Porta "Pega-Gordo", Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Alcobaça, Portugal
Alcobaça - Portugal
Fotografia
Se a moda chegasse ao Brasil, todos os jogadores de
futebol que batalham ou já lutaram contra o excesso de peso sentiriam o
problema no bolso. Clubes da Alemanha e Inglaterra multam os atletas que, por
excessos à mesa, estufam a silhueta. Na Itália e Espanha, times entregam uma
cartilha com instruções alimentares aos atletas que vão para casa comemorar as
festas do final do ano, por exemplo. Muitos as seguem ao pé da letra; outros,
desobedecem.
O atacante italiano Cassano, jogador habilidoso e
técnico, agora aposentado, que passou pela Roma, Milan e Sampdoria, retornou
uma vez à concentração do clube pedindo clemência, depois da semana do Natal.
Culpou o panettone pelos quilos a mais na balança e se desculpou supostamente
arrependido das fatias do pão doce e rico, torpedo de carboidratos e calorias,
que havia saboreado com a família.
A dúvida é se funciona castigar financeiramente atletas
gulosos. Até prova em contrário, o grande comilão jamais se corrige. Os mais
tarimbados inventam os motivos esdrúxulos para atacar alimentos calóricos, mas
sedutores, camuflando raides ao refrigerador nos momentos em que ninguém está
perto. Conseguem achar gratificante comer feijão e macarrão frios. Ufa! A gula
quase parece irreversível.
O empenho dos clubes europeus lembra a luta das
instituições religiosas medievais católicas contra o apetite descontrolado de
monges e monjas dos conventos e demais comunidades religiosas. Primeiro, pelo
fado da gula é um dos sete pecados capitais. Depois, porque a obesidade tornava
as pessoas menos ágeis e disponíveis para os trabalhos físicos ou espirituais,
necessários na época, além de aumentarem predisposições às doenças.
A Ordem de Cister, fundada em 1098 nas imediações da
cidade francesa de Dijon, na Borgonha, foi um dos institutos religiosos de vida
consagrada mais preocupados com a balança. Instalou-se em Portugal ainda no
reinado de D. Afonso Henriques, primeiro rei do país, difundindo-se
extraordinariamente. Seus monges adotaram a regra de São Bento e deviam viver
livres de tutelas. Como agricultores e vinhateiros, produziam tudo que
consumiam. Exploravam as terras dos mosteiros, sobretudo nas granjas (palavra
derivada de grãos). Portanto, era importante que mantivessem a forma física.
Os abades faziam de tudo para controlar à mesa os
religiosos subalternos. Mandavam comer sem pressa, mastigar calmamente, ouvir
no refeitório coletivo a leitura de um capítulo da Bíblia. Regulavam o consumo
de alimentos, puniam os desobedientes com uma dieta emagrecedora à base de pão
e água. A carne e a gordura, até mesmo por motivos de jejum e abstinência,
foram vetadas por muito tempo. Abria-se exceção só no caso de doença e
convalescença. Em 1666, porém, o papa Alexandre VII autorizou o consumo de
ambos ingredientes. A liberação alterou as cozinhas da Ordem de Cister, que
precisaram aumentar a estrutura para assar bois inteiros, barrigas de porcos
idem, em espetos gigantes etc.
A voz do povo conta que a solução com melhor resultado
foi encontrada pelo abade do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, situado no
distrito de Leiria, na Estremadura, região do Centro de Portugal, cuja
edificação começou em 1178 pela Ordem de Cister. Os monges estiveram ali até
1834, ao serem expulsos do lugar pelo lamentável decreto de supressão de todas
as ordens religiosas de Portugal, assinado no governo de D. Pedro IV, o mesmo
D. Pedro I do Brasil.
O Mosteiro de Alcobaça, classificado como Patrimônio da
Humanidade pela UNESCO, hoje deslumbra os turistas. Quando o visitam, as
pessoas se encantam com sua extensa fachada principal, a requintada igreja
gótica com intervenções barrocas, os túmulos reais, a imponência da nave
central, o amplo refeitório, o lavabo requintado que o antecede, a enorme mesa
de pedra e a cozinha imensa, cruzada por um braço desviado do Rio Alcoa, no
qual atravessavam e eram capturados peixes. No refeitório, os monges se
sentavam com os rostos virados para a parede e comiam em silêncio.
Alguns metros à frente, próxima da sala do capítulo,
havia uma porta de 2 metros de altura e 32 centímetros de largura. Ainda está
lá, incólume e representativa. Segundo a lenda, teria sido aberta “para o abade
controlar o peso dos monges”. As informações históricas indicam que servia, na
verdade, para passar refeições aos pobres. Mas a tradição popular contraria a
versão. Insiste que, uma vez por mês, os religiosos deviam atravessá-la, o que
era possível apenas se o fizessem de lado. Caso não conseguissem, o abade os
submeteria à uma dieta de pão e água.
Outro problema dos monges era o gosto pelos doces, feitos
à base de mel até o século XV, quando começou a chegar o açúcar farto da Ilha
da Madeira. Entretanto, o escritor gastronômico Virgílio Nogueiro Gomes, autor
do livro “Doces da Nossa Vida” (Mercador Editora, Queluz de Baixo/Barcarena,
Portugal, 2014), faz uma ressalva. “Não são conhecidas receitas de doces do
Mosteiro de Alcobaça”, afirma. “Por tradição que se arrastou das disposições
régias de D. João II e D. Manuel I, trabalhar com o açúcar constituía
exclusividade das mulheres. A grande maioria das casas monásticas masculinas
não nos legaram um receituário de doces”.
São associados ao Mosteiro de Alcobaça, porém, tentações
como o Pudim de S. Bernardo, Delícias de Frei João e Broinhas do Mosteiro. Além
de não documentos sobre a invenção desses doces, sabe-se que são tradição mais
recente. Mais: a Estremadura, região do Mosteiro de Alcobaça, tem hoje uma
sobremesa antológica: o pão de ló de Alfeizerão. Originou-se no histórico e
pouco estudado Mosteiro de Santa Maria de Cós, a menos de 10 quilômetros do
Mosteiro de Alcobaça.
Fundado no século XIII “para acolher mulheres solteiras
ou viúvas voltadas à vida religiosa”, desfrutou de grande fama. Acabou sendo
centro notável de doces. Suas monjas destinavam muitos dos que preparavam ao
Mosteiro de Alcobaça. O pão de ló de Alfeizerão se caracteriza pela aparência
de bolo desandado; e pelo fato de ser alto e seco, em vez de baixo e úmido. A
doçaria da Estremadura é sedutora: Areias, Broas de Espécie, Cavacas das
Caldas, Farófias, Nozes de Cascais, Pastéis de Nata, Tarte de Amêndoa, Trouxas
das Caldas etc.
Aceitando-se como autêntica a versão divertida da porta
pega-gordo, qual seria a sua utilidade nos dias de hoje? Talvez ajudasse a
resolver o problema dos muitos jogadores que batalham ou já lutaram contra o
excesso de peso, cujos nomes, no Brasil, vão de Ronaldo, o Fenômeno, a Edu, do
Santos, e a Claudiomiro, ídolo eterno do Internacional, de Porto Alegre.
Infelizmente, os cartolas nacionais desperdiçaram a oportunidade de abrir uma
porta pega-gordo nos 12 estádios construídos ou remodelados no país para a Copa
do Mundo de 2014.
Um dos primeiros exemplos célebres de luta contra a
balança em nosso futebol foi Romeu Pellicciari, o craque dos dribles
inesperados e lançamentos precisos, que jogou no Palestra Itália de São Paulo
(hoje Palmeiras), no Fluminense do Rio de Janeiro, e foi meia na Seleção
Brasileira da Copa do Mundo de 1938. Natural de Jundiaí, ele engordou demais no
navio que levava a equipe brasileira para a França, onde seria disputada a
competição internacional. Romeu embarcou com 70 quilos e desembarcou com 79.
Décadas depois, aposentado da bola, gordinho e careca, abriu um restaurante em
São Paulo. Era a Cantina do Romeu Pellicciari, de boa qualidade. Mais uma vez,
o craque estava no time certo.
O atacante Coutinho, que ao lado de Pelé, Pepe e Dorval
montou o quarteto ofensivo mais bem sucedido da história do Santos (e, segundo
os torcedores mais apaixonados pelo time, do próprio futebol mundial), teve a
carreira encurtada pela obesidade. Mesmo assim, foi o terceiro maior artilheiro
da trajetória do clube. Poderia ter marcado mais gols, não fosse a
displicência. Coutinho apresentava o mesmo problema de Romeu Pellicciari,
Ademar Pantera, Neto, Ronaldo Fenômeno, Adriano, o Imperador, do centroavante
Walter, do Goiás, e outros menos goleadores. Engordava além da conta.
O Brasil terminou em terceiro lugar a Copa do Mundo de
1938, na França. Garante-se que teria se saído melhor, não fosse o transporte.
A delegação foi proibida de treinar no convés do transatlântico Arlanza, nos 15
dias da ida. Senhoras de bem, também em viagem, não aprovaram a presença de
homens com pernas de fora em público. Daí os jogadores chegarem à Europa acima
do peso, alguns sem qualquer condição de atravessar uma porta pega-gordo.
Convém lembrar de Ferenc Puskás, considerado o maior
futebolista da história da Hungria e um dos grandes de todos os tempos.
Notabilizado por defender a seleção do seu país na Copa do Mundo de 1954 e
depois a da Espanha, sempre teve problemas de peso. Mesmo assim, jogou muito,
inclusive compondo um ataque famosíssimo do Real Madrid, junto com Canário, Del
Sol, Di Stéfano e Gento.
Pouco antes da Copa do Mundo de 1970, no recém-inaugurado
Estádio do Beira-Rio, de Porto Alegre, um repórter perguntou ao então técnico
da Seleção Brasileira, o desconcertante, irreverente e inesquecível João
Saldanha:
E aí, gostou do gramado?
A resposta de João Saldanha:
—Ainda não provei.
P.S. João Saldanha sempre foi magro, portanto,
atravessaria facilmente a porta-pega gordo.
Receita do Pão de Ló de Alfeizerão:
Rende 8 porções
Ingredientes:
120 g de ovos (2 ovos grandes)
100 g de açúcar
120 g de gemas (6 gemas de ovos médios)
50 g de farinha de trigo peneirada
Manteiga para untar
Preparo:
1.Pincele o interior de uma fôrma de 20 centímetros com
manteiga e cubra com papel-manteiga.
2.Bata os ovos com o açúcar, na batedeira, em velocidade
alta, por 10 minutos.
3.Adicione as gemas e bata por mais 10 minutos.
4.Incorpore à mão a farinha de trigo, aos poucos, e
coloque na fôrma.
5.Asse em forno bem quente (225°C) por cerca de 10
minutos.
6.Deixe esfriar na fôrma e saboreie no dia seguinte.
Texto de J. A. Dias Lopes.