sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Um Passaporte Húngaro 2001 - Un Passeport Hongrois

 







Um Passaporte Húngaro 2001 - Un Passeport Hongrois
Bélgica / Brasil / França - 72 minutos
Poster do filme




Um passaporte húngaro (2003) tem um dispositivo de filmagem simples e rico. A diretora Sandra Kogut decidiu registrar suas incursões pela burocracia estatal húngara visando obter um passaporte da mesma nacionalidade de seus avós; decidiu solicitar o documento e filmar todo o processo, não importando o que acontecesse. É um filme que revela uma filmagem sem roteiro prévio, sem final predeterminado e “obrigada” a incluir acasos, imprevistos e imponderáveis na sua própria feitura. Portanto, não se trata, como nos documentários mais tradicionais, de uma situação que preexiste ao filme, mas de uma realidade que vai sendo criada no ato de filmar, em função justamente da filmagem. Uma metodologia que propiciou a realização de um filme sensível, distante de teorias ou pré-conceitos da diretora sobre a questão da identidade, das migrações e das dificuldades de pertencer a uma cultura em um mundo globalizado. O que não quer dizer que não possamos vislumbrar fragmentos disso tudo ao longo do filme, mas de viés, indiretamente, nas entrelinhas das imagens, das conversas, dos ruídos, dos sons. O passaporte em questão no título diz respeito não apenas ao que a diretora tenta conseguir mas também aos passaportes dos avós, emitidos em 1937, e que circulam de mão em mão durante o filme. Ao lado de outros documentos que Kogut vai descobrindo no percurso, contribuem para dar ao filme uma “concretude” que impede abstrações e generalizações. Uma materialidade que permite à diretora enfrentar o caos dos acontecimentos, impondo limites ao excesso de opções que um filme nesses moldes pode implicar. A burocracia infinita que o filme nos faz entrever e que aparenta ter leis definitivas com as quais governa o mundo vai se revelando frágil, relativa, patética e inoperante. Um passaporte húngaro tem dois eixos temporais bastante claros. O primeiro deles ligado ao presente da cineasta e se expressa nas negociações em torno do passaporte, cuja solicitação inicial é feita no consulado da Hungria em Paris, onde então morava Sandra Kogut. As primeiras imagens apontam para esse eixo, que é, na verdade, o fio condutor do filme. Em um ambiente absolutamente prosaico, vemos diferentes telefones e ouvimos diálogos em francês. A questão colocada é clara: é possível obter a nacionalidade húngara sendo neta de húngaros? As respostas nem tanto, expressam perplexidade, são seguidas de novas perguntas e concluídas com uma advertência: será uma empreitada muito difícil. O outro eixo liga-se à memória individual e coletiva e à história; emerge particularmente nas conversas da diretora com a avó, que mora no Rio de Janeiro, com um casal de parentes, residentes em Budapeste — os três principais personagens da narrativa — e também nos diálogos de Kogut com funcionários dos arquivos e registros oficiais no Brasil e na Hungria. O que podia parecer um filme feito em família ganha, portanto, logo de saída, uma outra dimensão. Elementos da vida pessoal da diretora se articulam entre si e, ao mesmo tempo, à atualidade e à história da Segunda Guerra Mundial. Uma conexão se estabelece entre essa história privada e uma espécie de “história do mundo”, fazendo com que Um passaporte húngaro não seja um filme caseiro que interesse apenas àqueles que neles estão envolvidos. É um filme em que a memória de uma família torna-se de imediato uma memória-mundo.
Um outro tipo de cinema político?
