terça-feira, 18 de junho de 2024

"Gilda", Curitiba, Paraná, Brasil

 


Imagem da "Gilda".


Imagem da "Gilda".


Imagem da "Gilda".


Imagem da "Gilda".


A primeira placa feita em homenagem a "Gilda" (foi arrancada e desapareceu).


A instalação da atual placa para "Gilda", parte do projeto “Gilda, você deixou saudades”, de Guilherme Jaccon, para o 67º Salão Paranaense de Arte Contemporânea.


A ex-curadora do MAC-PR Ana Rocha, o artista Guilherme Jaccon e o historiador Paulo Reis, ao lado da placa para a "Gilda".


Projeto Praça de Bolso da "Gilda".


Atual placa para "Gilda", parte do projeto “Gilda, você deixou saudades”, de Guilherme Jaccon, para o 67º Salão Paranaense de Arte Contemporânea.


Atual placa para "Gilda", parte do projeto “Gilda, você deixou saudades”, de Guilherme Jaccon, para o 67º Salão Paranaense de Arte Contemporânea.


Imagem da "Gilda"


Imagem da "Gilda".




"Gilda", Curitiba, Paraná, Brasil
Curitiba - PR
Fotografia

Texto 1:
Curitiba, capital do Paraná, teve a partir dos anos 1970 um surto de remodelação urbana, como outros que já haviam ocorrido, mas que traz em seu bojo uma tentativa de transforma-la em exemplo para outras cidades. A história dessa remodelação tem inicio ainda na década anterior quando os eventos de 1964 encontram uma cidade tipicamente classe média, com expressivo contingente universitário, pois não havia universidades no interior do estado. Contudo esses universitários não tiveram força para mudar a sociedade. A cidade que na década de 1950 havia elegido Plínio Salgado como candidato mais votado nas eleições presidenciais de 1955, confirma sua visão conservadora ao permitir que o Movimento TFP (Tradição, Família e Propriedade) ganhasse as ruas para defender uma sociedade organizada sob preceitos cristãos e baseada em um governo forte o suficiente para impor a moralização social. O então prefeito Ivo Arzua Pereira, em 1965 cria o IPPUC (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano) com o objetivo de planejar, ordenar e orientar o crescimento da cidade, que possuia uma população de 609.026 habitantes (IBGE, 1983) e chama o jovem arquiteto Jaime Lerner para coordenar o Plano Diretor da cidade. Jaime Lerner filia-se a ARENA e em 1971 é indicado como prefeito biônico. Na continuidade, Lerner é indicado novamente em 1979 e eleito em 1989.
A “Cidade Sorriso” passa então por alterações físicas que transformam suas feições. Mas estas feições segundo Santos “ocultam cidades que demarcam diferentes momentos de sua historia, embora uma memória oficial encarregue-se de conservar alguns marcos do passado”. As alterações propostas visavam a construção de uma urbe que transformasse a velha Curitiba provinciana em uma cidade moderna, voltada para o século XXI , a cidade modelo de um Brasil viável. No entanto, apesar do numero de habitantes, a vida curitibana resumia-se nesta época a rua XV de Novembro, onde tudo acontecia, e avenida Luís Xavier, espaço que vai ser conhecido como “Boca Maldita”, e as mudanças começam por ali, quando recupera-se o antigo nome de Rua das Flores e a via é transformada em um calçadão apenas para pedestres (ate bicicletas foram proibidas) e num espaço de diversas quadras recebe jardineiras floridas e quiosques de venda de flores. As três gestões de Lerner foram pautadas por obras que revolucionaram a arquitetura dos edifícios. Construiu um sistema viário com canaletas exclusivas para ônibus, estações tubo, sistema único de passagens, ciclovias que cruzavam a cidade. Limpou e alargou ruas; melhorou a coleta de lixo, instituindo a coleta seletiva. Converteu uma velha pedreira em local de espetáculos, ao qual deu nome do poeta Paulo Leminski. Recuperou o antigo Paiol de Pólvora transformando-o em teatro. Velhos ônibus foram usados nas Linhas de Oficio; revitalizou praças e espalhou parques pela cidade. Edificou a Ópera de Arame, no meio da mata, bela no visual mas ruim de acústica; criou o Jardim Botânico. No Centro Histórico instalou o Relógio das Flores, que constituído de flores da estação, ao marcar o tempo curitibano também marca seus atrasos e paradas. A Cidade Sorriso recebe outros cognomes como Cidade Modelo; Cidade Laboratório; Capital Ecológica ou, como quer uma autora, Cidade Espetáculo. A classe média vai ao delírio, pois deixava-se para traz o “complexo de comarcões” que acompanhava os curitibanos. Por outro lado a propaganda aliada ao êxodo rural trouxe para a cidade grandes levas de migrantes, formando vários pontos de favelização, atingindo a cifra de um milhão de habitantes. Se a classe média exultava de satisfação, vozes dissonantes se faziam ouvir não apenas pela oposição ao prefeito, mas também por escritores e jornalistas, como Wilson Martins que dizia Curitiba ser “classe média em tudo”, ou Aramis Millarch, ao comentar a suposta exigência do público curitibano, “ O público de Curitiba não é exigente nem culto”.
A cidade transformava-se vertiginosamente, mas não a sociedade, e neste ambiente controvertido na rua XV aparece a figura de Rubens Aparecido Rinque. Rubens Rinque nasceu em Ibiporã /PR em 1950 e deve ter vindo a Curitiba em 1970 com as levas de migrantes em busca de um novo espaço para viver. Morreu em 1983, e embora a maior parte da população sequer tenha ouvido alguma referencia a ele, muitos curitibanos ainda guardam na lembrança o personagem “Gilda” como se auto denominava. Ainda faz parte do imaginário dos poucos que ouviram falar ou tiveram contato com ele. Foi execrado por muitos, mas para outros era a “alegria da XV”. De temperamento forte e franco, vestia-se de mulher e sua sobrevivência nas ruas se dava às custas de pequenas chantagens, as quais praticava com muita irreverência. “Uma moeda ou um beijo” era seu mote de aproximação, constrangendo o cidadão abordado, diante dos transeuntes que paravam para aguardar o desfecho. Também usava o subterfúgio de, a mando de alguém, amigo ou inimigo do cidadão desatento, aplicar-lhe um sonoro beijo; o que lhe resultou em inúmeras corridas para fugir da sanha de suas vítimas.
Senhores da mais ilibada moral eram seus alvos preferidos, que irados e pasmos pediam ação da policia contra aquele individuo abusado. As ações de “Gilda” incomodavam os senhores que freqüentavam o espaço denominado Boca Maldita, que se dizia tribuna independente de Curitiba, onde se reuniam cidadãos aposentados ou desocupados para olhar as moças que por ali transitavam, falar de política e falar mal dos desafetos. Seu líder era Anfrisio Siqueira, que institucionalizou a Boca onde inclusive distribuía comendas a seus freqüentadores, desviando-se dos propósitos iniciais de jogar conversa fora. Neste espaço institucionalizado, Gilda era persona non grata. Mas Gilda tinha também admiradores que a consideravam rainha da rua XV, onde reinou alegre por vários anos. Gostava de dançar na frente de lojas de discos, divertindo os transeuntes da cidade que adotou. Nas estréias teatrais ou de filmes postava-se à porta dos estabelecimentos, dançando e se exibindo numa espécie de avant-premiere. Quando vestido de mulher, brincava de streep-tease, choviam moedas atiradas pelos estudantes que a assistiam. Adorava um fotógrafo e sempre que podia exibia-se para suas lentes.
