quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

SAPS Serviço de Alimentação da Previdência Social / Restaurante Popular do Anhangabaú, São Paulo, Brasil

 



SAPS Serviço de Alimentação da Previdência Social / Restaurante Popular do Anhangabaú, São Paulo, Brasil
São Paulo - SP
Fotografia


Vista interna do Restaurante Popular do SAPS - o Serviço de Alimentação da Previdência Social foi criado para, além de fornecer alimentação barata à população, mudar os hábitos alimentares do trabalhador brasileiro, introduzindo, por exemplo, o consumo de verduras. A "cabine de rádio", à esquerda, transmitia receitas, conselhos culinários e a indigesta propaganda política do ditador.
Outro texto sobre o SAPS:
Esse texto intenciona mostrar ações engendradas através da política estatuída pelo governo Vargas, em 1940, traduzida como Serviço de Alimentação da Previdência Social, (SAPS). Essa autarquia desenvolveu uma política de combate a fome e à desnutrição no Brasil, que se travestiu por um lado, na criação de restaurantes populares, aos quais se agregava um projeto cultural composto de bibliotecas e discotecas populares. Por outro lado, o SAPS introduziu no país os cursos de nutrólogos e visitadoras de alimentação, tendo em vista, a educação nutricional das camadas menos favorecidas. O problema da fome no Brasil tem suas raízes no próprio processo histórico de formação do povo brasileiro. Tal assertiva pode ser confirmada a partir das conclusões obtidas pelos “primeiros estudos sistematizados sobre os hábitos alimentares e as doenças carenciais relacionadas à alimentação da população brasileira”, realizados ainda no século XIX, através de teses defendidas nas faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. No período pós 30, sobretudo, no interstício 1937-1945, o problema da fome no Brasil ganha vigor científico, através dos estudos do médico Josué de Castro. O Serviço de Alimentação da Previdência Social, bem como, a instituição do salário mínimo nascem no contexto desses estudos de Josué, portanto, no transcurso do Estado Novo. As reflexões desse texto pretendem rememorar ações do SAPS, que visavam a melhorar os hábitos e as condições alimentares das camadas populares brasileiras, a partir de sua história, mas também, pelas vozes de funcionários e frequentadores da instituição.
O Brasil de Vargas, de Josué de Castro e dos Restaurantes Populares:
“Enquanto dois terços não comem, um terço não dorme, com medo dos que não comem.” Josué de Castro.
Os caminhos da historiografia brasileira em muito percorreram o período do governo Vargas, especialmente, o chamado Estado Novo (1937-45). A motivação para a ênfase no estudo dessa etapa da História do Brasil parece residir na tentativa de compreender, de forma mais apurada, as nuances do autoritarismo, “ignorado pelos autores que, no passado” enalteceram o país como “cordial e pacífico”. Tratar desse período esmiuçado por expoentes da historiografia brasileira torna-se, portanto, tarefa complexa. Por outro lado, o fascínio que tal época exerce sobre pesquisadores transmutou-se em profícuas pesquisas, já realizadas, ou em andamento. Tais investigações revelam-se como fontes preciosas e, de certa maneira, instigam novos estudos sobre temas relativos a esse período tão rico da História do Brasil. Penso, entretanto, que o Serviço de Alimentação da Previdência Social/SAPS, não foi suficientemente explorado pelas pesquisas historiográficas. Para além de seu papel de fornecedor de alimentos para as camadas populares através dos bandejões, o SAPS cumpria, ainda, a tarefa de educador nutricional implantando no país os cursos de Nutrição, das Visitadoras de Alimentação. A autarquia também cuidava da organização de palestras e de publicações variadas, visando a implementar uma política de esclarecimento às camadas mais diversas da população, quanto aos valores nutricionais dos alimentos. Henrique Veltman, um dos entrevistados dessa pesquisa, afirma que o SAPS mudou o cardápio do brasileiro introduzindo o hábito de comer verduras, saladas e soja. Segundo Henrique Veltman, o SAPS desempenhou importante papel como aglutinador de alimentação e cultura na vida de garotos, que como ele, moravam em uma vila operária de São Cristóvão (Beco da Mãe), Rio de Janeiro: “O SAPS da Praça da Bandeira, além de fornecer refeições boas e baratas, por 10 centavos, tinha uma ótima biblioteca e uma razoável discoteca. Era um barato, almoçar no SAPS. Filho de judeus da Bessarabia, a comida que o SAPS nos oferecia era um sonho: feijão, arroz, bifes bem passados e, sobretudo, saladas! A culinária de minha mãe não contemplava folhas verdes, apenas legumes cozidos. Era uma alegria carregar o bandejão. Além disso, havia o alimento para o espírito. Pois é, no nosso SAPS da Praça da Bandeira, Fraim Hechtman e eu (naquela época ele era simplesmente o Felipe), Jacó Gandelman e meu irmão Moysés, moradores do Beco da Mãe, e José Lipes, vizinho da vila, íamos quase que diariamente ouvir música clássica e pegar livros. No início, a gente até selecionava títulos e autores; mais adiante, por preguiça, decidimos explorar os livros por prateleira. E foi assim, numa confusão danada, mas muito proveitosa, que misturamos autores, temas, épocas. Devoramos de Emilio Salgari a Emmanuel Kant, sem traumas”. O fechamento do SAPS no Brasil se fez de forma abruta e deixou lacunas nas políticas públicas destinadas às camadas populares. Durante alguns anos, as políticas de combate a fome se desenharam de forma tímida podendo-se afirmar que só voltaram com força ao cenário nacional, a partir da Campanha de Combate a Fome iniciada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.
Um projeto de alimentação e educação nutricional para todo o Brasil:
A trajetória de profissional de Anita Aline Albuquerque Costa, como assistente social iniciou-se quando cursou o pedagógico normal na década de 1940, em Recife. Em seguida, fez “o curso de nutrição, embora, na época, não soubesse muito bem o que era nutrição. Mas me candidatei a uma bolsa, passei por uma seleção e fui encaminhada. Logo depois, a minha vida se iniciou com uma vida de trabalho”. Em sua fala Anita ressalta que, em 1949, como “não tínhamos o curso de nutrição”, teve que cursar “a Escola Agnes Junes Leith, uma escola americana montada pelo Plano Marshall no Ceará”. Também se lembra que havia outra escola nesse gênero “implantada em Minas”. A escola era feminina e visava à formação das visitadoras de alimentação. Depois de cursar essa Escola as moças que quisessem seguir a carreira de Nutricionista, deveriam fazer mais um ano de estudos no “SAPS” que “funcionava na Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro”. Anita veio para o Rio de Janeiro e formou-se dietista, pois “na época, não havia nutricionista no Brasil”. Tendo feito o curso, Anita foi nomeada para trabalhar no SAPS. Formadas em Minas, no Ceará ou no Rio de Janeiro a função das dietistas e das visitadoras de alimentação era organizar os cardápios dos restaurantes populares de acordo com as necessidades nutricionais do trabalhador brasileiro. Para além dessas tarefas estava a missão de educar trabalhadores e suas famílias no que tange a formação de bons hábitos alimentares. A trajetória de Anita como visitadora de alimentação e depois dietista, pode ser cotejada com a de Oswladina Nole do Nascimento que também se formou como dietista no SAPS, no início da década de 50 do século XX, guardadas as devidas especificidades.
Em 1949 em Salvador, Bahia, enquanto se preparava para prestar o vestibular de medicina, também procurava algum emprego que pudesse ajudar em sua subsistência e de sua família. Lendo um dos jornais locais tomou conta da noticia da chegada de “um rapaz aqui do Rio, que estava procurando moças para fazer... era uma carreira nova, de nutricionista”. A nota esclarecia “que era um curso muito bom sobre alimentação, que o povo brasileiro estava precisando” de profissionais desse tipo. Oswaldina disse que a mensagem a instigou a participar da seleção composta de entrevista e teste. Após ter passado pela bateria de exames, Oswaldina ficou sabendo que havia apenas uma vaga e ela fora a primeira colocada. Assim, Oswaldina deu início a sua carreira profissional que culminou na formação de médica nutróloga e pediatra. Ela veio de Salvador para o Rio de Janeiro para fazer um curso de nutróloga no Serviço de Alimentação da Previdência Social. Alguns fatos facilitaram a transferência domiciliar de Oswaldina para o Rio de Janeiro, ousada para uma moça da época: o SAPS fornecia uma bolsa de estudos para que custeasse suas despesas; ela possuía uma irmã já fixada na cidade e foi morar com ela. Oswaldina conta que se formou nutricionista “(à época eram chamadas dietistas) com o compromisso de terminar o curso e voltar, porque eles estavam abrindo restaurantes em todo o Brasil. Meu compromisso era voltar para trabalhar no restaurante de Salvador. Aí eu me formei em julho de 1950, em agosto eles já me mandaram passagem para eu ir trabalhar”. Sobre o curso de dietista feito no SAPS/Rio, que ficava na Praça da Bandeira, Bairro da Tijuca, Oswaldina fala com entusiasmo: Era um curso com horário integral, só para moças. Na minha turma havia 10 moças de várias partes do Brasil. Todas com o compromisso de retornar ao seu estado de origem, a não ser que fossem do Rio de Janeiro. O curso era ministrado por professores médicos que tinham noção de nutrição e por nutricionistas que tinham se formado em Buenos Aires. Sim, porque o curso de nutricionista existia em Buenos Aires, mas não havia no Rio de Janeiro.