Esse aspecto me parece extremamente importante e marca com precisão a diferença entre esse filme e a exposição da vida privada a que assistimos diariamente na televisão, em que a lógica dominante é a da exibição da intimidade. A TV, nos seus programas de variedades, reality e talk shows, transformou-se em um território ocupado por confissões, troca de revelações e exibicionismos de toda a sorte. Querendo ou não, o documentário faz parte dessa “realidade”, fruto na verdade da intensificação de um processo de retração da vida pública cujas origens remontam a meados do século XIX. Trata-se da consolidação do que Richard Sennet chamou de “ideologia da intimidade”, que tem tido efeitos devastadores na esfera política. Mesmo atuando de forma diferente, uma boa parte da produção contemporânea de documentários não foge à regra: são personagens ou os próprios realizadores falando de si, contando experiências e memórias pessoais. Contudo, na lógica televisiva, as histórias íntimas, na maior parte das vezes, se esgotam nelas próprias e servem apenas para saciar a curiosidade alheia; as conexões são mínimas e as aberturas para outros universos praticamente não existem. São narrativas que não provocam reflexão e se limitam a confirmar o espírito de uma época, a pensar o pré-pensado e a reciclar os clichês dominantes. No concentrado de problemas privados e assuntos pessoais fornecido pela mídia, são raras as situações com possibilidades de constituir uma memória ou questões a serem resolvidas coletivamente. As histórias são de rápido consumo. Em Um passaporte húngaro, ao contrário, há uma comunicação constante entre o que é do domínio privado e o que é do domínio público. O filme torna-se um espaço-tempo em que as ideias podem tomar forma como “bem comum”. Pouco a pouco, extrai-se dos sofrimentos particulares de uma família e das questões em torno da identidade hoje o que é e deve ser compartilhado para que seja possível a formação de uma memória e de um destino comum. Um filme político, portanto, mas de outro tipo. Não se fala mais em nome de uma classe, em favor dos oprimidos, em prol das massas ou das vítimas. Não há mensagem específica a ser transmitida; tampouco se trata de uma cineasta iluminada a trazer luz a seus personagens ou a espectadores alienados. Sandra Kogut é também personagem do filme, está dos dois lados da câmera, faz parte da história contada. Assim como o espectador, tem muitas dúvidas e não sabe o final da história. É, de fato, um filme “na primeira pessoa”, autobiográfico em certa medida, mas também nesse aspecto Um passaporte húngaro desloca-se em relação aos inúmeros diários filmados nos quais um sujeito psicológico, com uma identidade definida, expressa sua interioridade, sua essência, sua forma de ver o mundo. A subjetividade criada à medida que a narrativa avança é depurada dos seus aspectos mais íntimos, que só dizem respeito à própria diretora. As razões exatas pelas quais ela quer esse passaporte, por exemplo, se é que elas existem, não dizem respeito ao espectador.
A imagem da diretora é raramente vista mas a presença dela é sentida através dos enquadramentos, do ponto de vista e particularmente pela voz. É mais uma forma de chamar atenção para o fato de que não se trata do real acontecendo independente da câmera nos moldes do cinema direto americano, mas de situações que só existem em função da câmera e do desejo da cineasta. A problematização da relação com a câmera é hoje fundamental no campo do documentário, mas certos procedimentos — tais como filmar a equipe em ação — se banalizaram. Um passaporte húngaro deixa explícitas as condições de produção do filme quase que “naturalmente”, sem ter de inserir nenhum plano emblemático da situação de filmagem. Além das imagens captadas em vídeo e produzidas nos encontros da diretora com os personagens do filme, há outras que, de várias maneiras, contrastam com essas. São imagens de trens, estações e paisagens de diferentes lugares da Hungria e imagens do Rio de Janeiro e de Recife, tomadas do ponto de vista de quem está chegando pelo mar. Possuem duração e granulação distintas e, associadas à trilha sonora, ganham uma atmosfera fortemente poética. Foram filmadas em super 8 nas cidades pelas quais Sandra Kogut passou para fazer o filme, mas nelas não sentimos a presença da diretora e, nesse sentido, adquirem um outro estatuto e uma outra temporalidade: são imagens mais objetivas. Expressam, de fato, uma multiplicidade de tempos a evocar migrações forçadas, partidas sofridas, exílios, chegadas em terras estranhas e também os trens alemães dos campos de concentração. É Recife, é Rio de Janeiro, é Budapeste, mas podia ser Buenos Aires, Nova Iorque e outras tantas cidades que serviram de abrigo a milhares de refugiados de guerras, conflitos, crises, perseguições.
A memória individual e coletiva:
“Foram tempos que vocês não podem imaginar”, diz a avó Mathilde à diretora, em uma das muitas entrevistas que Sandra faz com ela. Trata-se, na verdade, de conversas que acontecem durante as refeições e nas quais há uma efetiva interação entre avó e neta. O relato dessa senhora de mais de 90 anos surpreende pela lucidez. Há um interesse real em narrar o que se passou. Ela sabe que não se trata apenas de contar à neta, mas de deixar registradas suas memórias em um filme. Não há ressentimentos nem excesso de emoção. Pressentindo a guerra e o agravamento da perseguição aos judeus na Europa, Mathilde e o marido decidem partir. “Não queria ser culpada de ter visto e não ter agido”. Ela estava grávida do primeiro filho e o Brasil mostrou-se a alternativa. “Dava para saber?”, pergunta a neta. E ela precisa: “Saber não, dava para prever. Quem não queria ver, não viu”.
Mathilde tem senso de humor. Faz uso dele ao contar as dificuldades que viveu ao lado do marido para conseguir chegar ao Brasil e as situações intoleráveis que experimentou. É austríaca de nascimento; tornou-se húngara em função do casamento. Fala português com sotaque, mas com clareza. Sua narrativa é repleta de pequenos detalhes divertidos. Fala pausadamente e imprime ritmo em sua entoação de modo a permitir que o espectador possa refletir sobre o que está ouvindo. Nas pausas e expressões é possível entrever a marca da violência de inúmeros acontecimentos que viveu. “Um judeu sujo a menos”: foi o que disseram ao marido quando foi buscar os passaportes. Anti-semitismo na partida da Hungria e uma chegada nada calorosa nos trópicos. O casal só desembarcou em Recife depois que um parente que os aguardava no porto subornou um funcionário da administração. “Éramos cidadãos de segunda ordem”, diz Mathilde. O anti-semitismo do Estado Novo se manifestava de muitas maneiras. Em 1937 o presidente Getúlio Vargas havia enviado uma circular secreta aos consulados brasileiros recomendando não conceder nenhum visto a judeus. Um ano depois, começou a fichar todos os estrangeiros que por aqui chegavam. Essas informações são fornecidas por dois funcionários do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Mais uma vez o que acontece no filme são conversas e não entrevistas, marcando de vez a diferença entre o que assistimos na maior parte dos documentários atuais e as interações que Sandra Kogut consegue em O passaporte húngaro. Se com os familiares pode ser mais fácil estabelecer uma relação mais efetiva, Sandra nos mostra a possibilidade de deslocar o tradicional dispositivo de entrevista mesmo em uma situação impessoal. É o que também ocorre no encontro com um amável funcionário dos arquivos de Budapeste, no qual fica claro que o anti-semitismo na Hungria não ficou no passado, muito pelo contrário. A diretora pergunta se é difícil procurar documentos na Hungria. Sim, havia restrições, lhe responde um senhor com ares de bom velhinho, mas acabou “graças a Deus”: “Primeiro os comunistas não gostam de pessoas de boas famílias. Depois muitos líderes eram de origem judaica e queriam omitir isso”. No final da conversa, ele lhe diz, como quem faz um elogio: “Você não parece judia. Seu rosto, sua mãe não era judia, seu pai era meio judeu...”. “Não, sou cem por cento judia”, responde a diretora.” “Avô, avó, pai, mãe, todos? ... É” — finaliza rindo simpaticamente — “você não pode negar.”
A relação que Sandra Kogut estabelece com os parentes Gyuri e Eva Fabri, que moram em Budapeste, sofre pequenas transformações ao longo da filmagem. Eles são extremamente ternos e receptivos. Falam do passado, do gueto, dos campos. E também da mudança constante de nomes a que os judeus foram obrigados a se submeter ao longo da história. Inicialmente se solidarizam com Sandra diante das dificuldades burocráticas que ela enfrenta, mas com o tempo começam a achar que a diretora deveria se esforçar mais e conhecer melhor o país, além de arquivos e túmulos. “Há fitas para se aprender o húngaro na biblioteca, não seja preguiçosa!”, diz Eva, fazendo em seguida um comentário que revela uma certa mágoa: “É muito estranho. As pessoas que deixaram a Hungria não quiseram lembrar seus filhos de onde vieram. É por isso que os filhos dos meus tios não falam húngaro”. A arte, a comida, a língua, são traços identitários defendidos por outros familiares húngaros para que Sandra possa ter direito ao passaporte. São diálogos divertidos que, indiretamente, fazem com que o espectador questione as maneiras de representar a cultura de cada país e perceba a inexistência de uma essência nacional e o caráter impuro, construído e “imaginado” de toda e qualquer nacionalidade.
O cinema, o tempo e a memória:
Kogut articula em Um passaporte húngaro elementos da sua já longa experiência artística com vídeo a outros retirados de uma certa história do cinema — articulação de que as imagens digitais e em super 8 são apenas a expressão mais óbvia. A multiplicidade, apontada por Arlindo Machado como uma das características principais da produção videográfica contemporânea e de muitos trabalhos de Sandra Kogut, irrompe nesse filme não mais associada ao “movimento vertiginoso” (1997: 238) nem à simultaneidade, mas à duração. E é nesse aspecto especialmente que Um passaporte húngaro se distancia de vídeos anteriores da diretora como Parabolic People (1991) e se filia com tanto talento à modernidade cinematográfica do pós-guerra, que inventou, em diferentes filmes, uma pluralidade de formas temporais. Tempo aberto, que se contrata e dilata, acelera ou prolonga, para dar conta dos movimentos da vida dos homens. “A essência dos grandes filmes é a invenção do tempo” escreveu inúmeras vezes o crítico francês Serge Daney (Cf. França et. al. 1999), dimensão da arte cinematográfica que é, no pensamento do filósofo Gilles Deleuze, o grande diferencial entre o cinema clássico, o cinema da imagem-movimento, e o cinema moderno, o da imagem-tempo. Um passaporte húngaro é esteticamente marcado pelo tempo dos encontros, dos desencontros, das hesitações, das dificuldades. Sandra Kogut levou dois anos para realizar o filme (1999-2001) e essa duração é percebida pelo espectador tanto nos avanços do percurso burocrático quanto na relação com seus familiares. A passagem do tempo conta, produz mudanças, diferentemente do que ocorre, por exemplo, em Parabolic People, em que podemos deduzir um longo tempo de feitura, sem que essa dimensão esteja em questão nas imagens — o que diz muito sobre a versatilidade dessa artista, que já atuou em diferentes campos (televisão, clipes, vídeos, instalações, publicidade, curta-metragem, documentário), sem se enraizar em nenhum deles. Da mesma forma que a diretora aponta, em Um passaporte húngaro, para as dificuldades em definir uma identidade nacional nos dias que correm, ela indica com esse filme as indefinições contemporâneas próprias ao campo das artes audiovisuais. As misturas e impurezas estão em todo o lugar. Sandra Kogut realizou um filme híbrido, ficcional e documental, ensaio fílmico e diário de filmagem, em que a multiplicidade se faz presente não apenas na utilização de diferentes tecnologias5, mas também na sofisticada edição da trilha sonora, nas inúmeras línguas, sotaques e entonações, nos vários nomes próprios, nas cidades e nos personagens que são, cada um deles, frutos de uma rede de relações. Contudo, hibridações e misturas nem sempre ocorrem sem violências e mal-entendidos, especialmente no que se refere às migrações. Do mesmo modo, nem todos os deslocamentos populacionais se equivalem. As razões pelas quais a diretora Sandra Kogut não mora na sua terra natal são certamente diferentes das de sua avó. O “K” carimbado nos passaportes dos avós não deixa dúvidas: passaportes de imigração, para aqueles que vão “de vez”, válidos apenas para partir. Em Parabolic People, o que é essencialmente celebrado é a riqueza da diferença, dos encontros interculturais e dos imaginários multiculturais. Um passaporte húngaro reconhece o que há de positivo em tudo isso, mas incorpora a memória de muitos conflitos e não perde de vista a dor, o sofrimento, a humilhação, a segregação — e a temporalidade do filme é fundamental para que essa memória possa surgir.
Sandra Kogut consegue o passaporte depois de dois anos de espera. Na última cena do filme, um longo plano-sequência, a diretora está na cabine de um trem, voltando para Paris. Um policial lhe pede o passaporte e estranha o fato dela não alar húngaro. “Essa é boa!”, diz. Pergunta se ela não tem um outro documento de identidade. Diante da negativa, ele sai, presumivelmente para se informar. A câmera não corta. Ele retorna, devolve o passaporte e se despede. Um final irônico, fruto de um acaso absolutamente feliz, que retoma, de forma concentrada, tensões e questões que atravessaram todo o filme.

Nenhum comentário:

Postar um comentário