quinta-feira, 31 de março de 2022

Fatos e Mitos Sobre Primeira República (1889-1930), Brasil - Artigo

 


Fatos e Mitos Sobre Primeira República (1889-1930), Brasil - Artigo
Artigo


Você certamente já ouviu muito falar sobre a Primeira República. “Coronelismo”, “Voto de Cabresto”, “República do Café com leite”, são termos que por muito tempo foram usuais nas aulas de história para se referir a este período, também conhecido como “República Oligárquica” – afinal, era uma oligarquia, uma elite restrita, que estava no poder – ou “República Velha”.
Logo de cara vale destacar que o termo “República Velha” cada vez mais cai em desuso. Afinal, chamar um período histórico de velho ou ultrapassado não faz sentido. “República Velha” é um termo criado no governo Vargas para desvalorizar o passado e se colocar como o “novo”. Não por acaso a ditadura varguista recebeu o apelido de “Estado Novo”.
Mas é fato que a República brasileira, inaugurada em 15 de novembro de 1889, iniciou com uma série de crises em seus primeiros anos. Já nosso primeiro presidente, Deodoro da Fonseca, conviveu num ambiente de disputas políticas pelo poder, com militares, elites estaduais e republicanos históricos debatendo como seria o Brasil sem o imperador. Para piorar, uma grave crise econômica piorou as condições para Deodoro, que tentou fechar o Congresso e, diante de uma situação política incontornável, acabou tendo que aceitar a renúncia em 23 de novembro de 1891.
Em seu lugar, outro militar: Floriano Peixoto, apelidado de “Marechal de Ferro”. Com um governo forte e repressor, enfrentou a Revolta da Armada e a Revolução Federalista. Floriano, com um presidencialismo centralizador, derrotou ambas e ficou conhecido como o “consolidador da República”. Em 1894, após cinco anos e dois governos militares, acabava o período conhecido como “República da Espada” e o poder era, finalmente, passado para as mãos dos civis.
O “boom” cultural no país:
A Primeira República marca o crescimento do teatro de revista, em especial nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro – que era, à época, a capital do Brasil – e São Paulo. Artur Azevedo, Raul Pederneiras, entre outros, criavam espetáculo que reuniam multidões. Empresários como Paschoal Segretto eram investidores que contribuíam para a realização dos espetáculos.
Também foi nas primeiras décadas da República que o carnaval paulatinamente foi crescendo em todo o país. Em Pernambuco, surge o frevo no final do século XIX; no Rio, aparecia o samba no início do século XX, se espalhando na Praça XI, tomando os morros, mas ainda sofrendo muito preconceito e perseguição por ser relacionada aos negros e à cultura dos excluídos. Práticas populares que eram rejeitadas por uma elite brasileira que queria ser cópia fiel da europeia. Acrescenta-se ainda o fato que mesmo as sociedades carnavalescas, que ainda tinham certo ar aristocrata, precisavam da permissão do chefe de política para realizarem suas festividades.
O “boom” cultural na Primeira República tem relação também com as transformações urbanas, que foram muitas. Em Minas Gerais, uma nova capital foi construída, uma cidade planejada: era Belo Horizonte, inaugurada em 12 de dezembro de 1897, 201 anos depois da criação de Mariana, primeira vila mineira (1696, alçada à condição de cidade, e com o nome atual, em 1745).
A elite festejava a República com a visão de que eram necessárias reformas urbanas. No Rio, já no início da década de 1890, o prefeito Barata Ribeiro destruiu centenas de cortiços no centro da cidade. Logo depois, no intuito de copiar o que aconteceu em Paris, nos primeiros anos do século XX o prefeito Pereira Passos, aliado ao presidente Rodrigues Alves, iniciou o chamado “bota-abaixo”, destruindo centenas de habitações, expulsando os pobres das áreas centrais da cidade e pavimentando a nova Avenida Central – atual Avenida Rio Branco –, via ampla e arejada, nos moldes europeus.
O momento de autoritarismo e violência contra a população levou à Revolta da Vacina – iniciada no Largo de São Francisco de Paula. A rebelião foi resultado não apenas da obrigatoriedade da vacina contra a varíola, mas de um momento conturbado de imposição, pelas autoridades, de uma nova ordem urbana onde os mais necessitados estavam excluídos.
As reformas criaram na capital da República uma região ampla ao final da Avenida Central, que abriga até hoje, por exemplo, a Biblioteca Nacional e o Teatro Municipal. Se hoje os cinemas de rua estão praticamente com os dias contados, na época havia tantos que foi em razão deles que a área recebeu o nome de Cinelândia.