As nutricionistas que ministravam o curso para nós, aqui, haviam se formado na Argentina. Depois de feito o curso, Oswaldina retornou a Salvador onde comandou o Restaurante Popular do SAPS recém inaugurado na capital baiana. O trabalho era instigante porque, “eu nunca tinha tido um tipo de trabalho desse jeito. Era maravilhoso comandar aquele grupo. Isto é, comandar um restaurante para mais de mil pessoas. Preparar aqueles cardápios e cuidar para que tudo saísse de acordo com as técnicas aprendidas no curso. O nosso trabalho era orientar o pessoal, preparar os cardápios, passar orientações para a cozinha. Os cardápios eram todos de 1400 calorias, porque era cardápio para o trabalhador. O SAPS foi feito mais para o trabalhador, então era um cardápio bem calórico. Nós tínhamos arroz, feijão, sempre um prato de carne, um prato de legumes, um copo de leite, sobremesa frutas ou doce... quase não dava doce, dava mais frutas. O que mais? Arroz, feijão... pão com manteiga”. Importante forma de ação educativa, relacionada aos hábitos alimentares dos frequentadores do SAPS, consistia na divulgação de conselhos alimentares. Isso ocorria, quer através de publicações de livros e revistas editadas pela autarquia, quer pelo trabalho das visitadoras de alimentação, quer pela voz de locutores que falavam nos horários de almoço e jantar, ou ainda, pela ação dos consultórios de alimentação. Sobre as publicações do SAPS destacam-se estudos sobre o teor e o valor nutricional de determinados alimentos. Muitas dessas publicações encontram-se arquivadas na Biblioteca do Senado Federal, em Brasília e representam verdadeiros tratados no campo da nutrição. No dizer de Oswaldina, o trabalho de educação nutricional era realizado tanto pelos locutores, quanto pela ação dos consultórios alimentares. Sua fala ressalta esse trabalho feito pelos “locutores, que através do serviço de rádio, falavam a classe trabalhadora durante o horário das refeições acerca de conselhos alimentares. E, além disso, nós tínhamos também o serviço dietético, para pessoas que tivesse problemas cardíacos ou de diabetes. O SAPS tinha a alimentação normal e tinha a comida especial para pessoas com problemas de saúde. Assim, havia um consultório onde um médico nutrólogo dizia o tipo de dieta, que o paciente tinha que fazer. O médico encaminhava para nós nutricionistas, programarmos a alimentação deles. E as pessoas que se incluíam nesses perfis tinham direito aquela alimentação dietética pelo mesmo preço da refeição servida aos demais”.
Finalizando:
Os narradores se valem da experiência que passa de pessoa a pessoa, segundo Benjamin. “E, entre as narrativas escritas as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”. Em sua acepção existem dois grupos de narradores que se interpenetram. Um deles é representado por quem viaja muito e pode ser identificado como o marinheiro, comerciante. O outro é traduzido pelo homem que ganhou a vida honestamente sem sair do país e pode ser representado pelo camponês sedentário. Procurei encontrar esses dois grupos nas vozes das pessoas que formaram esse intertexto de reminiscências acerca do SAPS. Através desse exercício dialético entre o lembrar e o esquecer, busquei através das “lembranças de outras pessoas” um passado que “é crucial para o nosso sentido de identidade”. As reflexões desse estudo, ainda que provisórias, apontam para algumas direções. A criação do SAPS que foi, sem duvida, fruto da ampliação do escopo intervencionista do Estado que procurava atingir “as causas mais profundas da pobreza” e promover “a satisfação das necessidades básicas do homem: alimentação, habitação e educação”. Também pode ser analisada como uma das ações empreendidas pela campanha civilizatória desencadeada pelo governo Vargas para controlar os sindicatos. Porém, os textos historiográficos não contemplam analises que, observem ou valorizem, o sentido que a classe trabalhadora e as camadas populares deram a existência do SAPS. Segundo Ferreira, “os historiadores etnográficos, há bastante tempo nos ensinam que se a cultura erudita tem o objetivo de subjugar os povos” devemos, ao contrário, “postular que existe um espaço entre a norma e o vivido, entre a injunção e a prática, entre o sentido visado e o produzido, um espaço onde podem insinuar-se reformulações e deturpações”. A existência das políticas públicas representadas pelas ações desenvolvidas no Serviço de Alimentação da Previdência Social foi compreendida como parte de “processos com os quais se constrói um sentido” e se procura romper “com a antiga ideia que dotava os textos de um sentido intrínseco, absoluto, único”. Sob esse prisma, essa reflexão se guiou pelas “práticas que pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo”. O SAPS beneficiou as camadas populares com um projeto nacional de educação nutricional e cultura, que foi abortado em 1967. Hoje, esse projeto inexiste, a despeito da reedição dos restaurantes populares. Esse abortamento deixou saudades, como nos conta Eladir, filha de trabalhadores, que aos nove anos de idade ia com os pais no SAPS, da Praça da Bandeira/Rio: “Era um almoço farto, bom. Eu me lembro que o meu pai falava com muito orgulho que o SAPS era uma coisa nossa, dos trabalhadores”.

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