sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O Príncipe 2002 - O Príncipe


 

O Príncipe 2002 - O Príncipe
Brasil - 102 minutos
Poster do filme


Texto 1:
Os filmes de Ugo Giorgetti visam habitualmente um país em transformação permanente e frenética, o Brasil, e impõem uma sutil, embora intransponível distância, entre o que se vê e o que não se vê.
Essa distância existe em "Sábado", história de um velho palacete transformado em pardieiro pela deterioração do centro de São Paulo. Ou em "Festa", onde três artistas conversam à espera do momento de se apresentar numa festa que nunca veremos.
Isto é: seja pela ação do tempo, seja pela do espaço, o que conta nos filmes de Ugo Giorgetti é menos o que está em cena do que a distância sutil entre o que se vê e o que não se vê.
Este é também o princípio de "O Príncipe", em que um homem (Eduardo Tornaghi) volta ao Brasil após mais de 20 anos na Europa. Já na chegada, ao entrar na Vila Madalena, pergunta ao chofer do táxi se não errou de rua.
Esta é a primeira e mais superficial das mudanças de que trata o filme. A transformação "O Príncipe" diz respeito antes de tudo às pessoas. E pessoas não existem sem seus lugares. Não será por acaso que um velho jornalista (Otávio Augusto) se postará aos berros (melancólicos), diante das ruínas do antigo Paribar, na praça Dom José Gaspar, atrás da Biblioteca Municipal, ela também reduzida à ruína de uma cidade que perdeu seu centro.
O que o filme de Giorgetti nos transmite nessa cena não é a sensação aparente de mudança, mas a de distância entre a juventude de um homem e sua maturidade, entre os sonhos que partilhou com uma geração e a corrosão que o tempo lhes impôs.
Os demais encontros criam a percepção de que o tempo impõe uma espécie de dolorosa decalagem: como se o protagonista tivesse se tornado a foto não descolorida (longe disso), mas desfocada de si mesmo.
Essa decalagem é desdobrada no filme pelo efeito espacial. Viver fora por longo tempo, sabemos, implica, ao retornar, um inevitável estranhamento. E não é o menor dos méritos de "O Príncipe" fazer com que olhemos coisas que nos são familiares (teatro Alfa, Bom Retiro etc.) com os olhos do protagonista: como se nos fossem ligeiramente estranhas.
É a possibilidade de partilhar com o protagonista esse hiato que ele experimenta intensamente que fazem de "O Príncipe" um filme da história. Pois o que é a história senão a constatação desse hiato, o reconhecimento da impossibilidade de apreender inteiramente um fato, um momento, uma época, uma pessoa e, simultaneamente, o esforço de apreender tudo isso?
No caso, trata-se de indagar o que nós fomos, no que nos tornamos, o que aconteceu conosco, com o Brasil, com São Paulo.
Existe uma segunda e não menos relevante trama no filme: a de um professor de história que enlouquece e passa a pregar a formulação de uma história imaginária. Passemos por ela, que mereceria artigo à parte. O essencial, no caso, é que esse personagem introduz uma outra ideia no filme: a de que a própria realidade contém um núcleo de irrealidade que nos arrasta.
Ela é sintomática da sutileza a que chegou o pensamento desse cineasta, do qual é impossível dissociar seu parti-pris formal, em que o despojamento nos coloca com mais clareza diante desses pequenos, porém vertiginosos abismos do dia-a-dia.
Texto 2:
O filme "O Príncipe", produzido em 2002, tem como diretor Ugo Giorgetti e mostra a volta ao Brasil de Gustavo (Eduardo Tornaghi), personagem central do filme, que após passar mais de vinte anos morando em Paris, retorna ao Brasil para tratar da saúde de um sobrinho Mario (Ricardo Blat), professor de História, que apresenta problemas mentais e está internado em uma clínica para recuperação. Após o primeiro encontro com seu sobrinho, Gustavo decide encontrar seus antigos amigos do movimento estudantil, e é esse encontro com cada um deles e as mudanças na vida e personalidade que ocorreram com o tempo o ponto principal do filme. Dentre esse longo período fora do país, o personagem principal afirma que por várias vezes pensou em voltar, sem concretizar essa vontade por vários motivos, e agora com a doença de Mário, se vê obrigado a voltar para cuidar de sua família, já que sua mãe já tem uma idade avançada e acaba por abandonar sua tranquilidade em Paris por São Paulo, mesmo que apenas por um curto período. O filme começa com a chegada de Gustavo à São Paulo e a primeira cena mostra o estranhamento de Gustavo ao passar pela rua onde morava e perceber que o forte crescimento da cidade trouxe problemas que antes não existiam, como a violência urbana e o trânsito parado. Gustavo não reconhece sua antiga casa ao ver as grades que a protegem. Ao não reconhecer sua antiga casa, Gustavo passa a não reconhecer seus antigos amigos, não fisicamente, mas mentalmente. Com as enormes mudanças que o País passara ao longo dos vinte anos de sua ausência, Gustavo percebe que seus amigos mudaram também e sua decepção vai aumentando na medida em que ele vai os encontrando. Durante toda a película, Gustavo quer se reencontrar com Maria Cristina (Bruna Lombardi), agora assessora para projetos especiais de uma grande empresa, o fictício grupo MW. Sua paixão de juventude que segundo seu amigo Marino Estevez (Ewerton de Castro): “acabava com qualquer reunião política do grêmio quando cruzava aquelas belas pernas socialistas” apenas vai se encontrar e falar com Gustavo no fim do filme, nos minutos finais, apesar de sempre ser citada por seus outros amigos.
Gustavo reencontra além de Marino Estevez o nostálgico Renato (Otávio Augusto) e o triste Aron (Elias Andreato). Para o presente estudo, iremos nos deter nos encontros com Marino Estevez e com Maria Cristina, já que são enunciadores claros do período do “fim das utopias”, não que os outros amigos não os sejam, mas estes os são mais claramente. Há vários lugares improváveis de se encontrar um antigo companheiro de luta política no período do regime militar, e dentre estes lugares, Gustavo encontra Marino Estevez em uma academia de ginástica. Marino suando numa bicicleta ergométrica enquanto conversa com Gustavo sobre o novo Brasil, o Brasil moderno e o mercado da cultura. Primeiro amigo que encontra, Marino é um personagem simpático que chega a ser caricato, mas na medida certa, agora totalmente imerso no mercado de cultura, “fazendo dinheiro” como ele mesmo diz. Marino diz a Gustavo que finalmente “cultura e erudição estão dando dinheiro”, e chama Gustavo a ficar no Brasil e participar dos projetos culturais junto dele. O cenário muda par ao vestiário da academia de ginástica, onde entre homens de toalha, Marino veste seu paletó e continua a conversa dizendo: “mudanças Gustavo, mudanças. Lembra quando a gente achava os empresários burros, insensíveis, tapados... lembra? Você não faz ideia de como são os empresários brasileiros hoje em dia. Sofisticados, interessados em fomentar as artes, eles vão à saraus, à palestras”. Temos de destacar o destaque às mudanças na fala do personagem. Mudança é o tema do filme, a mudança da cidade de São Paulo, da rua onde morava Gustavo, da personalidade dos antigos companheiros, a mudança geral no Brasil, que ele, quase um estrangeiro se surpreende ao longo do filme. O cenário cultural é o tema principal abordado em todos os encontros com Marino, e ao tratar dos empresários agora fomentadores das artes, vemos transformações ocorridas na percepção do personagem sobre a classe empresarial. A visão que os opunha aos empresários no tempo de luta política deu lugar a uma associação onde os dois saem ganhando. Marino consegue seu dinheiro e os empresários, prestígio e mais lucro. Possíveis desavenças do passado com os patrões ou com o Estado são esquecidas e superadas, como percebemos em outros trechos do filme. O mercado cultural é citado por Marino como a salvação dos intelectuais já que segundo ele “os intelectuais cansaram de ser pobres”.
Marino continua afirmando que este “é o século de Péricles, a Renascença”. A modernidade mais uma vez tratada como a redenção do país, a entrada do Brasil no mundo globalizado, o que em 2002 – período de produção do filme – já é um fato consumado, se mostra de grande ganho para todos, já que segundo Marino “todos os nosso amigos estão colocados (...) Todos os nossos velhos amigos, com exceção de alguns pessimistas, estão colocados. E todos estão nas colunas sociais.” Apenas alguns “pessimistas” não se integraram à nova configuração social, não se integraram à modernidade, ao “século de Péricles”. A primeira vez que Marino fala em injustiça, ou luta por direitos, qualquer menção ao passado é quando diz: “Eu podia ser um reles professor, reivindicando aumentos salariais, mas não, eu tive a lucidez de compreender a minha época”. Temos aqui a oposição entre pessimismo e lucidez. Há poucos “pessimistas” e o próprio Marino não se encaixa nessa categoria, já que possui “lucidez” o bastante para não ser “um reles professor”. Ao “compreender a minha época”, o personagem afirma que se integrou totalmente às mudanças pelas quais o Brasil passou desde o fim do regime militar. Opõe-se àqueles que fazem reivindicações por melhorias salariais e se integrou ao sistema, ao se tornar um conhecido produtor cultural que se relaciona com o Estado para o custeio de seus projetos. Esse “esquecimento” das atividades do passado fica mais evidente ainda quando ao encontrarem um maestro “poderoso”, Gustavo lembra que o mesmo maestro produzia shows musicais para levantar fundo de greve na Vila Euclides. Marino então se surpreende e diz: “você ainda lembra da Vila Euclides?! Nossa! Isso foi em 77... sei lá!” E o maestro ao aproximar-se pede a Marino para aproveitar a visita do ministro para pedir apoio a mais um de seus projetos. O personagem Marino Estevez encarna de maneira caricata toda uma mudança comportamental com o advento da modernidade. Os anos 90 iniciam um processo neoliberalizante no Brasil que transforma a realidade social e econômica nacional. Ugo Giorgetti traz no personagem uma condensação de todo um sentimento, que apesar de não ser geral é a maioria, de uma geração que não conseguiu atingir seus objetivos. A total integração ao sistema, a negação do passado e as constatações do personagem Gustavo na fala de seu amigo denotam uma transformação psicológica enorme. Aquele que antes participava de reuniões políticas e de manifestações teve a “lucidez” de deixar tudo para trás. Já que perdemos a batalha, não mudamos o Brasil nem o mundo e o capital venceu, porque deveríamos ir contra a notoriedade dos fatos? Gustavo finalmente consegue falar com Maria Cristina, sua paixão de juventude, apenas no final do filme. Ao ser recebido na sala da assessora para projetos especiais, Gustavo e ela mal conversam sobre os dois ou sobre o passado de lutas. É interessante destacarmos o momento do apagão onde, entre vultos, Maria Cristina diz: “Eu espero que você não tenha perdido o gosto pelo inesperado. Se bem que eu acho que você prefere a sombra, onde tudo fica meio indefinido. A gente olha e vê um vulto, aí olha de novo e o vulto desapareceu, olha mais uma vez e ele reaparece, como a sua vinda aqui hoje.” E Gustavo responde: “Eu não viria aqui. Aliás, fui aconselhado a não vir, para preservar a Maria Cristina de antes, para não saber nada.” Gustavo não queria ver as mudanças pelas quais Maria Cristina passara. Se os encontros com os outros amigos foram desastrosos para suas lembranças, esse novo encontro também o seria. Os dois afirmam que fizeram tudo errado nos últimos anos. Isso talvez englobe o aspecto político, não apenas o sentimental desde a separação do casal. A luz reacende e Gustavo a presenteia com uma edição do livro O Grande Gatsby (1922) de F. Scott Fitzgerald e a cena final do encontro dos dois tem um trecho lido do fim do livro que diz: “Enquanto lá me achava a meditar sobre um velho e conhecido mundo, lembrei-me da surpresa de Gatsby, ao divisar pela primeira vez a luz verde na extremidade do ancoradouro de Daisy. Ele viera de longe até aquele relvado azul, e seu sonho deve ter lhe parecido tão próximo, que dificilmente poderia deixar de alcançá-lo. Não sabia que seu sonho já tinha ficado pra trás, perdido em algum lugar, na vasta obscuridade que se estendia para além da cidade, onde as escuras campinas da República de estendiam sobre a noite”. Este trecho final faz um paralelo com a vinda de Gustavo, sua viagem que o fez perceber que seus sonhos haviam sido deixados para trás e que não voltaria. Essa constatação dá sentido aos seus sentimentos e expressões, que desde o início do filme se mostram confusas e incrédulas com os discursos de seus antigos amigos. Interessante perceber que durante o filme, o personagem Mário afirma que “as luzes estão se apagando”, e no encontro com Maria Cristina as luzes se apagam de fato.
A escuridão do encontro com a paixão de juventude representa a perda de mais uma boa memória de Gustavo. O período que os dois viveram, a paixão e a luta não voltam e o apagar das luzes mostra que ela também havia se transformado, não era a mesma Maria Cristina de juventude. Assim como seus outros amigos, a transformação chegara para ela. Ele não conseguira preservar a Maria Cristina de Juventude. A última luz se apagara. A cena final do filme se passa em um aeroporto onde uma passageira pergunta a Gustavo o motivo da à São Paulo, se seriam por negócios ou por lazer, onde Gustavo responde de maneira sarcástica: “Como a senhora classificaria um funeral?”. Temos de destacar aqui que durante o filme, Mário, seu sobrinho, se suicida e ocorre o seu funeral, porém o personagem Mario não é fundamental no desenrolar do enredo. Gustavo realmente participou de um funeral, porém um funeral de suas lembranças, seus sonhos de juventude, os desejos de sua geração com as constatações do presente e das mudanças ocorridas. Suas memórias estavam mortas, e ele mesmo foi o responsável pelas mortes, já que encontrou seus antigos companheiros e atestou as mudanças ocorridas. A memória se constrói a partir do presente e do contato com outras memórias. O tempo que Gustavo passou afastado do Brasil e dos antigos companheiros, concorreram para que as suas lembranças do período de luta democrática continuassem quase que imutáveis, já que não houve nenhuma contato com os personagens do seu passado. Já seus amigos, e daí vem o principal argumento do filme aqui apresentado, continuaram a ressignificar e reinterpretar os acontecidos.
Gustavo durante todo o filme se mostra melancólico acerca do passado e incrédulo com as mudanças ocorridas durante sua longa ausência. Ao relembrar passagens da juventude que seu amigo Marino esquecera, Gustavo visivelmente se lamenta. Ao ver as mudanças da cidade de São Paulo e como a sua realidade mudou, vemos o personagem se mostrar muitas vezes confuso. Temos de perceber, porém, que o próprio Gustavo ao passar mais de vinte anos fora do país, passou por inúmeras mudanças, mesmo que ele mesmo não faça menção a essas mudanças, ou inconscientemente não quis. Os amigos de juventude ao se mostrarem bastantes diferentes do que eram, evidenciam as mudanças políticas, econômicas e sociais ocorridas com o Brasil. Gustavo ao se colocar a partir de um distanciamento espacial, conservou suas memórias e não esperava, assim como o personagem de O Grande Gatsby, que seu “sonho” havia ficado para trás. Ao “fugir” para a França, Gustavo deixa todo o seu passado intocado no Brasil e segue sua vida em outro país. Sua memória estava cristalizada, fixa, mas o Brasil e as personalidades de seus amigos não.

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