domingo, 3 de julho de 2022

Questão Cisplatina - Artigo

 


Questão Cisplatina - Artigo
Artigo




Nos últimos anos, a historiografia brasileira tem se dedicado às temáticas relativas à formação do Estado e da nação, oferecendo uma gama variada de abordagens. Parte significativa das análises volta-se para meados do Oitocentos, momento ao qual foi atribuída a consolidação do Estado imperial brasileiro. Alicerçar o Brasil com um governo forte foi uma das principais preocupações de d. Pedro I, que outorgou a Constituição de 1824 regulamentando a distribuição dos poderes do Estado que se erigia; negociou o reconhecimento da Independência frente às demais nações firmando com Portugal o Tratado de Paz e Amizade; conteve as ameaças contestatórias que assolaram o país, principalmente ao norte e ao sul; e envolveu-se em disputas que influenciaram a conformação das fronteiras do Império, em um momento em que integridade territorial e unidade confundiam-se com poder político e econômico.
É justamente neste contexto que se insere a Guerra da Cisplatina, um tema que ainda tem sido pouco abordado pela historiografia contemporânea. Ocorrida entre os anos de 1825 e 1828, a contenda desenrolou-se na região meridional do país, envolvendo o império brasileiro e Buenos Aires pela posse da província Cisplatina (atual Uruguai). A região da Banda Oriental do Rio da Prata, há muito cobiçada pela sua localização estratégica e pelo seu potencial econômico, foi incorporada ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em julho de 1821, a partir de uma decisão do Congresso de Florida, como consequência da articulação de Carlos Frederico Lecor, comandante das forças brasileiras na Campanha Cisplatina.
De acordo com João Paulo Garrido Pimenta, Lecor revelou-se muito competente "na ampliação de sua base de apoio - obtida com alguns dos mais ricos e influentes proprietários de terras, de gado e comerciantes da província oriental, ramificados também na província do Rio Grande do Sul" - indicando o quão complexas e ambíguas eram as políticas que se desenrolavam nas regiões de fronteira. A existência do latifúndio foi fator importante para determinar o entrelaçamento dos interesses locais nas regiões limítrofes à Banda Oriental, como já comprovado por Helen Osório, que indicou, dentre outras as peculiaridades do Rio Grande, a vinculação das estâncias rio-platenses ao mercado e às tensões internas e externas das linhas de fronteiras.
Como lembra Ana Frega, a ideia de fronteira e de limites territoriais "fueron esgrimidos desde los centros de poder con espacios de exclusión, de diferencia, de cierre, se trataba de áreas de interrelación entre sociedades distintas, espacio en el que se operaban procesos económicos, sociales y culturales específicos". O mesmo disse Demétrio Magnoli sobre a necessidade de se considerar que as fronteiras do Rio da Prata eram instáveis e constituíam importantes espaços de interseção que facilitavam o "entrelaçamento de projetos, movimentos e lideranças políticas", sobretudo quando contextualizamos a disputa pela província Cisplatina a partir da sua relação com os movimentos emancipatórios nas Américas.
É interessante compreendermos as disputas às margens do Rio da Prata tendo como foco a pluralidade de culturas, costumes e práticas políticas que estavam em disputa no momento em que as colônias lutavam pela sua independência e que forjam uma identidade americana, como indicou João Paulo Garrido Pimenta. Segundo o autor, no contexto em que erguiam as bandeiras pela emancipação política, os habitantes das Províncias do Rio da Prata reafirmaram-se como orientais, expressando o desejo de prontamente diferenciarem-se dos brasilienses ou dos portenhos. "A província não é a Cisplatina, mas ... a Banda Oriental ou província de Montevidéu", relembrando os pressupostos defendidos por Gervásio Artigas, "considerado oriental entusiasta".
Foi em 25 de agosto de 1825 que a província oriental reconheceu-se independente, declarando "nulos, dissolvidos os atos de incorporação, reconhecimento, aclamações e juramentos arrancados aos povos da província oriental pela violência da força, unida à perfídia dos intrusos poderes de Portugal e do Brasil".
Os orientais não acatariam as interferências de d. Pedro I na região - sinal que já haviam dado desde a proclamação da Independência do Brasil, pois foi somente em 1824 que aderiram formalmente ao Império.
Fato é que d. Pedro I não dispensaria facilmente seu direito de intervir na região, ciente de que a causa da Cisplatina era questão intrínseca à causa nacional, à necessidade de reafirmação do Brasil como Estado soberano, em sua ânsia de constituir-se como um grande império na América e frente ao mundo. O projeto do Império do Brasil e de um Estado brasileiro forte perpassava pela união territorial do Prata ao Amazonas. Além disso, estavam em jogo a autoridade e a legitimidade do monarca, assim como a honra do Brasil Império - preocupação cara no momento em que o país se consolidava enquanto Estado e diante das inúmeras contestações à figura do governante, constantemente desafiada no contexto da guerra de independência e na conjuntura pós-emancipação.
Lembremos que, durante os movimentos que antecederam o 7 de setembro, o Brasil dividiu-se nos conflitos armados contra os portugueses em duas frentes que faziam resistência à emancipação brasileira. Norte e sul demonstravam cooperação somando suas forças contra o governo imperial, radicalizando o discurso e as ações contra o Império. Na Bahia e em Montevidéu, houve quem resistisse à independência do Brasil, mantendo-se fiel à Coroa portuguesa, contribuindo para que se criasse um cenário de instabilidade e de cooperação entre as forças dissonantes, como nos revela uma correspondência enviada ao ministro da Guerra, em 19 de outubro de 1822:
Em consequência ... do aumento da força brasileira, os europeus (portugueses) têm feito todos os preparativos para deixar as defesas da cidade ao norte e estão fortificando as avenidas do Forte de São Pedro, o qual tem víveres suficientes para aguentar algum tempo. General Madeira tem proposto aos comerciantes para trazerem para cá a tropa que ocupa a Praça de Montevidéu e lhes deu prazo até o dia 21 do corrente para considerarem sobre ela, mas ainda não sabemos qual será o resultado ... Na cidade baixa, estão marinheiros armados, e até agora se têm postado com honra nas suas obrigações ....
Somente após derrotar a resistência ao norte, o Brasil pôde reforçar o combate ao sul, onde as tropas portuguesas se renderam no final de 1823. D. Álvaro da Costa estava a favor dos lusitanos, na Banda Oriental. Ele afirmava que a província Cisplatina havia sido conquistada pelas tropas portuguesas e que esta não deveria, portanto, após a emancipação do Brasil, permanecer sob o comando do império brasileiro. Dizia d. Álvaro da Costa em uma proclamação aos brasileiros:
Quando os laços de mútua conveniência não prendem os povos uns aos outros, não desata por si. Não acrediteis a doutrina contrária que vos pregam. Vós só podeis tirar desta luta as tristes recordações do pai, do irmão, do parente morto e dos míseros filhos desamparados que uma infernal política sacrificou. Abandonai a odiosa pretensão em que vossos chefes vos empenharam; eles só defendem seus interesses e não vossos direitos, porque aqui não há ninguém que os pretenda usurpar ... Recordai o amor, a obediência, a fidelidade que vossos pais sempre tiveram a nossos reis: voltai aos vossos lares e pregai a doutrina do homem justo e convidai todos os vossos concidadãos a reentrar na obediência e fidelidade que deveis ao benigno de todos os monarcas, ao nosso Augusto Rei, o Senhor d. João VI...
Na província Cisplatina, d. Álvaro da Costa organizou uma pequena esquadra, porém, não obteve sucesso por muito tempo, pois, como revelado por Brian Vale, à "medida que os brasileiros pouco a pouco apertavam o cerco às suas forças, e os líderes da província manifestavam sua adesão à causa brasileira, a determinação de d. Álvaro da Costa esmoreceu".
Brian Vale afirma também que d. Álvaro da Costa resistiu em regressar para Lisboa, contando com apoio do general Inácio Luís Madeira de Melo à frente dos interesses portugueses na Bahia para fazer frente às fragatas que se dirigiam do Rio de Janeiro à Montevidéu. Estas tinham o intuito de prendê-lo, e coube ao vice-almirante Rodrigo José Ferreira Lobo, comandante das forças navais do império, combater d. Álvaro da Costa. Ferreira Lobo foi criticado por não ter demonstrado a destreza que a situação exigia. Ele foi julgado e absolvido pelo Conselho de Guerra e de Justiça. O vice-almirante perdeu para o opositor três navios: Conde de Arcos, General Lecor e Liguri, fato considerado desastroso, pois qualquer baixa era prejudicial ao império em um momento de escassez de embarcações de guerra.
De acordo com o mesmo Brian Vale, em 1822, o núcleo da Esquadra Imperial era constituído pelas fragatas União e Real Carolina; corvetas Maria da Glória e Liberal; brigue Real Pedro; brigue-escuna Real; 13 escunas, das quais sete encontravam-se estacionadas no Prata; e de aproximadamente 20 navios-transportes e canhoneiras. Dos outros navios, situados no Rio de Janeiro, a nau Martins de Freitas (futura Pedro I), a fragata Sucesso e o brigue Reino Unido eram as mais confiáveis para utilização, enquanto a nau Príncipe Real, que trouxe d. João VI ao Brasil, fazia o papel de navio-prisão devido ao estado deplorável em que se encontrava.
Todavia, mesmo com a vitória das forças do império e com a retirada das tropas portuguesas da Bahia e, posteriormente, de Montevidéu, a pacificação e a adesão à figura de d. Pedro I demandariam muito mais tempo do que os primeiros anos da Independência. A autoridade de d. Pedro I era limitada no contexto pós-1822, como nos revela a carta de autoria do plenipotenciário inglês Charles Stuart ao seu conterrâneo, o ministro George Canning. O documento antecede em nove dias o Tratado de Reconhecimento de 29 de agosto de 1825, indicando-nos que as afirmações de que a unidade ou o Estado teriam se dado com o 7 de setembro de 1822 são um tanto quanto precipitadas.
Não obstante tudo o que se tem dito a respeito do poder e dos recursos deste país, os verdadeiros limites da autoridade do príncipe real não se estendem muito além das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, onde a influência de Sua Alteza Real tem feito a natureza do governo absoluto; entretanto, as cadeias que prendem as outras capitanias ao governo central, não sendo suficientemente fortes para as compelir a suportar alguma parte do peso do Estado, ou a contribuírem com alguma força para o sustentarem, vão gradualmente cedendo aos hábitos locais, melhor adaptados a um governo federativo, do que à manutenção do sistema monárquico que se supõem formarem uma parte. O medo da opinião pública, ou melhor direi, das vociferações do povo, que se deixa perceber em todas as minhas comunicações com o soberano e seus ministros, descobre a fraqueza real deste Estado, e confirma a minha crença de que uma grande porção do espírito revolucionário que se tem desenvolvido nas províncias do norte e do sul.
O processo de construção da unidade territorial e da formação do Estado no Brasil tem que ser visto como fruto de um longo consolidar de interesses e projetos em disputa, o que nos leva a concordar com Ilmar R. de Mattos, quando afirmou a impossibilidade de se conceber a consolidação do Estado brasileiro antes da década de 1840. A carta de Charles Stuart revela-nos que o novo país surgia em um momento de incerteza e de instabilidade, quando se fazia imperativa a necessidade de se criar uma autoridade e uma centralidade política.
"A grande porção do espírito revolucionário" ainda ecoava junto às províncias do norte e do sul, como bem disse Canning, e a pretensão do imperador era aquietar seus antagonistas. Ao escrever para a Corte, o conde do Porto Santo dizia, em janeiro de 1826, que, ao norte, a situação ainda não estava totalmente em ordem. Entendemos, pelo teor da carta, que houve reações ao Tratado de Reconhecimento, conforme o remetente relata abaixo:
Passado o furor do primeiro momento, vão se aquietando os espíritos. Infelizmente, porém, não tem acontecido assim na Bahia, onde nas noites de 29, 30 e 31 de dezembro se quebraram as vidraças da maior parte das casas que tinham posto luminária, depois do que consta houveram (sic) algumas mortes; tal efeito tem produzido pela leitura da Carta de Lei e muito se receia que o mesmo produzirá nas outras províncias, do que esta ficou isenta com a presença e energia do imperador e do seu hábil ministério.
De acordo com Isabel Andrade Marson, a política externa do Primeiro Reinado foi uma sucessão de equívocos. A autora afirma que o inexperiente imperador "enfiou os pés pelas mãos", como diz a expressão popular, ao sacramentar a independência do Brasil pela letra da lei e ao lançá-lo na Guerra da Cisplatina - considerada uma empreitada desastrosa, porque o Império não garantiu a manutenção da dita província ao seu território e ainda levou os cofres públicos ao declínio.
Como afirmou o ex-oficial do Exército do Império, Carl Schlichthorst, conservar a província Cisplatina era de suma importância para d. Pedro I porque "ela formava uma parte integrante do Brasil, da honra nacional e um dispositivo especial da Constituição", exigindo "a sua conservação do melhor modo possível". Lembremos que o artigo primeiro da Carta de 1824 dizia que o Império do Brasil não admitiria qualquer laço, união ou federação que se opusesse a sua independência e que, pelo artigo quarto, d. Pedro I apresentava-se como Defensor Perpétuo do Estado que se forjava.
Como já indicado por John Armitage, a principal resistência ao império não estava somente na força de combate dos orientais, mas na falta de um sentimento que justificasse a Guerra da Cisplatina para os habitantes do Brasil. De acordo com Armitage, os marujos brasileiros estavam em defasagem em relação aos orientais para lograrem mais sucessos na batalha pela província: "eram voluntários e animados pelo espírito de nacionalidade, ... e os brasileiros eram a maior parte recrutas e estrangeiros, os quais, ainda que bravos, não simpatizavam com a causa por que pugnavam".
A mais minuciosa narrativa sobre a Guerra da Cisplatina foi realizada por Pandiá Calógeras, que observou como a batalha no Prata foi uma má empreitada para o império, sob o ponto de vista militar e administrativo, afirmando que, para "os elementos políticos do Brasil todo, a guerra apresentava-se como herança portuguesa, e não como reivindicação nacional". A campanha do Prata não falava à alma popular, como afirmou o autor. Os acontecimentos de 1825 seriam apenas reflexos da política externa iniciada por d. João VI, fruto de um "escopo imperialista e dinástico".
Calógeras disse que a Guerra da Cisplatina fomentou um espírito de desconfiança em relação ao imperador, pois o senso comum era o de que o novo Estado necessitava de paz para progredir e que deveria haver um esforço do Brasil para o estabelecimento de uma aproximação continental com seus vizinhos. O autor comenta também o perigo que a luta pela Cisplatina representou, sob pena de ainda envolver Bolívia e Paraguai na contenda: "quando se complicaram as relações no vale platino e os maus sucessos da guerra puseram o Brasil em situação suspeita ante os demais povos, o Paraguai se tornou, cada vez mais, um perigo potencial que urgia conjurar".
Ele narrou com detalhes todos os movimentos que deram origem à guerra e como o Brasil recuperou o desempenho na batalha, sustentando que o conflito foi apenas consequência da política joanina, como tem sido a percepção da historiografia mais antiga acerca do conflito. Oliveira Lima diz que a expansão portuguesa na região era a principal causa da guerra que se desenrolou nos anos posteriores. Expansão esta empreendida a partir do esforço realizado por d. João VI para anexar a província Cisplatina, ainda que "em oposição a toda a Europa, mesmo contra o aliado inglês ...".
David Carneiro e Alberto Moniz Bandeira33 concordam com Oliveira Lima e com Pandiá Calógeras, sustentando também a interpretação de que a Guerra da Cisplatina seria uma herança da política exterior joanina. Eles reconhecem a impopularidade do conflito e o indicam como um dos principais fatos que contribuíram para a crise de 1831, que levou à abdicação do imperador Pedro I.
Entendemos que o conflito no Prata vai além das justificativas expansionistas iniciadas sob o poder de d. João VI. A questão da Cisplatina insere-se na lógica que regeu as discussões políticas do Oitocentos a partir da reafirmação da soberania do Estado que se constituía e a partir da relação estabelecida entre o imperador, a Câmara, a imprensa, a sociedade, o povo e outros países do cenário internacional, especialmente a Inglaterra.
Os ingleses, como já indicado por John Street e recuperado por Francisca Azevedo, também cobiçavam o controle do Rio da Prata, assim como Portugal. Ambos revelam que, por duas vezes, em 1806 e 1807, a Inglaterra tentou "ocupar militarmente a região na defesa de interesses mercantis, que a cada dia se tornavam mais importantes para o comércio inglês".
Francisca Azevedo demonstrou como as investidas frustradas de anos anteriores foram determinantes para que os ingleses fizessem dos portugueses os seus principais aliados na estratégica conquista da Banda Oriental, tentando aproveitar-se da crise política protagonizada pela América Hispânica. É instigante a relação que Buenos Aires e Brasil desenvolveram em relação aos ingleses no que se refere aos conflitos no Prata. Ambos esforçaram-se para conquistar a simpatia do Lord John Ponsonby, que, seguindo as instruções de George Canning, foi o mediador entre as tensões levadas adiante pelo Rio de Janeiro e pelo governo oriental. Ponsonby afirmava que a autonomia política da Cisplatina seria o melhor destino para a região, levando, consequentemente, à paz. E os ingleses vão trabalhar de acordo com esse objetivo, conduzindo as negociações que levaram ao Tratado de Paz.
Os ingleses mediaram as relações entre Brasil e Buenos Aires, tendo como força motriz seus próprios interesses na região - o que não era segredo para ambas as partes, tendo em vista os esforços empreendidos pela Grã-Bretanha para expandir seu comércio pelo Prata. Foram os britânicos que, por meio de artimanhas políticas, frustraram os objetivos de d. Carlota Joaquina, que desejava levar adiante a ambição de dominar o Rio da Prata, principalmente quando seu irmão, Fernando VII, foi deposto por Napoleão Bonaparte.
O trecho abaixo, de autoria do militar alemão Carl Schlichthorst, que esteve no Brasil a serviço do Corpo de Estrangeiros no Primeiro Reinado, auxilia a ilustrar a força da intervenção inglesa na política externa do Brasil:
Pouca coisa se sabia na capital sobre os negócios no sul. Embora os jornais aparecessem repletos de notícias de vitórias, muitas vezes se comprovavam as mentiras com os navios mandados regressar por imprestáveis e pelos reforços continuamente enviados para Montevidéu. As notícias diretas não chegavam, retiradas no Correio, sendo perigoso manter correspondência com Buenos Aires. Várias pessoas foram presas, o que tornou as outras cautelosas no que escreviam. Falava-se pouco da guerra, porém, geralmente se desejava a paz. Boquejava-se que a Inglaterra se encarregara duma mediação e se esperava Lord Ponsonby para o início de negociações. Como base da paz, pensava-se em declarar Montevidéu porto livre, sob a proteção britânica, e em reconhecer a Banda Oriental como república autônoma. Ambas as soluções contrariavam o orgulho do imperador e feriam o amor-próprio nacional. O monarca considerava toda a amputação territorial lesão a seus direitos soberanos. A parte mais instruída do povo temia, com toda razão, a supremacia comercial da Grã-Bretanha no hemisfério meridional.
Sobre a execução da política externa brasileira no Oitocentos, Amado Cervo e Clodoaldo Bueno destacaram o "jogo de forças que compunham o sistema internacional ... e os objetivos dos Estados dominantes, a inserção do continente americano nesse sistema, ... e o precoce enquadramento luso-brasileiro no sistema internacional vigente, através da aliança-inglesa". O entrosamento entre Brasil e Inglaterra já se manifestara na proteção britânica durante o processo de transmigração da Família Real para a América, na abertura dos portos do Brasil às nações amigas, bem como também durante as negociações para o Tratado de Reconhecimento da Independência do Brasil por Portugal, precedido pela adesão formal da Inglaterra. Esta condicionou seu reconhecimento à autonomia política do Brasil ao comprometimento do império em abolir o tráfico escravo.
De acordo com Leslie Bethell, os ingleses usaram o reconhecimento da independência do Brasil como isca para obter um compromisso prévio de que o império aboliria o comércio de escravos. Segundo também revela-nos D.A.G. Waddell, "a exigência inglesa da abolição do tráfico de escravos em troca do reconhecimento foi repudiada intensamente no Brasil e contribuiu significativamente para que d. Pedro perdesse muito o apoio de que dispunha", o que provocou a abdicação do imperador em 1831.
D. Pedro I assinou a Convenção de 1826, ratificada no ano seguinte, que transformou o tráfico de africanos em prática ilícita, a partir da década de 1830. Segundo Lívia Beatriz da Conceição, as "resoluções da Convenção de 1826 não foram aceitas passivamente por muitos representantes brasileiros, principalmente no que dizia respeito aos seus deputados", já que o tratado foi assinado pelo Executivo sem a ratificação do Parlamento. A pressão da Inglaterra pela abolição do tráfico no Brasil, como lembrou Lívia Beatriz da Conceição, não pode ser a única explicação para o fim do comércio de escravos no país, já que se devem levar em consideração as questões internas que circundavam a necessidade de construção do Estado, como, por exemplo, as tensões políticas entre o Executivo e o Legislativo, bem como a fragilidade da ordem vigente.
Ainda de acordo com esta autora, a pressão inglesa para que o Brasil acabasse com o tráfico não se relacionava com qualquer sentimento humanitário. O que estava em jogo era a consolidação do domínio político e da posição comercial britânica, que interferia cada vez mais no comércio e na política do Brasil.
O mesmo pode ser dito sobre a postura britânica em relação ao conflito pela posse da Cisplatina.
No Rio de Janeiro, registrou-se uma suposição, pois, apesar de se iluminar em festa o Paço Imperial, após a assinatura do tratado, apareceu em folhas litografadas uma alusão ao fato. Aí se representavam, em três colunas, encimadas pelo escudo da Inglaterra, medianeira do tratado, à direita e à esquerda, respectivamente, os da Argentina e o do Brasil, e por baixo a jovem América numa caverna, dando a beber em uma fonte a um leão sedento. Este, pela sua feitura, não se parecia com os da América e poderia representar antes o da Índia Oriental, ou o que se vê na coroa da Grã-Bretanha.
Pelo relato acima, vemos que parte da sociedade tinha o entendimento de que a Inglaterra era de fato o grande leão sedento que se nutria da energia da América, consolidando seu poderio na região. O Brasil libertara-se de Portugal, enquanto os orientais desvencilharam-se da Espanha. Porém, estavam cada vez mais atrelados aos meandros da política britânica, que há muito vinha voltando suas atenções para o hemisfério sul. A Inglaterra mais uma vez mediou um Tratado de Paz que envolvia o Brasil, culminando com o fim da Guerra da Cisplatina, em 1828, e com a criação do Uruguai; e garantiu a livre navegação no Rio da Prata pelo período de 15 anos, ao costurar a convenção definitiva de paz - que não foi bem recebida pelos habitantes de ambas as partes envolvidas no conflito. Tanto brasileiros quanto orientais entenderam que a Inglaterra havia preponderado e logrado benefícios neste processo de pacificação da região do Prata. O fato é que as colônias libertaram-se da dominação de Portugal e da Espanha, mas prenderam-se aos tentáculos ingleses, que tinham interesses em se envolver com as questões políticas e comerciais na América do Sul.
Para concluirmos, é preciso dizer que esperamos ter cumprido o objetivo de provocar o debate e instigar os leitores a pensarem sobre a Guerra da Cisplatina, que ainda precisa ser explorada pela historiografia contemporânea, pois, neste breve espaço, não pretendíamos esgotar o assunto, cujos desdobramentos serão vividos ainda no Segundo Reinado. Pretendíamos apenas tentar defender a ideia de como a contenda às margens do Prata esteve intimamente ligada à emancipação política brasileira, ao processo de construção do Estado nacional e a um dado projeto de soberania que ainda confundia-se com a figura de um monarca forte e respeitado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário