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terça-feira, 18 de agosto de 2020

Porta "Pega-Gordo", Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Alcobaça, Portugal




Porta "Pega-Gordo", Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Alcobaça, Portugal
Alcobaça - Portugal
Fotografia

Se a moda chegasse ao Brasil, todos os jogadores de futebol que batalham ou já lutaram contra o excesso de peso sentiriam o problema no bolso. Clubes da Alemanha e Inglaterra multam os atletas que, por excessos à mesa, estufam a silhueta. Na Itália e Espanha, times entregam uma cartilha com instruções alimentares aos atletas que vão para casa comemorar as festas do final do ano, por exemplo. Muitos as seguem ao pé da letra; outros, desobedecem.
O atacante italiano Cassano, jogador habilidoso e técnico, agora aposentado, que passou pela Roma, Milan e Sampdoria, retornou uma vez à concentração do clube pedindo clemência, depois da semana do Natal. Culpou o panettone pelos quilos a mais na balança e se desculpou supostamente arrependido das fatias do pão doce e rico, torpedo de carboidratos e calorias, que havia saboreado com a família.
A dúvida é se funciona castigar financeiramente atletas gulosos. Até prova em contrário, o grande comilão jamais se corrige. Os mais tarimbados inventam os motivos esdrúxulos para atacar alimentos calóricos, mas sedutores, camuflando raides ao refrigerador nos momentos em que ninguém está perto. Conseguem achar gratificante comer feijão e macarrão frios. Ufa! A gula quase parece irreversível.
O empenho dos clubes europeus lembra a luta das instituições religiosas medievais católicas contra o apetite descontrolado de monges e monjas dos conventos e demais comunidades religiosas. Primeiro, pelo fado da gula é um dos sete pecados capitais. Depois, porque a obesidade tornava as pessoas menos ágeis e disponíveis para os trabalhos físicos ou espirituais, necessários na época, além de aumentarem predisposições às doenças.
A Ordem de Cister, fundada em 1098 nas imediações da cidade francesa de Dijon, na Borgonha, foi um dos institutos religiosos de vida consagrada mais preocupados com a balança. Instalou-se em Portugal ainda no reinado de D. Afonso Henriques, primeiro rei do país, difundindo-se extraordinariamente. Seus monges adotaram a regra de São Bento e deviam viver livres de tutelas. Como agricultores e vinhateiros, produziam tudo que consumiam. Exploravam as terras dos mosteiros, sobretudo nas granjas (palavra derivada de grãos). Portanto, era importante que mantivessem a forma física.
Os abades faziam de tudo para controlar à mesa os religiosos subalternos. Mandavam comer sem pressa, mastigar calmamente, ouvir no refeitório coletivo a leitura de um capítulo da Bíblia. Regulavam o consumo de alimentos, puniam os desobedientes com uma dieta emagrecedora à base de pão e água. A carne e a gordura, até mesmo por motivos de jejum e abstinência, foram vetadas por muito tempo. Abria-se exceção só no caso de doença e convalescença. Em 1666, porém, o papa Alexandre VII autorizou o consumo de ambos ingredientes. A liberação alterou as cozinhas da Ordem de Cister, que precisaram aumentar a estrutura para assar bois inteiros, barrigas de porcos idem, em espetos gigantes etc.
A voz do povo conta que a solução com melhor resultado foi encontrada pelo abade do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, situado no distrito de Leiria, na Estremadura, região do Centro de Portugal, cuja edificação começou em 1178 pela Ordem de Cister. Os monges estiveram ali até 1834, ao serem expulsos do lugar pelo lamentável decreto de supressão de todas as ordens religiosas de Portugal, assinado no governo de D. Pedro IV, o mesmo D. Pedro I do Brasil.
O Mosteiro de Alcobaça, classificado como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, hoje deslumbra os turistas. Quando o visitam, as pessoas se encantam com sua extensa fachada principal, a requintada igreja gótica com intervenções barrocas, os túmulos reais, a imponência da nave central, o amplo refeitório, o lavabo requintado que o antecede, a enorme mesa de pedra e a cozinha imensa, cruzada por um braço desviado do Rio Alcoa, no qual atravessavam e eram capturados peixes. No refeitório, os monges se sentavam com os rostos virados para a parede e comiam em silêncio.
Alguns metros à frente, próxima da sala do capítulo, havia uma porta de 2 metros de altura e 32 centímetros de largura. Ainda está lá, incólume e representativa. Segundo a lenda, teria sido aberta “para o abade controlar o peso dos monges”. As informações históricas indicam que servia, na verdade, para passar refeições aos pobres. Mas a tradição popular contraria a versão. Insiste que, uma vez por mês, os religiosos deviam atravessá-la, o que era possível apenas se o fizessem de lado. Caso não conseguissem, o abade os submeteria à uma dieta de pão e água.
Outro problema dos monges era o gosto pelos doces, feitos à base de mel até o século XV, quando começou a chegar o açúcar farto da Ilha da Madeira. Entretanto, o escritor gastronômico Virgílio Nogueiro Gomes, autor do livro “Doces da Nossa Vida” (Mercador Editora, Queluz de Baixo/Barcarena, Portugal, 2014), faz uma ressalva. “Não são conhecidas receitas de doces do Mosteiro de Alcobaça”, afirma. “Por tradição que se arrastou das disposições régias de D. João II e D. Manuel I, trabalhar com o açúcar constituía exclusividade das mulheres. A grande maioria das casas monásticas masculinas não nos legaram um receituário de doces”.
São associados ao Mosteiro de Alcobaça, porém, tentações como o Pudim de S. Bernardo, Delícias de Frei João e Broinhas do Mosteiro. Além de não documentos sobre a invenção desses doces, sabe-se que são tradição mais recente. Mais: a Estremadura, região do Mosteiro de Alcobaça, tem hoje uma sobremesa antológica: o pão de ló de Alfeizerão. Originou-se no histórico e pouco estudado Mosteiro de Santa Maria de Cós, a menos de 10 quilômetros do Mosteiro de Alcobaça.
Fundado no século XIII “para acolher mulheres solteiras ou viúvas voltadas à vida religiosa”, desfrutou de grande fama. Acabou sendo centro notável de doces. Suas monjas destinavam muitos dos que preparavam ao Mosteiro de Alcobaça. O pão de ló de Alfeizerão se caracteriza pela aparência de bolo desandado; e pelo fato de ser alto e seco, em vez de baixo e úmido. A doçaria da Estremadura é sedutora: Areias, Broas de Espécie, Cavacas das Caldas, Farófias, Nozes de Cascais, Pastéis de Nata, Tarte de Amêndoa, Trouxas das Caldas etc.
Aceitando-se como autêntica a versão divertida da porta pega-gordo, qual seria a sua utilidade nos dias de hoje? Talvez ajudasse a resolver o problema dos muitos jogadores que batalham ou já lutaram contra o excesso de peso, cujos nomes, no Brasil, vão de Ronaldo, o Fenômeno, a Edu, do Santos, e a Claudiomiro, ídolo eterno do Internacional, de Porto Alegre. Infelizmente, os cartolas nacionais desperdiçaram a oportunidade de abrir uma porta pega-gordo nos 12 estádios construídos ou remodelados no país para a Copa do Mundo de 2014.
Um dos primeiros exemplos célebres de luta contra a balança em nosso futebol foi Romeu Pellicciari, o craque dos dribles inesperados e lançamentos precisos, que jogou no Palestra Itália de São Paulo (hoje Palmeiras), no Fluminense do Rio de Janeiro, e foi meia na Seleção Brasileira da Copa do Mundo de 1938. Natural de Jundiaí, ele engordou demais no navio que levava a equipe brasileira para a França, onde seria disputada a competição internacional. Romeu embarcou com 70 quilos e desembarcou com 79. Décadas depois, aposentado da bola, gordinho e careca, abriu um restaurante em São Paulo. Era a Cantina do Romeu Pellicciari, de boa qualidade. Mais uma vez, o craque estava no time certo.
O atacante Coutinho, que ao lado de Pelé, Pepe e Dorval montou o quarteto ofensivo mais bem sucedido da história do Santos (e, segundo os torcedores mais apaixonados pelo time, do próprio futebol mundial), teve a carreira encurtada pela obesidade. Mesmo assim, foi o terceiro maior artilheiro da trajetória do clube. Poderia ter marcado mais gols, não fosse a displicência. Coutinho apresentava o mesmo problema de Romeu Pellicciari, Ademar Pantera, Neto, Ronaldo Fenômeno, Adriano, o Imperador, do centroavante Walter, do Goiás, e outros menos goleadores. Engordava além da conta.
O Brasil terminou em terceiro lugar a Copa do Mundo de 1938, na França. Garante-se que teria se saído melhor, não fosse o transporte. A delegação foi proibida de treinar no convés do transatlântico Arlanza, nos 15 dias da ida. Senhoras de bem, também em viagem, não aprovaram a presença de homens com pernas de fora em público. Daí os jogadores chegarem à Europa acima do peso, alguns sem qualquer condição de atravessar uma porta pega-gordo.
Convém lembrar de Ferenc Puskás, considerado o maior futebolista da história da Hungria e um dos grandes de todos os tempos. Notabilizado por defender a seleção do seu país na Copa do Mundo de 1954 e depois a da Espanha, sempre teve problemas de peso. Mesmo assim, jogou muito, inclusive compondo um ataque famosíssimo do Real Madrid, junto com Canário, Del Sol, Di Stéfano e Gento.
Pouco antes da Copa do Mundo de 1970, no recém-inaugurado Estádio do Beira-Rio, de Porto Alegre, um repórter perguntou ao então técnico da Seleção Brasileira, o desconcertante, irreverente e inesquecível João Saldanha:
E aí, gostou do gramado?
A resposta de João Saldanha:
—Ainda não provei.
P.S. João Saldanha sempre foi magro, portanto, atravessaria facilmente a porta-pega gordo.
Receita do Pão de Ló de Alfeizerão:
Rende 8 porções
Ingredientes:
120 g de ovos (2 ovos grandes)
100 g de açúcar
120 g de gemas (6 gemas de ovos médios)
50 g de farinha de trigo peneirada
Manteiga para untar
Preparo:
1.Pincele o interior de uma fôrma de 20 centímetros com manteiga e cubra com papel-manteiga.
2.Bata os ovos com o açúcar, na batedeira, em velocidade alta, por 10 minutos.
3.Adicione as gemas e bata por mais 10 minutos.
4.Incorpore à mão a farinha de trigo, aos poucos, e coloque na fôrma.
5.Asse em forno bem quente (225°C) por cerca de 10 minutos.
6.Deixe esfriar na fôrma e saboreie no dia seguinte.
Texto de J. A. Dias Lopes.