Os Megagalpões dos Centros de Distribuição de Logística e o Convívio com a Pobreza Local, Cajamar, São Paulo, Brasil - Artigo
Artigo
Lidiane da Silva sai correndo de seu barraco, desvia da língua de esgoto que escorre na rua de terra, dribla o trânsito de galinhas e pintinhos, chega ao asfalto e à casa da irmã. Na volta, tem na mão um envelope amarelo. "É um carregador de celular. O outro pifou. A gente comprou hoje e já chegou."
A eletricidade e a água são clandestinas, mas a fibra da internet é regular e custa R$ 140 mensais. Ela divide a conta com o irmão, Marcos Vinícius, morador do casebre de madeira ao lado. Na ocupação que virou bairro não entra caminhão de lixo, gás ou entrega. Só passa mesmo o caminhão-pipa da Defesa Civil para abastecer as caixas d'água no meio da seca.
A encomenda de Lidiane veio de bem perto. Duas fileiras de alambrados e um sistema de câmeras separam o precário bairro Novo Paraná do tecnológico megagalpão do Mercado Livre, em Cajamar, município da Grande São Paulo que, por sua posição geográfica, concentra centros de distribuição do comércio online.
Lidiane, de 27 anos, trabalha para uma empresa terceirizada que faz a limpeza no estoque central do supermercado Assaí, vizinho ao do Mercado Livre. Marcos faz carga e descarga da empresa norte-americana Penske Logistics, à beira da rodovia Anhanguera.
As vendas online cresceram cerca de 60%, numa comparação entre o primeiro trimestre de 2021 e o primeiro trimestre de 2020, e se popularizaram com a pandemia (13 milhões de brasileiros fizeram a primeira compra online no período). As entregas no mesmo dia são uma realidade nos grandes centros, e o próximo passo é bater na porta do consumidor em até uma hora, sem cobrança de frete. O avanço se adaptou rapidamente ao atraso social do Brasil, chegando às favelas e concorrendo com as lojas das redondezas. Cajamar é uma mostra disso.
Há 200 anos, nossos antepassados sabiam a origem de cada alimento ou ferramenta, dentro da variedade limitada que os cercava. De lá pra cá, a oferta cresceu exponencialmente a cada década, mas o conhecimento sobre ela foi reduzido, ao ponto da total obscuridade. Hoje, a desconexão entre a produção e a distribuição nos leva a uma lógica quase mágica quando apertamos um botão e o objeto pixelado se materializa horas depois diante de nós.
No início de 2021, Cajamar contava com 1,3 milhão de m² de depósitos cobertos, mas há planos para mais que duplicar essa extensão. Essas catedrais do consumo digital não chamam atenção por sua arquitetura, mas por seu tamanho. São caixotes brancos de até 12 metros de altura, na maioria das vezes assentados sobre morros retificados com gigantes degraus de grama. O que foi visitado pela reportagem do TAB possui 150,5 mil m², área superior à do Santuário Nacional de Aparecida.
Em cada lateral dessas colinas, há escadas de concreto, onde só é permitida a circulação das águas da chuva. Os visitantes, dentro de caminhões ou carros, chegam ao topo por rampas de asfalto e depois passam por cancelas, guichês, catracas, sensores de metal e dispositivos de reconhecimento facial.
Iguais a esse, há vários galpões em construção ali. As estruturas inacabadas lembram até as ruínas de templos da Grécia, de onde vem logistikos, jargão militar para o suprimento de armamento e alimentação para os soldados. Hoje, porém, o termo é usado na guerra comercial — só em Cajamar estão os QGs da Amazon, Correios, B2W, Carrefour, Walmart, FedEx e dezenas de outras empresas.
Os clientes devem se esbaldar no aplicativo, mas nenhum dos 3.800 funcionários dos cinco turnos ininterruptos pode entrar com celular no megagalpão do Mercado Livre. Para usar, só se for no intervalo único de refeição. Ou em uma emergência, após pedir autorização para o superior hierárquico. Tudo para não atrapalhar o fluxo de pacotes, carrinhos e empilhadeiras.
Em compensação, cada setor possui caixas de música. "Tem muita gente jovem aqui, e a música ajuda a animar o trabalho. O que mais se escuta é gospel e sofrência", conta Thais Correa, analista de "outbound" (saída de produtos).
Quase tudo lá dentro obedece a um jargão em inglês. Num lado do galpão estão as 73 docas dos "sellers" (vendedores) para o "inbound" (entrada dos itens). Do outro, estão as 32 garagens dos "buyers" (compradores) para o "outbound".
Quem faz a colheita dos produtos nos nichos do armazém se chama "picker". Quem embrulha é o "packer". Na mão não pode faltar o "collector" (pistola em que um laser vê códigos para identificar a mercadoria). Depois, os pacotes vão para as "gaylords" (caixonas de papelão), que saem da "station" (área perto da esteira) para o "stage" (perto dos caminhões) e são "strechadas" (fechadas com fita adesiva). Dali vão para o "cross-docking" (depósito menor dentro da cidade) e o "last mile" (trecho final até o cliente), para cumprir o "same day" (entrega no mesmo dia).
As "packers", que montam os pacotes, emitem a nota fiscal e colocam tudo na esteira. Elas usam toucas no cabelo, para evitar que um fio entre na caixa e denuncie para o feliz consumidor que tem muita gente atrás do mundo encantado da economia digital.
Antes do entreposto gigantesco e da favela, tudo ali era eucalipto, plantado para a indústria de celulose da região. Prova disso são as gambiarras elétricas amarradas nos galhos das poucas árvores que restaram entre os barracos.
"Aqui tem mais haitiano que brasileiro", conta Lidiane, nascida em Cajamar de pais pernambucanos. Depois de oito horas de trabalho, Lidiane reencontra sua filhinha, Bianca. Ela estava brincando na ladeira de barro com os filhos dos vizinhos, o casal formado pela piauiense Luzia Ferreira e o haitiano Roldy Vertus — ele trabalha no depósito da empresa Vex, no distrito de Polvilho.
"O pessoal do Haiti constrói casa de bloco e tijolo, acreditando que vão legalizar a área. Os brasileiros continuam morando atrás de madeirite e tronco, porque não sabem se vão ser removidos", relata Luzia. A invasão do terreno aconteceu em 2018, mesmo ano em que começaram as obras do depósito vizinho.
Lidiane não gasta em alvenaria, mas capricha no vestuário — comprando online, claro. "Você vai nas lojas aqui, e uma calça custa R$ 100 ou mais. Outro dia comprei três por R$ 140 na internet, ficaram pequenas, cancelei a compra e, quando eles devolveram o dinheiro, eu pedi um número maior. Deu tudo certo", revela sua estratégia.
Marcos, 25, irmão de Lidiane, trabalhou sempre com carga e descarga. Tem dois filhos, e sua casinha, onde mora há quatro anos, não tem chuveiro — o banho é na caneca. "Quando chove forte, coloco meu menorzinho dentro de uma caixa de papelão pra não pingar nele e acordar."
Outra moradora dali, a pernambucana Ana Claudia dos Santos, sai apressada para comprar os ingredientes para fazer coxinha. Ela trabalhava à noite no depósito dos Correios, mas foi dispensada no meio da pandemia. Hoje, processa judicialmente a estatal e vende salgados na madrugada para os ex-colegas. "Sabia que o pessoal ficava com muita fome de tanto despachar Sedex."
Boa parte do mar de prédios de São Paulo tem uma origem: as cimenteiras de Cajamar e vizinhança. Hoje, porém, a cidade meio rural meio suburbana de 78 mil moradores virou um almoxarifado para os habitantes do concreto armado paulistano.
Tamanha era a dimensão econômica das minas de calcário e a fábrica de cimento que o município se emancipou de Santana de Parnaíba em 1959. Entre 1962 e 1963, houve uma forte greve pelas péssimas condições de trabalho. E, em 1983, a indústria foi fechada devido à contaminação do ar — a extração do calcário, em menor proporção, continua até hoje.
Com esse cenário, o município buscou uma alternativa econômica e encontrou, a partir de 2008, na gestão e circulação de estoques. E a paisagem de lá ficou adornada por CDs (centros de distribuição) e outdoors com a frase "alugam-se galpões". Não por nada, ganhou o apelido marqueteiro de "a Disney dos galpões" ou o "Vale do Silício da logística".
Os donos desses locais são grandes corporações com sede em Singapura, San Francisco ou Tóquio e ações nas bolsas internacionais. Seus inquilinos se dividem entre atacadistas, indústrias e plataformas digitais de vendas. A norte-americana Amazon, por exemplo, aluga por lá cinco dos 11 galpões que possui no Brasil. Na entrada de um deles, vizinho ao bairro popular Vila União, um cavalo consumia tranquilamente uma moita de grama, indiferente às atuais necessidades dos humanos de trazer alimentos de lugares distantes, passando por corredores marítimos, rotas aéreas, fileiras de contêineres, até chegar a um depósito como aquele.
Enquanto a esteira robótica corre sem freio recebendo e distribuindo pacotes, a alça de acesso saindo da rodovia Anhanguera e entrando em Cajamar está travada com tantas jamantas manobrando para atravessar a cidade em direção aos galpões.
O Mercado Livre, com sede em Buenos Aires e presença no Brasil desde 1999, destaca um convênio com a administração municipal para contratar jovens atrás de seu primeiro emprego. Já a Amazon declara que emprega, direta e indiretamente, mais de 2.000 pessoas na região de Cajamar e que tem sempre relacionamento com as autoridades locais para "acelerar as comunidades". Já a prefeitura de Cajamar fala em promover cursos técnicos em logística para qualificar seus moradores.
O mundo online multiplica os lucros de alguns, mas outros ficam à margem. Um exemplo: a pernambucana Marcília de Souza, 52, está desempregada há três anos, vive com os R$ 150 do Bolsa Família e da distribuição de cesta básica pela prefeitura. Ela está sem água há dois meses e usando a da casa do irmão. "Mandei meu currículo para o Mercado Livre no começo do ano para uma vaga de limpeza e estou esperando resposta."
Nota do blog: Toda essa modernidade e riqueza não impedem que o Mercado Livre descumpra, diariamente, várias obrigações previstas no Código de Defesa do Consumidor. Apenas para citar uma, não possuem um canal de atendimento via fone para seus clientes. É um verdadeiro martírio para conseguir reclamar quando algo dá errado...
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