Enigmas do Ipiranga Desvendados, 1908, São Paulo, Brasil
São Paulo - SP
Fotografia - Cartão Postal
Tudo começou quando encontrei este cartão postal, que uma tal de Marcie (parece ser esse o nome) recebeu em 1908 lá na cidade de Spa, na Bélgica:
Ma chère Marcie,
Pour l’elève photographe j’envoie une vue chic prise de la fenêtre de la maison vers le Musée d’Ypiranga; pour tous trois, tout ce qu’il y a de plus choisi comme souhaits de nouvel an de la part de Jeanne, des enfants et de Louis.
(Minha querida Marcie,
Para o aprendiz de fotógrafo, eu envio uma vista chique tomada da janela de casa em direção ao Museu do Ipiranga; para todos os três, tudo o que houver de melhor, como desejo de ano novo da parte de Jeanne, das crianças e de Louis.)
O texto pode até parecer trivial, mas para mim ele guardava três mistérios, e o post convidava os leitores a opinar sobre eles:
1. Se isto é um cartão postal, como assim a foto foi tirada “da janela de casa”?
2. Como alguém pode achar chique essa paisagem cheia de mato?
3. Onde ficava essa tal “janela de casa”, se é que de fato existiu?
Os leitores do meu blog são sempre muito generosos. Dois deles, a Mariana Pabst Martins e o Luís Salvucci, rapidamente resolveram o enigma nº 1. Eles me lembraram que, na época, era relativamente comum as pessoas mandarem fazer suas fotos com o verso preparado para cartão postal, para enviá-las pelo correio. Normalmente, esses cartões eram feitos com retratos de gente. Mas nada impedia que mostrassem alguma outra coisa, por exemplo a vista da janela.
Mariana e Luís têm razão: eu mesmo me lembro de já ter visto alguns cartões assim: o retrato da pessoa ou uma pose da família de um lado, e o impresso padronizado de cartão postal do outro. Mas não me lembrei disso ao escrever o post. Enigma resolvido!
O enigma nº 2 foi desvendado por outra leitora, minha amiga Patricia Carvalhinhos, professora do curso de Letras da USP. Para ela, a solução é linguística: a palavra “chic”, em francês, tanto pode referir-se a elegante ou refinado, como a bonito ou agradável. No Brasil estamos acostumados ao galicismo “chique” com o primeiro desses sentidos, mas desconhecemos o segundo. A vista da janela, então, é “chic” no sentido de bonitinha, pitoresca. E a explicação da Patricia é “chic” de chique mesmo!
Já o terceiro enigma foi o que mais deu trabalho, e a culpa foi toda minha.
É que, na postagem original, ele foi o único dos três que eu tentei responder. Desenvolvi um longo e tortuoso raciocínio para descobrir o ponto exato de onde a foto teria sido tirada em 1908.
A teoria era muito bonita, mas tinha um pequeno defeito: estava toda errada. Quando o José Carlos Vaz me convenceu disso, resolvi retirar o post do ar por um tempo, para reescrevê-lo. Afinal, por mais que desinformação e notícia falsa estejam em alta na internet, essa moda não chegou a este blog. Nos dias seguintes, com ajuda do Diego Vargas, que é bom detetive, comecei uma pesquisa pra ver se resolvíamos o enigma de forma correta.
E não é que conseguimos? Não só descobrimos de onde a foto foi realmente tirada, mas de quebra resolvemos um quarto mistério, que nem estava listado: quem são Jeanne, as crianças e Louis, a família que assina a mensagem do cartão.
Não vou contar aqui todos os detalhes da investigação, mas o fato de o cartão ter sido enviado a Spa foi, desde o início, uma pista importante. Em 1908 devia haver em São Paulo pouca gente dessa cidade, mandando cartões para amigos ou parentes. Fazia sentido, então, pesquisar famílias belgas morando por aqui na época.
A segunda pista importante veio em um artigo de pesquisadores do Instituto de Zootecnia do Estado de São Paulo, apresentado em 2010 no 2º Seminário de Patrimônio Agroindustrial, na Escola de Engenharia da USP em São Carlos.
O artigo conta a história do Posto Zootécnico Central, instituição que durante anos ocupou um grande terreno com frente para a atual rua Borges de Figueiredo, na Mooca. Ao ser inaugurado em 1905, o Posto Zootécnico teve como diretor provisório um engenheiro agrônomo belga (Hector Raquet, professor do Real Instituto de Agricultura de Gembloux), que, por sua vez, acabou trazendo da Bélgica outros agrônomos, imagino que ex-alunos seus. Um deles se chamava Louis Misson.
O artigo ainda mostra uma planta do Posto Zootécnico datada de 1909, e descreve as benfeitorias ali existentes. Na página 2, lemos o seguinte:
“Quase metade da área é assinalada como sendo de várzea e a outra metade, parte em capoeira e parte com construções rurais, residências, pista para desfile de animais, campos de experimentação, horta e pomar, piquetes com pastagens, caixa d’água, bebedouro e estrumeira.”
As pistas estavam ficando quentíssimas. Já tínhamos um lugar descampado como o do cartão, que tinha residências, onde moravam belgas. A localização (imediações da rua Borges de Figueiredo, Mooca) é bastante compatível com o ângulo em que o museu aparece na foto. E um dos belgas do lugar se chamava Louis!
Para ter certeza mesmo, faltava encontrar uma ligação desse Luis Misson, do Posto Zootécnico, com a cidade de Spa, para onde o cartão foi enviado. Não foi difícil achá-la: bastou uma busca rápida em arquivos de jornais. Uma ata de reunião da Sociedade Rural Brasileira, publicada na Folha da Manhã de 21 de abril de 1929, menciona que o “dr. Luiz Misson e filho, exportadores de animaes de raça pura, de Spa, na Belgica” estavam pleiteando tornar-se sócios da instituição.
Com isso a história se fechou: o Louis do cartão para Spa era mesmo o agrônomo Louis Misson. Em 1908, ele morava com a família em uma das residências do Posto Zootécnico, de onde a vista que se tinha em direção ao museu era essa mesmo. E em 1929 ele continuava por aqui, com o nome abrasileirado para Luiz mas ainda trabalhando com gado. O terceiro enigma do Ipiranga (que na verdade era da Mooca) estava assim resolvido. Texto M. Jayo.
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