terça-feira, 1 de setembro de 2020

A Pizza Artesanal da JBS / Seara, Brasil - Marcos Nogueira



A Pizza Artesanal da JBS / Seara, Brasil - Marcos Nogueira
Artigo





Engodo. Enganação. Caô. 171. No idioma marquetês, storytelling, narrativa, construção de marca, posicionamento de mercado. A indústria de alimentos tem mil ardis para passar a perna em nós, otários consumidores.
Somos feitos de idiotas em todas as etapas da cadeia –desde a formulação dos ingredientes, na fábrica, até a exposição do produto no ponto-de-venda.
Para a primeira situação, podemos usar de exemplo os sucos de fruta “sem adição de açúcar” –expressão que consta nos rótulos das bebidas industriais que se disfarçam de saudáveis. Mas são doces que até dói o dente, né?
Ficam assim porque o “não-açúcar” adicionado é suco de maçã depurado até perder o caráter “maçânico” e concentrado até ficar quase só… açúcar.
Já o posicionamento dos produtos na gôndola é jogo combinado entre os times do varejo e as equipes de vendas da indústria.
Não é preciso ter MBA para perceber que existe um plano em colocar perto do caixa do supermercado os doces mais ordinários, coloridos em tons radioativos, embalados de super-heróis ou princesas.
O sortimento de açúcar fica exatamente ao alcance das mãos entediadas da criança na cadeira do carrinho. O fedelho aturou as compras estoicamente, agora quer a recompensa; para evitar chilique infantil, o adulto culpado cede e compra uma porcaria doce qualquer.
Uma forma um pouco mais sofisticada de enrolação é o tal do storytelling –em inglês, conversa mole para boi dormir.
Ficou famoso o caso do picolé Diletto: a marca inventou um “nonno” italiano que fazia sorvete com neve (!!!) para dar algum charme ao produto da fábrica em Cotia, nos Alpes Osasquenses.
Agora a Seara surge com uma linha de pizzas pretensamente artesanais. Não custa lembrar que ela é uma marca da JBS, conglomerado industrial que, no noticiário, oscila entre o caderno de negócios e as reportagens sobre escândalos de corrupção.
A própria Seara, não faz tanto tempo assim, trouxe o chef italiano Cesare Giaccone para vender lasanha congelada de caixinha.
Giaccone é um nome respeitado da gastronomia italiana, com seu restaurante numa vila do Piemonte, terra de trufas e de vinho espetacular. Foi apresentado na campanha como “especialista em lasanha”.
O tiozinho deu uma garfada do negócio e fez joinha para Fátima Bernardes. Com o cachê que embolsou, endossaria até ravióli de cocô. Talvez não soubesse o tamanho do mico que estava pagando –convencido pelo publicitário que foi tomar barolo em Albaretto e ficou extasiado com o próprio insight.
É forçoso admitir que a tal pizza “artesanal”, em comparação com outras comidas de supermercado, representa um salto de qualidade. A massa só tem farinha, água, fermento e sal. O único aditivo do molho é ácido cítrico, que já vem no tomate enlatado. O queijo parece ser queijo de verdade.
Mas os gênios de propaganda e marketing precisam extravasar o excesso de talento. Carimbaram: “artesanal”, o mais vilipendiado adjetivo da alimentação. Impossível ser artesanal algo produzido pela Seara para o Carrefour e o Pão de Açúcar.
A JBS mente outra vez.
A pizza “artesanal” de calabresa, como você pode ver na foto, é rotulada como “calabrese”, com “e” no final. Sim, a palavra quer dizer “calabresa” (natural da Calábria) em italiano. Não, essa palavra não é sinônimo de linguiça na Itália. Não, não existe o sabor de pizza “calabrese” na Itália. com linguiça em rodelas e cebola.
A réplica da JBS / Seara:
Este texto foi escrito por Juliano Nóbrega, diretor de comunicação corporativa da JBS, em réplica à coluna “A pizza ‘artesanal’ da Seara e outras mentiras da indústria de alimentos”, publicada em 29/08/2020.
Na tentativa de atacar toda uma indústria, o colunista Marcos Nogueira lamentavelmente comete equívocos sérios no texto “A pizza ‘artesanal’ da Seara e
outras mentiras da indústria de alimentos”, publicado no site da Folha e reproduzido na edição impressa neste sábado, 29 de agosto. Em respeito aos leitores e a seus consumidores, a Seara esclarece que:
1. As pizzas Seara Gourmet são feitas à mão, uma a uma, por 98 colaboradores que se encarregam exclusivamente desse processo;
2. A abertura manual da massa ocorre após um processo de fermentação que leva 24 horas. O recheio também é distribuído manualmente;
3. As massas são elaboradas com farinha italiana e assadas em forno com lenha;
4. O molho de tomate, também feito à mão, leva somente tomates de origem italiana e temperos;
5. Todo esse processo de montagem limita a produção em grande escala.
São informações que a Seara teria ficado feliz em repassar ao colunista, caso ele tivesse procurado a empresa antes de escrever sobre o produto.
E, sim, o queijo é de verdade. Como é verdade que a Seara é uma empresa que prioriza a qualidade de seus produtos e a busca por inovações que correspondam aos desejos e necessidades de nossos milhares de consumidores e clientes no Brasil e no mundo.
A Seara convida Nogueira a conhecer sua produção artesanal de pizzas, em unidade no interior de São Paulo.
Esperamos que a Folha possa transmitir esses esclarecimentos a seus leitores. Afinal, quem leu a coluna Cozinha Bruta deste sábado ficou lamentavelmente desinformado.
E a tréplica do colunista:
Como era esperado, a JBS não gostou do meu texto “A pizza ‘artesanal’ da Seara e outras mentiras da indústria de alimentos”. Na tarde de sábado (30/8), um representante da empresa me telefonou para dizer que a tal pizza, no entendimento da Seara, era artesanal, sim.
Juliano Nóbrega, diretor de comunicação corporativa da JBS, também assinou uma carta publicada ontem (31/8) no “Painel do Leitor” e, em versão estendida, neste espaço.
Segundo Nóbrega, há uma equipe de 98 pessoas para abrir manualmente a massa e colocar “cada folhinha de manjericão” da cobertura –isso não está na carta, mas me foi dito ao telefone.
Tamanho zelo torna a pizza artesanal? Não.
Acredito nas informações e nas fotos enviadas pela JBS. Por isso mesmo, declino do convite para conhecer a planta em que as pizzas são assadas. Nunca questionei a qualidade da pizza nem o processo manual anunciado pela companha –de toda forma, irrelevantes para a discussão aqui. O problema é aquela palavrinha.
Palavras são meu objeto de trabalho. Sei que cada uma tem uma carga semântica –algo que pode mudar, por exemplo, de acordo com a posição da palavra no texto. A escolha das palavras e seu encadeamento devem ser trabalhados com cuidado, com minúcia, linha por linha. É o que eu busco fazer.
Isso não me torna um artesão das palavras. Além de horrendamente cafona, a expressão é mentirosa, entre outros motivos, porque eu escrevo para a Folha. O alcance e a potência das minhas palavras se multiplicam pela difusão em um dos maiores grupos de comunicação do país. É a dita indústria da mídia, que tem lá seu poder.
O sentido de uma palavra não é estanque. Ele se transforma de acordo com o uso –quando o uso consagra um novo sentido para uma palavra velha, os dicionários precisam ser atualizados.
Por falar nisso, vejamos o que os dicionários dizem sobre a palavra “artesanal”.
Todos a definem como algo relacionado a “artesão ou artesanato”. O “Oxford” acrescenta uma acepção pejorativa: “Diz-se das coisas feitas sem muita sofisticação; rústico”. Não creio que seja esse o objetivo almejado pela JBS com a pizza Seara.
A essas definições, o “Michaelis” soma mais uma. “Feito pelos processos tradicionais, individuais e manuais…” –uia, acho que é isso que os caras querem dizer, mas espere, ainda não acabou– “…em oposição à produção industrial”.
Artesanato e indústria são incompatíveis. Inconciliáveis, especialmente quando a produção industrial atinge os volumes titânicos de uma JBS.
Não importa quantos artesãos a JBS empregue para abrir massa de pizza, ela continuará sendo uma corporação colossal, a maior indústria do setor de alimentos do Brasil. Nada do que sai de suas fábricas poderia ser rotulado como “artesanal”.
O artesanal implica ainda um atributo neutro –negativo para uma operação da escala da JBS– que não consta no verbete do “Oxford”: a falta de um padrão rigoroso de uniformidade. A “arte” da palavra “artesanato” dá uma pista, a natureza do ofício permite certa liberdade criativa.
O tal padrão de uniformidade é tudo o que a JBS persegue e alcança com seus produtos –e, estou certo disso, a regra vale também as pizzas Seara Gourmet. Ao enfileirar artesãos para passar o dia fazendo pizzas idênticas, cria-se uma linha de montagem. É a quintessência da produção industrial, que prescinde da mecanização para existir.
Escala também interessa. Não apenas o volume de produção, mas também distribuição, marketing e toda uma estrutura corporativa pronta para agir para, por exemplo, replicar de imediato uma crítica publicada na imprensa. Se um tipo excêntrico como o Elon Musk contratasse todos os hippies do mundo para colocar miçangas dia e noite em milhões de gargantilhas, nenhuma delas poderia ser considerada artesanato.
No sábado, perguntei a Juliano Nóbrega quantas pizzas da linha “artesanal” a Seara produzia. Sua carta, enviada domingo (30/8), afirma que o “processo de montagem limita a produção em grande escala”, mas não menciona o tamanho da produção. Cobrei dele uma resposta objetiva.
A não-resposta chegou ontem (1/9) pela manhã. A JBS, queixosa de não ter sido ouvida para fornecer “informações que a Seara teria ficado feliz em repassar ao colunista”, se recusou a repassar os dados, tristemente. Era a única informação que faria diferença na discussão e que eu, na condição de jornalista, lamento não ter procurado antes.
“Para preservar sua estratégia de negócios, a Seara se reserva o direito de não revelar dados sobre distribuição e volume de produção”, diz nota encaminhada pela FSB, agência de relações-públicas da JBS.
Se bem compreendi, a JBS bate o pé para defender o caráter artesanal de seu produto, mas alega sigilo industrial para negar acesso a um número fundamental para dirimir o impasse. Ao agir assim, é mais transparente do que se tivesse aberto o livro-caixa.
Neste ponto do texto, talvez você ainda não tenha entendido por que eu encasquetei tanto com uma mísera palavrinha. Vou explicar.
O adjetivo “artesanal” possui o poder mágico de aumentar o valor de venda dos artigos de consumo. São nove letras de ouro. Para empregar a palavra na indústria sem estranhamento, porém, é preciso deformar seu significado com perda mínima de sedução. A cerveja limpou terreno para essa tarefa.
Chamar de “artesanal” a cerveja fabricada em unidades industriais pequenas e médias é um estelionato que já se normalizou. Foi aí que o sentido da palavra começou a esgarçar. Vieram o hambúrguer artesanal, o brigadeiro artesanal e até a pipoca artesanal, carma pesado para a espécie humana. Com a pizza Seara, a JBS deu um passo além.
A tentação de estampar o multiplicador de preço na embalagem é enorme, mas a indústria de alimentos vinha refreando (mal e mal) o impulso. A Ambev não imprime o “artesanal” nos rótulos da Colorado e da Wäls, fábricas menores que adquiriu. O McDonald’s não teve a audácia de chamar de “artesanais” os hambúrgueres da coleção Signature. Já a Bimbo batizou de Artesano (“artesão”, em espanhol) uma linha de pães Pullmann, filigrana semântica que escancara suas intenções.
Quando a JBS mete um “artesanal”, com todas as letras e sem aspas, na caixa de uma pizza congelada de supermercado, a tendência é liberar geral. É como trafegar pelo acostamento de uma estrada congestionada: ninguém desobedece a lei até que alguém ousa e puxa o comboio.
Meu ingênuo intuito aqui é inibir, com a exposição da desfaçatez da JBS, a banalização do uso dessa palavrinha mágica para o mal. É um dever moral tentar impor limites à voracidade dos donos do dinheiro graúdo.
Se eu falhar (você pode apostar que eu falharei), depois de amanhã beberemos Coca-Cola artesanal. E deveremos uma montanha de dinheiro para um banco artesanal –que cobra taxas mais altas porque oferece gerentes em ternos de alfaiataria personalizada e costura manual.
Tempos depois, a palavra arrombada, esgotada, exaurida e lixiviada não terá mais sentido nem utilidade para a indústria. No interregno, alguns bilhões de reais terão passado do nosso bolso para o deles. É o mais eficaz programa de transferência de renda do mundo.
Nota do blog: Concordo com o colunista. É impossível uma empresa de porte global como a JBS / Seara produzir algo de forma “artesanal”. Os motivos são pra lá de óbvios, é tão absurdo contestar algo do gênero que os “inteligentes” da empresa o fizeram e acabaram dando ainda mais publicidade (e razão) ao texto do colunista. O termo “artesanal” aplicado ao referido produto só existe na cabeça dos publicitários pagos a peso de ouro pela empresa. Tem que ser muito “fora da casinha” para achar que uma pizza congelada é “artesanal”.
As pessoas normais (e não as pagas pela JBS / Seara) nem discutem tal possibilidade. Não vale a pena...

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