Essa visão sanitarista sobre o espaço físico das cidades também se estendeu para o corpo social. Nesse sentido, o período da Primeira República marca o crescimento da eugenia: tentava-se melhorar geneticamente a população brasileira através do branqueamento, uma perspectiva racista que enxergava as populações negras e indígenas como responsáveis pelo atraso civilizatório brasileiro. Esse discurso alcançou os círculos da intelectualidade, como os institutos históricos e geográficos (IHG) que eram criados em vários estados.
Mas logo surgiram vozes que contestavam essa ideia. Manoel Bonfim, por exemplo, defendia que o colonialismo e o imperialismo eram os verdadeiros culpados pelo “atraso” do Brasil e da América Latina. O escritor Lima Barreto foi outro a defender que os problemas brasileiros não tinham nenhuma relação com a população negra ou indígena e denunciou a eugenia como uma visão racista de nossas elites políticas e econômicas.
Porém, esse mito de que “raça pura branca” ajudaria no desenvolvimento do país ainda perdurou muito tempo, tendo presença significativa até mesmo no meio científico até meados da década de 1930 e, até hoje, possui influência sobre grupos racistas que não devem ser tolerados em uma sociedade democrática e igualitária.
Revoltas urbanas e rurais:
A Primeira República foi um momento tão importante e transformador da realidade brasileira que nela podemos ver fatos históricos dos mais relevantes para nossa história.
Além da já citada Revolta da Vacina, outro evento que sacudiu a capital da República nesse período foi a Revolta da Chibata. Em 1910, apenas vinte e dois anos depois da abolição da escravidão, via-se ainda a continuidade do racismo e da violência contra os negros. E, num grito contra essa repressão, surgiu a incrível ação de João Cândido e seus mais de mil companheiros, que ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro caso o simbólico castigo da chibata não fosse abolido de vez da Marinha brasileira.
E não apenas nas cidades o povo brasileiro se rebelou. No campo, temos o episódio de Canudos, marcante para nossa sociedade. Menos falado, mas igualmente importante, a Guerra do Contestado mostra toda a complexidade de um conflito que envolve moradores de vilas e cidades que se insurgiram contra a construção de uma ferrovia que passaria por cima de suas moradias. Um confronto que durou longos quatro anos, envolvendo messianismo, problemas sociais, disputas políticas.
Aliás, a ferrovia que alimentou o conflito do Contestado não foi a única prevista no período. De 1889 a 1930 o trem ganhou força com a construção de diversas linhas férreas que conectavam o território nacional e facilitavam o escoamento do café, principal produto de exportação do Brasil, do interior até os portos do litoral. De 1907 a 1912, temos o exemplo da construção da Madeira-Mamoré, conhecida como “ferrovia do diabo”, onde centenas de trabalhadores foram morreram vítimas de doenças, entre outros problemas durante as obras em Rondônia.
Logo, é possível afirmar que, embora com menos investimento do que na capital da República – cuja transformação visava tê-la como vitrine do Brasil – outros estados passaram por mudanças importantes. Além das ferrovias, era comum a construção de pontes, de praças e mudanças urbanísticas em geral. Veja, nas imagens, os exemplos de Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Pernambuco.
Não só de café vivia o Brasil:
Atividade econômica importante, em especial na região norte, a fronteira extrativista se ampliou cada vez mais com o advento da república. O Ciclo da Borracha viveu um dos seus auges. Cada vez mais os territórios indígenas eram invadidos por causa do chamado “progresso”. Era o início de uma agressão que perpassa todo o período republicano, chegando até os dias atuais.
Além da borracha no norte, merece destaque a agricultura, que se desenvolveu pelas diversas regiões do país. Plantações de algodão, trigo e outros gêneros alimentícios. No Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e no interior de São Paulo, a criação de gado foi outra atividade econômica em crescimento – com o passar dos anos, se estenderia também a outras áreas da região sul e se ampliaria no centro-oeste.
No Acre, populações ribeirinhas viviam da pesca, extrativismo e agricultura de subsistência. Aliás, os rios eram grande fonte de sustento para moradores do interior do Brasil, como o Parnaíba, divisor geográfico dos estados do Maranhão e do Piauí.
Além disso, cabe ainda lembrar outro ponto que torna fundamental o estudo desse período de nossa história: foi na Primeira República que cresceu e se consolidou o movimento operário brasileiro. Inicialmente sob a égide do anarquismo, que começou com o mutualismo e depois contribuiu com a criação de inúmeros sindicatos com outros fins, a ponto da repressão do Estado aumentar cada vez mais a prática de expulsar trabalhadores estrangeiros [link texto], em especial italianos, vistos como responsáveis por trazer tal ideologia para o Brasil. O italiano Oreste Ristori, por exemplo, com o jornal “La Battaglia” (1904) em São Paulo e o português Tércio Miranda, com o periódico “A Lucta Social” (1914) no Amazonas, tiveram contribuição importante na organização da luta operária.
A Revolução Russa de 1917 incentivou o crescimento do comunismo, que pouco a pouco foi substituindo o anarquismo como ideologia principal dos trabalhadores brasileiros, tendo como momento-chave a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922. Logo, o anticomunismo cresceu na mesma medida, a ponto de serem criadas fake news sobre as condições de vida na Rússia socialista, que diz que naquele país as mulheres eram socializadas pelos homens.
O final da década de 1910 e início dos anos 1920 foi um momento de grande transformação ideológica no mundo, acabando por se refletir também no Brasil. Logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1919), a Europa vivia uma crise econômica, política e social crescente. Como resultado, emergiu fortemente o pensamento autoritário ao mesmo tempo em que aumentava a descrença na democracia liberal.
Em terras brasileiras, essa tendência se juntou à insatisfação crescente em relação à forma como era conduzida a política nacional. Surgiu o Movimento Tenentista no mesmo ano de fundação do PCB, 1922. No meio intelectual, nomes como Francisco Campos e Oliveira Viana defendiam mudanças na Constituição e um Estado mais forte e centralizado, criticando aspectos do federalismo que, segundo eles, dividia os estados em disputas políticas que não contribuíam com o desenvolvimento nacional e para o progresso do país.
Eleições na Primeira República / Fatos e mitos:
Vimos nas linhas anteriores as muitas transformações e fatos históricos importantes ocorridos na Primeira República brasileira. De 1889 a 1930 cresceu o teatro, o cinema, o samba, o frevo e outras manifestações culturais. Da mesma forma, transformações urbanas, mobilização dos trabalhadores e revoltas rurais e urbanas marcaram e tornaram esse período tão importante para a história do Brasil.
Cabe agora abordar um ponto que talvez seja um dos mais conhecidos e falados: as eleições. “Coronelismo”, “voto de cabresto”... Enfim, a manipulação eleitoral é sempre colocada como um vício próprio deste período. Porém, mostraremos que, embora tenham de fato ocorrido fraudes em determinados momentos, a análise do sufrágio eleitoral até 1930 nos mostra outras características importantes, mas pouco relatadas pela historiografia.
A Política dos Governadores, criada pelo presidente Campos Sales, deu a direção do período republicano, mas não era infalível ou indefectível. De fato, o coronelismo foi a base para que os candidatos do governo obtivessem repetidas vitórias eleitorais, mas por diversas vezes ocorreram eleições competitivas. Para citar somente as presidenciais, podemos lembrar os pleitos de 1910 – Hermes da Fonseca vencendo Rui Barbosa –, 1922 – Artur Bernardes vencendo Nilo Peçanha – e de 1930 – Júlio Prestes vencendo Getúlio Vargas –, disputas motivadas por problemas políticos entre as elites, quando não houve consenso sobre o candidato que teria amplo apoio das oligarquias.
Estudos mais recentes mostram que, de fato, houve competitividade em diversos pleitos eleitorais e que havia outras estratégias para além da simples manipulação da contagem dos votos ou ameaça aos eleitores.
Jaqueline Zulini e Paolo Ricci destacam que as estratégias para direcionar uma eleição passavam também por prestar favores a eleitores, oferecer almoços, perdoar dívidas, ou seja, práticas para além da simples utilização do medo e da repressão – embora estas também existissem, é claro. Para esses pesquisadores, a disputa entre governistas e opositores começava já na busca pelo monopólio da máquina-eleitoral, desde o alistamento dos eleitores, até a decisão de quem iria compor as mesas e contar os votos nas Juntas Apuradoras.
Portanto, a “Primeira República” é muito mais complexa do que se pode imaginar e, cada vez mais, novos estudos mostram os múltiplos fatores políticos, culturais, econômicos e sociais deste período. Cada vez mais essa espécie de preconceito que a cerca vem se dissolvendo. Assim, a escrita e o ensino de História têm lançado novos olhares sobre essas primeiras décadas republicanas, de 1889 até 1930. Não como um momento a ser esquecido e relegado ao passado – visão perpetuada pelo governo Vargas –, mas como parte fundamental da vida de nosso país, que deve ser analisada em todos os seus detalhes para uma melhor compreensão da sociedade brasileira e do Brasil como um todo.

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