Como dito acima, Gilda era persona non grata na Boca Maldita, onde foi criada uma Banda Polaca que sairia no Carnaval de 1981 e previa-se a irreverente “Gilda” dançando na Banda. Para evitar sua presença, o cidadão foi preso e assim permaneceu durante todo o carnaval, e muito se falou que foi a mando de Anfrisio Siqueira. Como reação, o Bloco do Cadáver, um dos blocos que desfilava antes das escolas de samba, usou o tema e procedeu o enterro simbólico do Sr. Siqueira na avenida. Também a prisão arbitraria pela Delegacia de Costumes desencadeou uma onda de protestos em setores da sociedade. Rubens inicia na prisão uma greve de fome e, debilitado, foi transferido às pressas e em sigilo para um Hospital Psiquiátrico da cidade. A Imprensa questionava a retirada de “Gilda” de circulação (para não atrapalhar a Banda Polaca) e estranhava as vistas grossas que a polícia fazia em relação aos guarda-costas da Banda, muitos conhecidos como baderneiros da cidade.
Em 1982, Gilda sofreu um atentado a tiros e, embora tendo conseguido escapar, um dos tiros atingiu uma jovem estudante que ficou paralítica. Foi aberto um processo, mas não se descobriu o autor dos disparos.
Este cidadão foi taxado de bicha, travesti, homossexual, veado, gay, maluco, como também recebeu o titulo de alegria do carnaval, rapaz alegre, figura folclórica, e foi alvo de diversas homenagens, como em 1982, a do Bar Bife Sujo, reduto de intelectuais da época, que fez desfilar um Bloco de Sujos, cujo tema era “Gilda”, e trazia o próprio como porta estandarte. Um Obelisco que existia na rua XV foi durante algum tempo seu marco de glória. Mas ainda em 1982, uma reportagem do Jornal Diário do Paraná, o denominava figura folclórica de Curitiba, não somente pelas suas andanças pela Boca Maldita e rua XV de Novembro, mas também por suas participações nos fracos carnavais curitibanos, animando os foliões. Nesta matéria, relatava-se a miséria em que Rubens estava vivendo, numa situação lamentável, sem roupas, dormindo nas praças, com enfermidades sem condição de tratamento.
Desde a mudança do albergue noturno, do centro da cidade, dormia ao relento, sob marquises, vivendo como mendigo, os cabelos em desalinho, mal cheiroso, vestidos e calças esfarrapadas.
No entanto continuava a circular pela cidade, maltrapilho e apresentando alguns sinais de debilidade. A matéria relatava também que todas as noites uma kombi da Secretaria de Saúde passava pelas praças recolhendo os mendigos que dormiam nos bancos, mas que não o recolhia, deixando-o ao relento.
Mas “Gilda” pretendia ainda brincar o próximo carnaval , embora temesse ser preso como anteriormente, já que se anunciava um arrastão da polícia para antes do reinado de momo. O argumento era que, como havia dançado nos comícios dos candidatos a governador (Jose Richa e Saul Raiz) sem ser importunada, esperava o mesmo acontecer.
Morreu em 15 de marco de 1983. Foi encontrado morto em uma casa abandonada. Consta que morreu de meningite, cirrose hepática e bronco pneumonia, mas a população das ruas falava em espancamento na noite anterior, e que a faixa que portava na cabeça, no caixão, era para esconder as marcas da agressão.
No dia seguinte a sua morte, uma reportagem da Folha de Curitiba lembra declarações de “Gilda” como o de ser o primeiro gay desta cidade, no sentido de rapaz alegre, e frases como "Não sou de transar com gente do mesmo sexo. Tenho vontade de me travestir, travisto-me e curto o lance na maior. Pena que nem todos me compreendam".
Recebeu diversas homenagens, inclusive no Obelisco, que ao fim de alguns dias foi retirado a mando de Anfrísio Siqueira. Foi também homenageado em anos subseqüentes por grupos teatrais; em 1995 com um conto do escritor Wilson Bueno, publicado no jornal Gazeta do Povo com o titulo de “Viado”, no qual ele revive a história de “Gilda”, seu comportamento, suas artimanhas e façanhas na Boca Maldita.
Mas outras falas também se ouviram, quando se aventou a hipótese de colocar o nome de “Gilda” em uma placa de bronze no Obelisco, como “certas pessoas só querem aparecer, mesmo que para isso tenham que usar um defunto”; "tudo o que aconteceu é uma vergonha para Curitiba. A Gilda eu conheci, era um pústula, sifilítico, um bêbado que vivia provocando as moças "; “Gilda tinha que ser internada, ela tinha que morar num hospital” ou ainda, “não tenho nada contra a Gilda, muito pelo contrário, mas homenagem a troco de que?”.
Enfim “Gilda era a encarnação do paradoxo da cidade. Um estudioso comenta que levou facada, escapou de morrer enforcado por um mendigo, foi espancado diversas vezes, levou tiro, mas nunca reagiu com a mesma violência. Suas passagens pela polícia registram desacato as autoridades, atentado ao pudor, vadiagem, alcoolismo, e outras transgressões. Não há registro de casos graves envolvendo seu nome”. Ele apenas gostava de afrontar a sociedade curitibana que se queria moderna e perfeita e por isso foi alvo de vigilância e perseguição. Desmascarou a hipocrisia com sua “arte da existência”.
“Gilda” é um personagem interessante de ser estudado se aliada a sua biografia, e independente de sua sexualidade, estudar-se a moral da cidade que a acolheu, as relações de poder e por que não sua ética, sua subjetividade e sua arte de viver. Embora vivendo numa cidade preconceituosa, provinciana, enfrenta o poder estatizado, a polícia, o institucionalizado “Boca Maldita”, e as suas próprias condições econômicas adversas para “curtir” seu gosto em travestir-se e divertir-se. Não se vinculou às regras dos cidadãos ilibados, comendadores da Boca, mas às suas próprias, naquilo que Foucault entende por estética da existência, ou uma maneira de viver na qual o valor moral não provem da conformidade com um código de comportamentos nem de um trabalho de purificação, mas de certos princípios formais e gerais no uso dos prazeres, na distribuição que se faz deles, nos limites que se observa na hierarquia que se respeita. Rubens Rinque fez de sua vida um reflexo de liberdade que percebia como jogo de poder. Ele apenas gostava de afrontar a sociedade curitibana que se queria moderna e perfeita e por isso foi alvo de vigilância e perseguição. Desmascarou a hipocrisia com sua “arte da existência”. Trecho de texto de Maria Ignes Mancini de Boni.
Texto 2:
A contar pelos ânimos, 2017 pode se tornar o “ano da graça da ressurreição de Gilda”. Não a fatal Gilda da atriz Rita Hayworth ou a multiartista franco-brasileira Gilda de Abreu – ambas merecedoras de uma bancada de incensos –, mas o morador de rua Rubens Aparecido Rinque, figura das mais populares na Curitiba das décadas de 1970-1980.
Gilda, como Rubens era conhecido, teria chegado à cidade pouco antes da Geada Negra, em 1975, e aqui encerrou sua participação especial em 15 de março de 1983, aos 32 anos, com os requintes de crueldade destinados aos miseráveis: morreu tuberculoso, com cirrose e sob os efeitos de uma meningite purulenta. Alguns a viam como uma travesti pós-dilúvio universal, outros como um doidivanas trajando saias. Morava num cortiço da Desembargador Motta. Filava cigarros e angariava uns dobrões para tomar um trago, sempre debaixo de uma ameaça: “Cincão ou um beijo?”
