quarta-feira, 23 de março de 2022

Porto com Negros Livres (Porto com Negros Livres) - Anônimo




Porto com Negros Livres (Porto com Negros Livres) - Anônimo
Coleção privada
OST - 65x98




"Porto com negros livres", título que atribuímos a este óleo sobre tela de autoria desconhecida, se aproxima, pelo cenário com elementos das Índias Ocidentais, da obra do pintor italiano Agostino Brunias (1730–1796), célebre pela sua representação costumbrista de escravizados. Um exame mais detalhado a remete, contudo, a uma fatura posterior, Primeiro quartel XIX, em que os negros representados na tela são homens livres.
Os elementos de estilo empregados pelo autor, ao que tudo indica um dos muitos artistas viajantes europeus que percorreram o Novo Mundo, trazem para o expectador uma série de referências paradoxais à situação de ex-escravizados que parecem contraditórias, associando pobreza ao contentamento. Isso se dá, por exemplo, no fato de todas as 23 figuras, mulheres, homens e uma criança, apesar de estarem andrajosas, transmitirem serenidade. Entre elas, algumas se dedicam a tarefas cotidianas, como os barqueiros, o pescador e a lavadeira trazendo à cabeça uma enorme trouxa, mas a maioria se entretém em tertúlias. O namoro da lavadeira abraçada ao seu par no primeiro plano, cuja trouxa está largada na mureta, sugere que são donos de seu tempo. Não há feitores, nem brancos.
Visto que as revoltas da escravatura no Caribe se iniciam com a revolta de São Domingos (1791-1803) e acontece a libertação dos escravos nas Índias Orientais Britânicas em 1833, podemos colocar como uma iconografia caribenha e/ou costas do norte da América Sul e datar este quadro como da primeira metade do século XIX, entre 1804 e 1833, o que leva o pintor por sua temática, a ser um seguidor da escola Brunias.
É, portanto, nesse contraste entre liberdade e farrapos que reside a grande diferença entre os homens livres de etnia africana e os escravizados caribenhos retratados por Brunias, na segunda metade do século XVIII. 
Como fica patente nas reproduções desse artista, os escravizados vestiam frequentemente trajes coloridos que ostentavam a riqueza de seus donos. Por outro lado, é possível perceber na tela um romantismo semelhante ao que transparece em alguns retratos de Brunias, Rugendas e até mesmo na mais adorável das pinturas elípticas do pintor fluminense Leandro Joaquim, um contemporâneo de Brunias, com seu violonista mulato que corteja a lavadeira.
O tempo tropical está presente, também, nas construções ruiniformes com seus arcos de uma imaginária fortaleza abandonada, um dos elementos valorizados pelo Romantismo. A vegetação, que apresenta arbustos irregulares, semelhantes ao algodoeiro-da-praia, e palmeiras, contrasta com o fundo montanhoso e árido, pintado atrás vila colonial e seu casario branco, sugerindo um desmatamento realizado pelos antigos senhores.
Há outro elemento associado à escravatura cuja ausência é notável, trata-se da violência entre negros registrada tanto por Brunias como Rugendas. São cenas nas quais os escravizados parecem lutar para o divertimento de outrem, reafirmando brutalmente sua posição subalterna.
O óleo oferece uma temática moderna para seu tempo, onde o fim da escravidão surge como uma utopia. Nela é melhor a frugalidade de uma liberdade conquistada que o falso luxo oferecido no cativeiro. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário