segunda-feira, 23 de agosto de 2021

A Chegada de Dom João VI à Bahia, Salvador, Bahia, Brasil (A Chegada de Dom João VI à Bahia) - Cândido Portinari

 


A Chegada de Dom João VI à Bahia, Salvador, Bahia, Brasil (A Chegada de Dom João VI à Bahia) - Cândido Portinari
Salvador - BA
Acervo do Banco BBM
OST em painel - 3810x5800 - 1952


Texto 1:
Foram 54 dias de viagem desde a partida da família real, do Porto de Belém, em Lisboa, até Salvador, na Bahia, terra brasileira. Foram dias de angústia para quase quinze mil portugueses que deixaram a Europa num séquito de nobres, prelados, funcionários e criados com destino a América ao abrigo da corte portuguesa. O medo de permanecer e enfrentar o exército napoleônico dava forças para o mergulho no desconhecido através dos mares revoltos. O abandono da pátria, a pressa do embarque sob chuva, os muitos pertences deixados no cais, as vozes do povo, dos súditos fiéis, inconformados com a saída da corte, enfim, tudo se misturava na cabeça do príncipe regente que, segundo o relato de José Acúrsio das Neves, assim descreve os sentimentos de D. João ao deixar Lisboa: Queria falar e não podia; queria mover-se e, convulso, não acertava a dar um passo; caminhava sobre um abismo, e apresentava-se-lhe à imaginação um futuro tenebroso e tão incerto como o oceano a que ia entregar-se. Pátria, capital, reino, vassalos, tudo ia abandonar repentinamente, com poucas esperanças de tornar a pôr-lhes os olhos, e tudo eram espinhos que lhe atravessavam o coração. Dom João tornara-se o primeiro na linha sucessória da coroa, pois com a morte de seu irmão mais velho, Dom José de Bragança, o Príncipe da Beira, caberia a ele suceder à rainha D. Maria I, que se tornaria conhecida como “a louca”. Ele se tornaria o regente desde 1792, quando a rainha foi declarada incapaz. O trono, efetivamente, só seria assumido com o falecimento de sua mãe em 1816, e a aclamação só ocorreria em 1818. O curioso é que Dom João é sempre visto por nós, brasileiros, como Dom João VI, sendo desta forma identificado, conforme registra Portinari na obra que documenta este fato histórico. Em 1952, Cândido Portinari retrata a chegada da corte portuguesa num painel de 381 x 580 cm, em óleo sobre tela, atendendo à encomenda que lhe fizera o diretor-presidente do Banco da Bahia, Clemente Mariani. O título, A chegada da família real portuguesa à Bahia, como registra o Projeto Portinari, aparece também como A chegada de D. João VI a Salvador, conforme identificação da obra na exposição Um Novo Mundo, Um Novo Império – A Corte Portuguesa no Brasil, por ocasião das comemorações dos 200 anos chegada de D. João e sua corte à nossa terra, evento ocorrido no Museu Histórico Nacional entre 8 de março e 8 de junho de 2008. O que nos importa agora observar é a interpretação pictórica do artista diante do fato histórico, não só no que concerne à composição, como a sua visão psicológica sobre os personagens retratados, tão fundamentais para a nossa história. Além disso, a partir da crítica de Lúcio Costa, vamos apresentar os possíveis caminhos retrocedidos e encontrados por Portinari. A composição segue os parâmetros do artista na representação do espaço. Portinari é um artista moderno, que possui uma caligrafia trágica de acento expressionista com algumas sínteses cubistas. Ele desenvolve seus temas na dicotomia terra e homem. O homem apresentado como herói, mesmo que em seu momento de desdita, e a terra como a mãe generosa, o abrigo, o alimento, o consolo, o trabalho e a riqueza. Por esta razão ele não rompe com os pressupostos terra e homem. Num de seus poemas emblemáticos ele registra toda a angústia e preocupação com esses dois polos da tragédia: o dualismo homem e mundo, em seu caso materializado pela terra:
"A terra velha e enferma sorve O escasso líquido... em Alguns trechos o solo estava morto Homens simples, homens máquinas Dão tudo e morrem para mantê-las Vivas. Nuvens amigas de vez em quando os ajudavam. Há semelhanças Entre eles. Aquele lavrador parecia O velho pé de café, outro escalavrado como a terra da Fazenda Pobres criaturas, pobres lavouras Um dia plantaremos sementes desta gente de paz..."
Apesar da morfologia trágica que observamos em alguns momentos de sua produção artística, ele possui também uma visão realista da sociedade, que o faz sonhar com a justa distribuição de terras para todos, princípio socialista que o embala e o torna ligado a Prestes, no mesmo desejo de reforma agrária. Como um homem simples, filho de lavradores emigrantes da Itália, Portinari traz com ele a arguta percepção da alma humana. Este viés psicológico também se mescla aos pressupostos já citados. Pela herança atávica do berço italiano ele rescende ao aroma renascentista no respeito ao espaço cúbico. Pela liberdade que o impulsionou desde cedo a sair de seu povoado, vir para a cidade grande e conquistar o direito de se tornar um dos mais ilustres representantes da arte moderna brasileira, ele não abdica da autoria, da conquista criadora na concepção de corpos, olhares, mãos ou pés desmesurados. Da carga emotiva com que reveste seus tipos ele nos obriga a certa reverência, nos coloca diante de nós mesmos na contemplação da obra. A composição sobre a chegada de Dom João ao Brasil está ordenada numa longa extensão de terra que termina no mar. As caravelas ainda se avistam, como se o horizonte se desdobrasse em outro sentido, invertendo o declínio natural do fundo, pela curvatura da terra, e, como num cenário idealizado, o mar se levantasse para documentar o caminho que trouxe a corte até nós. O solo é geometrizado, como se uma nova ordem estivesse sendo implantada na terra tropical com o pisar do cortejo real. O espaço é bem arquitetônico, como construído no Renascimento. Observamos em várias obras suas, como ele apreende o espaço cúbico. Na Vista Arquitetural, pintada por Francesco Di Giorgio Martini em 1477, encontramos alguns pontos comuns, como a geometrização do solo, as construções arquitetônicas nas laterais da obra e as caravelas ao fundo, no horizonte. Na Adoração dos Magos, de Andrea Mantegna, também no Renascimento, observamos a estrutura de desenvolvimento do cortejo, o céu baixo como se tocasse a terra que se eleva em sua direção. De igual modo também existe a hierarquização do povo, conforme convenção do artista. Em Portinari, vemos o casario à direita e o povo à esquerda, sendo que o cortejo se desenvolve entre esses dois campos. Ao centro, a corte, que tomou as melhores moradias para si, desalojando seus proprietários, e o povo que contempla a família procurando suas mercês. Este modelo compositivo pode ser apreciado em outras pinturas de Portinari. A Primeira Missa no Brasil, realizada quatro anos antes da Chegada da Família Real Portuguesa à Bahia, já revela esta preocupação na distribuição do espaço. Quer pelo horizonte com recorte da natureza ou na distribuição de pessoas em grupos geometricamente divididos e, também, hierarquizados, podemos observar pontos de aproximação. Em obras como A história de Nastagio degli Onesti, de Sandro Botticelli, a construção compositiva já se faz com as preocupações fundamentais do espaço perspectivado, como o solo que se prolonga até a linha do horizonte, e se torna visível através dos espaços vazados da arquitetura, bem como a formação ordenada das pessoas que se distribuem no espaço de um lado e de outro. Ao centro, os elementos que devem ser destacados. Portinari trabalha um espaço semelhante. Ele não abandona a terra e a retrata de acordo com os cânones renascentistas, porém sua forma é moderna. A síntese da figura, a essência do que deve ser revelado, de acordo com a liberdade de geometrizar, trabalhar com planos, criar de acordo com uma concepção particular que lhe permite, em muitos casos distorcer, contorcer e quebrar a proporção dos corpos no registro de figuras humanas com pés e mãos ciclópicos, são características de sua pintura. Contudo, a Chegada da Família Real Portuguesa à Bahia traz revelações muito especiais anotadas pelo pincel de Portinari em sua percepção arguta e sagaz. Ele realizou várias maquetes para o estudo desta obra. Além disso, fez muitos esboços e desenhos em que apreendia uma expressão particular da pessoa retratada. Por outro lado, ele não se preocupa com a massa humana que se reúne para assistir à chegada. Suas figuras possuem características próximas, apenas para a identificação de faixa etária ou de posição social do tipo representado, mas não revela o páthos de cada pessoa. Da multidão dos que chegam e dos que assistem ao cortejo dos nobres destacam-se, além do próprio Dom João, sua esposa Carlota Joaquina, sua mãe Dona Maria I, e um de seus nove filhos, justamente, Pedro, que o sucederia.
Em seus esboços fica bem definido como Portinari os vê. A partir do grupo em que projeta o núcleo da família, já se pode observar a ênfase dada a Dom João e a posição de sua cabeça, virada em sentido contrário aos demais integrantes. Esta posição também se encontrará no jovem que se acomoda entre as duas mulheres: mãe e avó, ou Carlota Joaquina e Dona Maria I, a louca. Trata-se de Dom Pedro. Só os dois, pai e filho, olham na mesma direção. No outro esboço, que representa o povo, destaca-se a baiana, em posição frontal. Ela é a identidade cultural do lugar em que se encontram. Neste desenho, as demais figuras olham em sentido contrário, contemplando a corte portuguesa. No painel percebe-se com exatidão o jogo de posições que sinalizam comprometimentos e visões particulares. Em seus estudos preliminares Portinari faz apenas o contorno do rosto de Carlota. Ele procura uma apropriação melhor de suas intenções, o que parece ter sido alcançado no desenho Dom João VI, Dona Carlota e Dom Pedro. Em Dom João a fisionomia é serena, o olhar não perturba, ao contrário, parece querer descobrir melhor aquela gente. Em Dona Carlota é quase hostil, acentuado pelo páthos bem definido, que transfere ao rosto seu inconformismo com a nova situação e sua aversão pelo Brasil. Em Dom Pedro, uma irresistível curiosidade amistosa por um povo novo, por uma terra jovem. Todos esses rostos foram previamente estudados pelo artista que neles fixou esses estados de alma antes de transferi-los para a tela. De modo notável ele registra Dona Maria I, a Louca. Misto de arrogância, prepotência e poder, os olhos se dilatam, as pupilas crescem acentuadas pela curvatura das sobrancelhas. Medo que amedronta pelo horror estampado neste olhar fixo e penetrante, que se destaca do rosto. É no olhar que ele concentra a loucura. As quatro figuras que se destacam no centro da composição, núcleo da família real, carregam em seus rostos os depoimentos possíveis que a nossa história registra. A síntese da forma, pela força de sua modernidade, reforça o discurso desta chegada, enquanto o rigor quase matemático da composição não esconde o seu compromisso com a academia e o respeito ao espaço cúbico. O conflito resultante desta dicotomia potencializa a força de seu relato pictórico.
O painel ainda esconde outros sentimentos, posições, dúvidas e opções de Portinari, que nos interessam. Segundo relato de Enrico Bianco, um dos principais assistentes de Portinari, ao crítico Antônio Bento, a obra encerra o conflito do artista diante de uma opinião de Lúcio Costa. O arquiteto havia observado que a pintura possuía dois pontos de fuga e duas linhas do horizonte. A crítica pretendia ser elogiosa, pois deixava patente a liberdade criadora do artista, mas não foi absorvida com este sentido. Portinari vai inquirir Lúcio Costa, buscando entender sua crítica. “Como assim?” teria dito o pintor, recebendo a seguinte explicação: “Existem dois pontos de fuga (...) um no cortejo e outro no horizonte. Ambos não estão combinados. Apesar disso, o trabalho está admirável e o efeito obtido foi maravilhoso”. A observação vai perturbar Portinari, pois ele a interpreta como se tivesse sido apontado um erro seu. Segundo Bianco, o artista se questiona após a saída do amigo: “Como fui fazer uma besteira dessas? Vou corrigir imediatamente o meu erro”. Na verdade, Lúcio Costa procurara elogiar. Como arquiteto moderno ele via nos dois pontos de fuga e na duplicidade dos horizontes o caminho aberto para que Portinari rompesse com a regra e a norma acadêmica, no sentido da concepção do espaço. Para o pintor, entretanto, soara como crítica negativa, como constatação de erro, e imediatamente ele se propõe a corrigi-lo. De nada adiantou a insistência de Lúcio Costa através de Bianco, conforme relata Antônio Bento, no sentido de dissuadi-lo, não permitindo que ele alterasse a primeira maquete para o painel. Portinari estava convencido de que era preciso consertar o trabalho inicial e inutilizar a maquete, recolocando a corte no espaço perspectivado, de acordo com a boa norma. Para o crítico, Antônio Bento, a indagação de qual seria a melhor solução adotada não poderá ser respondida. “Uma pergunta agora sem resposta. Mesmo porque a obra originalmente concebida desapareceu com a modificação que Portinari realizou na primeira maquete. Ficou apenas do episódio a lembrança evanescente das recordações de Lúcio Costa e Enrico Bianco.
A solução final da obra é a que vemos hoje, no painel de 3,81 x 5,80 metros, pertencente ao acervo do Banco BBM. Não podemos imaginar como se daria a passagem da primeira maquete para outro painel e qual seria o resultado final. O fundamental é a tela tal qual se encontra hoje. Não como um documento da verdade dos fatos, nem como tema histórico que confirme o passado. A chegada de D. João VI a Salvador é a construção de um episódio da história do Brasil de acordo com Portinari. O que despertava o interesse de Portinari era a pintura, a distribuição dos planos, a solução das formas com os cortes escultóricos dos corpos dos personagens. Seus esboços com a técnica do grafite ou nanquim resultam em imagens mais próximas, tornando possível ao pintor devassar as almas de cada personagem. Quando o esboço se transforma em pintura, as expressões são minimizadas e a fatura da pincelada cresce numa coesão surpreendente. Os blocos de pessoas ordenadas a partir do horizonte para o primeiro plano se conformam geometricamente. A arquitetura se impõe no lado direito da tela, sublinhando um novo conflito, pois essas moradias passariam aos nobres. Não vemos qualquer alegria estampada nos rostos daquela gente, mas observamos que Dom João e Dom Pedro olham na posição contrária a corte, na direção da terra tropical e de seu povo, com suas baianas e a riqueza de seu colorido. Mais uma vez é a terra que surge e que preserva a tridimensionalidade da composição. Portinari não poderia eliminá-la de suas composições, pois ele sempre a trouxe dentro de si, conforme declara num de seus últimos poemas:
“Por que não caminho? Úmido e escalavrado, gosto de terra dentro de mim, apagado e destruído”.
Ao analisar o painel sobre a chegada da corte e conhecendo o conflito na solução pictórica de Portinari, cuja opção foi a de refazer a maquete em busca de um ponto de fuga e um horizonte, reforçamos a convicção de que, qualquer que fosse o resultado alcançado, a polaridade homem e terra autenticaria a autoria de Portinari. D. João retornaria a Portugal em 1821, em decorrência da Revolução do Porto, de 1820. Seu retorno foi bem diferente de sua chegada ao Brasil, conforme registra Constantino de Fontes numa gravura que sinaliza a pompa de seu regresso e o louvor dado ao local de sua chegada: a magnífica praça do Terreiro do Paço. D. João manteria correspondência assídua com D. Pedro. A sintonia entre os dois se dava a partir da terra do Brasil, conforme Portinari soube captar com tanta propriedade ao fazê-los olhando na mesma direção, conforme vemos na tela do desembarque da corte portuguesa. O fulcro da preocupação do artista é também a terra. A sua percepção para a chegada da família real não poderia ser diferente. É por este ângulo que ele conta esta chegada. É pelo olhar de cada um que ele define o retrato que irá realizar. Para Portinari, a terra sempre foi o grande motivo e, mesmo quando o envenenamento gradual pelo branco de chumbo de suas tintas, que determinaria a sua morte, fez com que perdesse a audição e lhe toldasse o olhar, assim mesmo, a terra ainda lhe aparecia como documento vivo de sua identidade: a terra dos cafezais.
"Minha memória já não alcança Aqueles cafezais. Começa No passado. Antes há lembranças entrelaçadas E sonhos. Mesmo se prolongando Até lá vejo esfumaçado".
Assim, ao analisar a monumental obra de Portinari, retratando a chegada da corte portuguesa ao Brasil, o que entendemos é que o artista foi além da pintura histórica e do registro deste marco para a construção da identidade brasileira. Diferente de Constantino de Fontes, que caracteriza o local do regresso da corte para Portugal como magnífico, Portinari, sem qualquer palavra, registra com cores quentes o calor tropical da terra brasileira, a emoção do povo, a presença negra da mulher brasileira e o seu compromisso com a terra do país.
Texto 2:
Se atravessar o oceano num barco à vela até hoje exige uma senhora coragem, imagine 200 anos atrás. No início do século 19, cruzar o Atlântico era um desafio repleto de perigos. Principalmente, levando-se em conta que os navios usados na mudança da corte para o Brasil, em 1807, eram verdadeiras “latas-velhas” – desconfortáveis, vulneráveis no caso de combate e carentes de reparos.
Ainda naquele 29 de novembro, dia da partida de Lisboa, a esquadra portuguesa – composta por 19 navios – encontrou-se com a frota britânica que a escoltaria até o Brasil – outras 13 embarcações. Essa deve ter sido uma cena monumental, de ficar gravada para o resto da vida na memória de quem a testemunhou: 32 barcos de guerra, mais uns 30 navios mercantes, preparando-se para a travessia oceânica. Às três horas da tarde, o comandante da Armada britânica, Sidney Smith, ordenou uma salva de 21 tiros de canhão. Estava marcado o início da penosa jornada da família real em direção à colônia.
Algo entre 10 mil e 15 mil portugueses – cerca de 5% da população do país – estavam embarcados naqueles navios. Na maioria, era gente importante, muito afeiçoada aos luxos da nobreza. No Afonso de Albuquerque, navio em que viajava Carlota Joaquina, uma infestação de piolhos obrigaria todas as mulheres – incluindo a princesa – a raspar o cabelo. Ratos eram abundantes nas embarcações, o que só aumentava o risco de uma epidemia. Por causa da alimentação precária, distúrbios intestinais tornaram-se comuns. Para os nobres portugueses em fuga, a situação não poderia ser mais constrangedora.
Dom João e sua mãe, a rainha Maria I, estavam no navio Príncipe Real – acompanhados de Pedro e Miguel, os dois filhos do príncipe regente com Carlota. Quatro das seis filhas do casal viajavam com a mãe, no Alfonso de Albuquerque. E as outras duas filhas seguiam no Rainha de Portugal. Ainda havia uma tia e uma cunhada de dom João, embarcadas no navio Príncipe do Brasil.
No dia 8 de dezembro, perto da ilha da Madeira, uma violenta tempestade fez estragos consideráveis. Na esquadra portuguesa, mastros foram quebrados e velas, rasgadas. A péssima condição de visibilidade obrigou as embarcações a parar, sobretudo porque aquela era uma área de navegação arriscada, cheia de rochedos submersos. A frota dispersou-se e uma parte dela seguiu direto para o Rio de Janeiro. Alguns navios britânicos já tinham voltado para a Europa, a fim de reforçar o cerco à Lisboa, invadida por tropas de Napoleão.
Quando as esquadras alcançaram a linha do equador, novo imprevisto: uma calmaria tornou a frear o avanço, submetendo passageiros a dias de sol escaldante. Casos de insolação e desidratação multiplicaram-se. Até que a calmaria se foi, a viagem seguiu e 1807 chegou ao fim – uma triste passagem de ano para a corte portuguesa.
Depois de tanta carne seca e biscoito, imagine qual não foi a alegria de dom João e sua comitiva ao avistar, já bem perto da costa brasileira, um pequeno barco não identificado. Era o Três Corações, um bergantim enviado por Caetano Pinto de Miranda, então governador de Pernambuco, para dar as boas-vindas à Coroa portuguesa. Dentro dele, um carregamento de frutas tropicais, como cajus e pitangas, e muitos recipientes com refresco. Aquele certamente foi um momento de glória – dom João e seus asseclas tirariam a barriga da miséria.
Àquela altura, o príncipe regente já havia determinado que o destino da frota seria Salvador, e não o Rio de Janeiro. Em 23 de janeiro de 1808, 55 longos dias depois de zarpar de Lisboa, a comitiva finalmente desembarcou na Bahia, para uma escala que duraria pouco mais de um mês. Estavam todos cansados e debilitados. Mas o primeiro desafio tinha sido superado: o oceano Atlântico, agora, protegeria a corte da fúria de Napoleão.
Eram terríveis as condições a bordo do Príncipe Real, navio que trouxe dom João ao Brasil. Os banheiros particulares eram exclusivos de oficiais e pessoas mais importantes, o resto da tripulação contava com sanitários públicos e livres de qualquer higiene. A presença de animais - porcos, galinhas, vacas e cabras que garantiam a alimentação dos passageiros mais ilustres - também não ajudavam em nada na higiene.
Enquanto poucos se alimentavam de carne fresca, ovos e leite, a ração servida à maioria dos passageiros era formada por carne salgada, biscoitos, lentilhas e ervilhas desidratadas. A água era salobra e o vinho, péssimo. Resultado: desarranjos intestinais frequentes.
Os suprimentos eram mantidos em barris, com todo o asseio possível, - o peso dos barris ajudava a manter a estabilidade do navio -, mas acabavam atacados por ratos, que roíam a madeira. Além disso, os barris de biscoito acomodados no porão acabavam contaminados por vermes. Para eliminá-los, usava-se peixe morto: eles eram atraídos pela carcaça, até que os biscoitos ficassem “próprios para o consumo”.
Os navios portugueses eram antigos e careciam de uma série de reparos. Eles deram trabalho de sobra para carpinteiros e ajudantes durante toda a travessia. Rachaduras, quando surgiam, eram preenchidas com estopa e piche.
Os chamados “navios de linha” (capazes de entrar na linha de combate) podiam ter até 100 canhões, alinhados nas laterais de cada deque e geralmente de três calibres diferentes. Cada canhão era operado por uma equipe de até seis homens. A pólvora era armazenada em compartimentos no fundo, para evitar ser atingida durante um combate. Manuseá-la era tarefa de alto risco, reservada a especialistas.
Dom João viajou na cabine do comandante, na popa. Era o lugar mais confortável do navio, com gabinete de trabalho, sala de refeições e quarto. Até banho quente dom João tomava – em uma bacia, com água da chuva aquecida num fogão. A corte teve de se acomodar em redes estreitas e muita gente deve ter dormido no chão. Os deques reservados aos nobres passageiros eram mal ventilados e não garantiam a menor privacidade aos ocupantes.
Qualquer descuido da tripulação podia resultar numa tragédia (como a disseminação de uma epidemia). Por isso, a disciplina era mantida com rigor. Castigos corporais, como chibatadas, eram punições rotineiras. O risco de infecções também era altíssimo. As cirurgias mais comuns eram as de amputação.
Texto 3:
Os perrengues enfrentados pela família real em 55 dias de viagem:
29 de novembro de 1807 - O embarque
A esquadra portuguesa zarpa do cais de Belém, em Lisboa, e encontra-se ainda bem perto da costa, com as 13 embarcações britânicas que farão sua escolta até o Brasil.
8 de dezembro de 1807 - A tempestade
Perto da ilha da Madeira, o mau tempo obriga os navios a parar. Uma tempestade destrói velas e derruba mastros, enquanto a falta de visibilidade torna a navegação perigosa – a área é repleta de rochedos submersos. Algumas embarcações, no entanto, retomam a viagem e seguem direto para o Rio de Janeiro. A frota acaba se dividindo.
8 de dezembro de 1807 - A calmaria
Ao cruzar a linha do equador, uma calmaria submete os passageiros a dias inteiros de sofrimento sob um sol escaldante. Mas dois navios portugueses e três britânicos encontram ventos mais a oeste e seguem viagem até o Rio de Janeiro. Elas transportam duas filhas de Carlota Joaquina e duas irmãs de Maria I.
23 de janeiro de 1808 - A chegada
Cinquenta e cinco dias depois de zarparem de Lisboa, dom João e Carlota Joaquina finalmente desembarcam no Brasil. Em Salvador, permanecerão por pouco mais de um mês, antes de se fixarem em definitivo na cidade do Rio de Janeiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário