Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava 2018 - Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava
Brasil - 80 minutos
Poster do filme
Por mais de
uma década, entre 1969 e 1980, durante a Ditadura Militar, o cinema brasileiro
caiu no gosto popular. Desafiando a censura e a fúria dos críticos, mais de 300
longas-metragens, produzidos no Rio e em São Paulo, invadiram as salas de
cinema do País com histórias e imagens que faziam a plateia morrer de rir e
também ficar excitada sexualmente. Sob o rótulo de pornochanchadas, essa leva
de filmes entraram para a história do cinema brasileiro como o seu período de
maior sucesso de público e de bilheteria. Embora durante muito tempo essa
produção tenha sido considerada uma vergonha nacional, algumas revisões
históricas já mostram que a pornochanchada não era tão inocente nem tão burra.
O
longa-metragem Histórias
que Nosso Cinema (não) Contava, da cineasta paulista Fernanda
Pessoa, é uma ousada, inventiva e inteligente apropriação do
legado deixado pelas pornochanchadas, seja a nível cultural ou histórico. O
método utilizado pela diretora não é o documental, nem se pretende um
inventário ou homenagem aos seus filmes, diretores, produtores, atrizes e
atores. Mas o que Fernanda apresenta obriga que o espectador repense tudo o que
sabe sobre essa produção vultosa, ainda hoje carente de explicação, mas muito
viva na memória popular.
Sem poder ser
considerado documentário, nem mesmo ficção, apesar de mostrar trechos de 27
longas da pornochanchada – sendo que alguns fogem, e muito, do que estritamente
é o gênero –, Histórias
que Nosso Cinema (não) Contava é um filme-ensaio, uma mirada
crítica sobre os filmes que fugiram do modelo e botaram as unhas de fora,
principalmente em temas que, nem de longe, os censores e espectadores estavam
conscientes do que eles eram. A partir de trechos desses filmes, Fernanda
mostra que, além de eles olharem diretamente para o cotidiano do Brasil
daqueles anos, alguns tinham a pachorra de acusarem grupos paramilitares de
torturarem civis, como também de testemunharem como os brasileiros se
comportavam durante o “milagre econômico”, como o machismo imperava e como as
mulheres, embora objetificadas, em alguns poucos momentos tiveram voz.
Entre os
filmes, um dos mais complexos do gênero e aquele que insuflou a vontade da
cineasta em fazer o seu filme, é o longa-metragem E Agora, José? (Tortura do
Sexo), de Ody Fraga, realizado na Boca do Lixo, em São Paulo,
em 1979. Nele, um administrador de empresas (Arlindo Barroso, o Bozo da TV) é
torturado por policiais por causa da amizade com um colega de faculdade,
considerado subversivo. Até as prostitutas que estavam com eles sofrem nas mãos
dos torturadores. Liberado praticamente sem cortes pela censura, o filme passou
em branco pela crítica. O mesmo não aconteceria, em 1982, quando o filme Pra Frente Brasil,
de Roberto Farias, que chegou a sair de cartaz ao mostrar um cidadão comum
sendo torturado.
Por todo o
filme, Fernanda elenca temas que, ainda hoje, são muito atuais. O mais
contundente, sem dúvida, é como o olhar dos cineastas eram preconceituosos
contra as mulheres. Embora este tenha sido sempre o pior lado das
pornochanchadas, a garimpagem da cineasta encontrou, aqui e acolá, alguns
filmes que deixavam, ao menos, que as mulheres também se revoltassem, como é
percebido em A Árvore
dos Sexos (1977), de Sílvio de Abreu, no qual uma moça
enfrenta a família conservadora sobre a representação do pênis como objeto que
dá criação a vida.
Fica claro que
Fernanda não expressa juízo de valor sobre os filmes, apenas faz com que,
através de uma montagem habilidosa, que eles se confrontem e mostrem ideias que
não foram levadas em conta na época. Essa recuperação arqueológica e histórica
de um cinema considerado sem grande valor estético, no entanto, é das mais
interessantes e consegue trazer para o presente alguns filmes de insuspeitada
audácia. Talvez o maior exemplo seja o longa As Aventuras Amorosas de um Padeiro (1975),
o único longa-metragem dirigido pelo ator negro Waldyr Onofre, que também atua
no filme.
Aos olhos de
hoje, o filme é uma espécie de porta voz das reivindicações femininas, do
direito à liberdade e ao aborto. A trama é toda focada na personagem Rita
(Maria do Rosário), que, casada virgem, descobre-se infeliz e parte para
relações extraconjugais, até ficar grávida, sem saber quem é o responsável pelo
filho que ela não quer ter. Muitos dos trechos dos filmes pecam pela falta de
qualidade, numa clara alusão de como anda a preservação audiovisual no País.
Em seu
primeiro longa-metragem, a cineasta Fernanda Pessoa faz um resgate histórico e
cinematográfico impressionante. Utilizando-se apenas de cenas e sons de filmes
da chamada Pornochanchada, gênero hegemônico nas telonas brasileiras nas
décadas de 1970 e 1980, a diretora reconstrói um momento da história do Brasil
– a Ditadura Militar (1964-1985) – através do olhar dos cineastas e roteiristas
daquela época. No processo, Pessoa joga luz em um movimento cinematográfico que
até hoje é visto com preconceito, dando (ou restituindo) a ele a importância
que merece. Isso é Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava.
Com montagem
precisa de Luiz Cruz, o longa-metragem de Fernanda Pessoa traz trechos de 30
filmes do período, entre eles A Super Fêmea (1973), Árvore dos Sexos (1977), Cada um Dá o que Tem (1975), Corpo Devasso (1980), Elas são do Baralho (1977), Eu Transo, Ela Transa (1972), O Inseto do Amor (1980), O Enterro da Cafetina (1971), Nos Embalos de
Ipanema (1978), Terror e Êxtase (1979) e, claro, Histórias que Nossas Babá não
Contavam (1979), de onde o documentário tira inspiração
para seu título. A pesquisa realizada pela diretora contou com mais de cem títulos,
com os trinta escolhidos servindo melhor para retratar aquele período da
história do Brasil.
A
Pornochanchada foi vista através dos anos como um gênero alienante, com a
comédia e o sexo inseridos em doses generosas como um anestesiante para o grande
público. Enquanto o governo ditatorial fazia o que bem entedia, baixando atos
institucionais, perseguindo, torturando e, basicamente, cerceando a liberdade
dos cidadãos, o cinema nacional estaria virando a cara para essa realidade. Se
isso é verdade para alguns títulos menos engajados – por vezes por medo da
censura, outras por desinteresse político apenas – o mesmo não pode ser dito do
movimento como um todo. E é isso que prova Fernanda Pessoa com Histórias que Nosso Cinema
(Não) Contava. Aqui e ali, os cineastas e roteiristas incluíam
comentários a respeito do momento brasileiro. Por vezes, é verdade, tentavam
vender a ideia reinante do “milagre econômico”, com personagens empresários,
corretores da bolsa, investidores. Em outros, críticas (nem tão) veladas sobre
torturas, censura e o braço pesado da ditadura davam as caras. O viés cômico
ajudava a transmitir a mensagem e passar incólume pelos aparelhos de repressão
do governo.
O recorte
destas cenas, que ainda trazem a violência contra a mulher e o preconceito com
homossexuais, por si só, já valeria uma espiada de perto. Mas a forma como
estas cenas são trabalhadas dentro do documentário, com personagens de filmes
distintos praticamente conversando entre si, e o modo como as temáticas são
divididas, acabam por ser os principais predicados do longa-metragem de
Fernanda Pessoa. Com 80 minutos de duração muito bem utilizados, Histórias que Nosso Cinema
(Não) Contava é um trabalho interessante, um resgate
necessário sobre a produção cinematográfica realizada no Brasil e, talvez, mais
uma peça importante no processo de desdemonização da Pornochanchada junto ao
público e parte da crítica. Curiosamente, em dois pontos específicos do longa,
cenas de um longa-metragem não identificado ficaram de fora pela não liberação
dos direitos. Como justificativa para o impedimento, o fato de os responsáveis
não considerarem sua produção pertencente ao gênero. Se mesmo no seio da
produção cinematográfica ainda exista preconceito com o rótulo, prova-se a
relevância deste documentário para saudáveis mudanças de modelo mental.
Mulheres
empoderadas estão fundando novamente o cinema brasileiro. Você olha para Gabriela Amaral Almeida e
talvez tenha dificuldade de imaginar que a jovem de olhar doce seja a diretora
responsável pelo banho de sangue de O Animal Cordial. Só por segurança, mantenha as facas longe
dela. E Fernanda Pessoa? Não é que seja uma freirinha, mas tem jeito de tímida.
Fernanda escancara o baú da pornochanchada e retoma todas aquelas histórias que
o nosso cinema (não) contava. O não entre parêntese é fundamental. Contava, mas
todo mundo fingia que não. De onde vem esse interesse de uma moça de boa
família pelo sexo escrachado?
Fernanda conta
- “Sou formada pela FAAP e fui estagiária no acervo de fotografias do cinema
brasileiro. Catalogava fotos, e havia aquele monte de fotos de pornochanchada
sem identificação. Comecei a ver os filmes para tentar identificar e catalogar.
E descobri um material riquíssimo. O olhar de hoje me permitiu criar o
distanciamento e ver que aqueles filmes malditos, muitas vezes desprezados pela
crítica, estavam conseguindo colocar questões políticas e sociais que os outros
filmes tinham dificuldade de abordar. Machismo, tortura, racismo, objetalização
da mulher e seu oposto, o empoderamento, está tudo na pornochanchada, claro que
de uma forma caótica. E assim como organizei as fotos, achei que seria
interessante organizar os próprios filmes. Foi o que fiz”.
Para isso, ela
admite que precisou se livrar do preconceito - “São filmes que, na perspectiva
de hoje, tem visões supercomplicadas das mulheres e, ao mesmo tempo, assimilam
as questões políticas essenciais dos anos 1970. E aí foi preciso todo um
resgate, porque são filmes pouco vistos, pouco preservados.” A iniciativa está
funcionando, porque, na crise geral que assola o cinema brasileiro - nem Benzinho nem O Animal Cordial,
elogiadíssimos pela crítica, estão levando muito público às salas -, Histórias Que Nosso Cinema
(Não) Contava não apenas se manterá em cartaz por mais uma
semana como ganha mais uma sala em São Paulo e outra no Rio.
Fernanda
desmonta o mito de que esses filmes não eram censurados - “Eram censurados por
motivos de ordem moral, não política. Encontrei vários documentos que listam a
exigências de cortes ou então mostram como produtores e diretores lutavam com a
burocracia pela liberação das obras.” Mas o aspecto mais gritante talvez seja a
representação do corpo feminino como moeda de troca. “É muito comum o homem
oferecer dinheiro ou qualquer outra operação financeira para ter acesso ao
corpo da mulher. Também encontrei uma outra coisa muito interessante, que é a
analogia com as obras da ditadura militar, tipo a Transamazônica ou a Ponte
Rio-Niterói. O corpo feminino vira metáfora desse projeto de Brasil grande dos
militares, o que me parece tanto mais surpreendente, porque o regime buscava
uma santificação da mulher para servir à pátria.”
Fernanda diz
que Histórias... já
nasceu com o propósito de ser um filme de montagem. “Cheguei a 30 títulos na
minha pesquisa, mas pude usar só 27, por causa de direito e também de falta de
condições técnicas. Quando fiz meu mestrado na França, estudei a reutilização
de imagens pelo cinema experimental e comecei a ver filmes que utilizavam o
trabalho de outras pessoas para ressignificar alguma coisa. Ficou claro para
mim que era o que queria fazer com as pornochanchadas”, diz.
“E, quanto
mais montava (com Luiz
Cruz), mais me dava conta da atualidade desse projeto. O machismo,
o racismo, o preconceito. As mulheres negras são mais sexys que as brancas e
quase sempre são domésticas, como se ainda se mantivesse a relação entre casa
grande e senzala. A homofobia também não mudou nada - o gay é ridicularizado,
motivo de riso. O comunismo é um perigo. Houve momentos em que eu me perguntava
- ‘Estamos voltando a isso ou nada mudou?’. Passaram-se 40 anos e a história
que esses filmes (não) contavam é a da nossa contemporaneidade.”
A proposta de
“Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava” está no título. Está, em especial,
nesse inquietante não colocado entre parêntesis. Afinal: contava ou não
contava? Aí é que está: contava e não contava. Veremos como.
Para começar,
estamos no mundo do que ficou chamado de “pornochanchada”. O nome designava o
cinema popular que vigorou entre os anos 1970 e 1980 e, claro, visava
estigmatizá-lo. Para o establishment cinematográfico (entre realizadores e
críticos) tratava-se, basicamente, de uma diversionismo em que mulheres com
pouca roupa eram usadas como atrativo em filmes (comédias sobretudo) de pouco
valor estético e, quem sabe, destinadas a fazer a população esquecer que
vivíamos em uma ditadura.
O que a
formidável pesquisa de Fernanda Pessoa produz é algo um tanto diferente. Não se
trata de discutir o valor de alguns desses filmes (os quatro de Antônio Calmon,
para ficar em um caso apenas, são ótimos). Não é isso. O que Pessoa busca (e
consegue) demonstrar é que, através desses filmes podemos vislumbrar uma riquíssima
história do Brasil no período ditatorial.
Claro, estamos
em um filme de montagem. Claro, a autora garimpou extensamente até chegar
ao material que reuniu. Também é verdade que teria podido ir mais longe se
fosse mais fácil negociar direitos autorais. Mas essa é outra história a ser
contada.
A que está no
filme surpreende. Então, daqueles filmes que todo mundo achava feitos por
completos idiotas ou, pior, comerciantes inescrupulosos, pode-se extrair uma
história nacional?
Bem, não é
exatamente a história que se pode encontrar nos livros. Mas está tudo lá. O
golpe de Estado aparece, algumas prisões etc. Mas não é o essencial, já que o
gênero se afirma ao longo da década de 1970. E ali se encontram, sim, traços de
uma história política (censura, violência, tortura), econômica (transações
pouco lícitas, exploração religiosa, industriais estrangeiros duvidosos se
instalando no país), sexual (o reconhecimento do desejo feminino, junto com o
machismo), questões gerais de costumes (racismo, divórcio, hipocrisia, sadismo
político ou não).
Em resumo, lá
estão a boçalidade, o farisaísmo e outros aspectos da vida nacional que surgem
pouco a pouco: negociatas, inflação, crises econômicas, drogas, desemprego,
anistia. Eram filmes quase sempre baratos e não raro deficientes em vários
aspectos. Vistos hoje, servem para compor uma história sem aparas, cheia de
arestas, desarmônica da vida nacional em determinado período.
Uma história
que, diga-se, o Brasil não aprecia muito contemplar: essa história é contada
por filmes dirigidos a um público popular e fartamente aceito por ele. Podemos
ver ali em diversos momentos como uma população modesta representava ora a si
mesma, ora às elites.
Se “Histórias
que nosso... etc.” chama a atenção para uma classe de filmes à qual se deu pouca
importância crítica na época, apesar de seu êxito (importante exceção foi Paulo
Emilio Sales Gomes, diga-se), é preciso convir que um filme de montagem permite
juntar peças dispersas em muitos filmes e em muitos anos e reuni-las num único
exemplar.
Isso é tão
certo quanto a importância deste filme para o conhecimento do cinema
brasileiro, daquilo que contou nas entrelinhas ou que contou mas não percebemos
(nestes filmes ou em outros). Na mesma medida, “Histórias...” ilumina a
importância e a necessidade da existência do cinema num país que tenha a
pretensão de se autoconhecer. E quanto menos oficial for essa história, melhor.


Nenhum comentário:
Postar um comentário