num crescer entre uma cama de couro e um futuro melhor para os filhos, quando sinhá Vitória afirma que eles vão para a escola e ter a chance de ter outra vida que não a de seus pais.
Ela diz: “temu qui virá gente”. Fabiano rudimenta pensamentos de que está mais para bicho do que para homem, mas sonha em virar homem e andar de cabeça erguida, sem ter que obedecer sempre.
Em várias passagens, ele se reporta ao patrão e aos poderosos chamando-os de brancos, para derrubar inclusive a ideia falsa da “democracia racial”. Os ricos eram os brancos.
Sucesso de crítica, o filme não obteve o mesmo sucesso de público. Disparidade explicada por Darlene J. Sadlier em sua biografia do cineasta Nelson Pereira dos Santos, onde comenta a acusação feita pelo jornalista e crítico de cinema Ely Azevedo à “Metro Goldwyn Mayer Studios (MGM), que tinha contratos com os cinemas do Rio em que o filme foi brevemente exibido”. “Propositadamente tornado curta sua permanência nas salas”, justamente por temer “que seu sucesso pudesse provocar algo como uma abertura para uma indústria cinematográfica brasileira mais competitiva”, acrescenta.
Situação semelhante vive a produção do cinema brasileiro ainda hoje com a predominância de multinacionais e o quase monopólio da Globo Filmes na produção e distribuição e, ainda, a predominância de salas dominadas por multinacionais também. A dificuldade e disparidade de público entre obras estadunidense em maioria e os filmes brasileiros ainda é enorme, mesmo com o aquecimento da s produções nacionais na última década.
Dificilmente uma adaptação de obra literária consegue captar a essência de uma obra de maneira tão profunda como Nelson Pereira dos Santos conseguiu com Vidas Secas. O filme está inteiramente disponível no portal www.graciliano.com.br. Vale a pena assisti-lo completo e ler o livro para as inevitáveis comparações, e com esses clássicos do cinema e da literatura entender um pouco melhor o Brasil e a formação do povo brasileiro.
Filme e livro mostram faces de um Brasil que ficou para trás em tamanha crueldade da exploração do homem do campo nordestino, mas estampam vários aspectos do brasileiro e das relações de classe no país, sempre em oposição aos interesses da classe trabalhadora, no que tange a uma vida menos desigual e mais justa. Mostram que o Brasil mudou e muito, mas ainda há muito que se mudar para o país chegar ao lugar tão sonhado por gerações de homens e mulheres que dedicaram a vida a construir uma nação mais humana.