Havia quem lhe desse o dinheiro e encomendasse a vítima para seus lábios, o que mais de uma vez acabou em pancadaria, colocando-a no time da valente Madame Satã. Tinha cicatrizes deixadas por facadas. De todas as suas performances, contudo, a melhor era a de festeira. Dançava livre no petit-pavê e ali exibia seus vestidos rotos, que nada combinavam com a barba por fazer e com os sapatos de rapaz. Puxava conversas descabidas que divertiam os boêmios e os jovens em núpcias com as horas. Em miúdos – exceto pelos caretas, era amada com a mesma devoção destinada à poeta Helena Kolody. Não duvidem.
Ao saber do passamento de Gilda em condições de indigente, os conhecidos – e tudo que é alma que passava pelo Calçadão da XV, seu CEP oficial –, dedicaram-lhe exéquias polonesas. Foram três dias de luto na Boca Maldita, expressas em bilhetes mimosos presos a um obelisco de pedra. Já se falava então em lhe dedicar uma praça, o que provocou uma grita impressa nas páginas dos jornais. Ficou nisso mesmo. Depois do enterro, no Cemitério Santa Cândida, num jazigo doado pela travesti Márcia, a paixão, vida e morte se Gilda se tornou uma conversa dos mais velhos, dos malditos, dos poetas e dos inconformados.
Foi assim pelo menos até dezembro passado, quando movimento encabeçado pela ativista trans Maitê Schneider, em parceria com o agora vereador Jorge Brand, o Goura (a partir de uma ideia do crítico de arte Paulo Reis), reivindicou que uma esquina abandonada da Rua Visconde de Nácar com a Cruz Machado abrigue a “Praça de Bolso da Gilda”. Antes que lhe atirassem a primeira pedra, Maitê conseguiu uma parceira boa o bastante para um cala-boca geral: o cartunista Laerte desenhou um belíssimo perfil da travesti mendiga, imagem estampada no tapume do terreno baldio que dará origem à praça. Caiu na rede, ninguém mais segura. O território está demarcado – e se der briga, o que é provável, vai ser coisa de cachorro grande. Sexta-feira próxima, na Câmara, os envolvidos fazem um novo ato, dessa vez delegando tarefas para os que se voluntariaram a trabalhar na fundação do novo logradouro.
O projeto segue os moldes da “Praça de Bolso do Ciclista”, na São Francisco com a Presidente Faria. Deve ser erguido com uma mãozinha do poder municipal em parceria com a sociedade organizada, no caso, a comunidade LGBT. É supimpa. A “Praça de Bolso da Gilda” prevê ampliação da calçada – um alento para ajudar a atravessar um dos cruzamentos menos amigáveis da paróquia –, rampa de acessibilidade, estrutura para ciclistas, minipalco para shows. Melhor: do minúsculo espaço em diante deve surgir uma nova ciclofaixa, rumo à Praça Tiradentes, o que vai amenizar o astral de filme de terror que ronda a Cruz Machado. “Será uma acupuntura urbana”, resume Goura.
Ninguém ainda se deu ao trabalho de biografar Rubens Aparecido Rinque, a Gilda, paranaense de Ibiporã, nascido na simbólica data de 7 de setembro de 1950. Mas seria tolice dizer que lhe tenham virado as costas. É dona de fina iconografia. Na década em que esmolou moedinhas e atenção na soleira do Bar Maringá, foi documentada por bambas do gênero. Seus retratos são joias na produção de Lina Faria, Fernanda de Castro e Karin Van Der Broocke. Ponha-se na lista os fotógrafos Julio Covello, Luis Stinghen e Alberto Melo Viana – esse, com relativa folga, autor da mais impressionante dentre as muitas fotos feitas do pobre Rubens.
A imagem foi captada numa noite de fevereiro de 1978, na Rua Cândido Lopes, diante do mítico bar Bife Sujo. O “Bife” era o endereço oficial de poetas como Paulo Leminski, de artistas como Rogério Dias, do músico Ivo Rodrigues. Gozava da preferência de intelectuais e jornalistas em geral. Diz-se que seus drinques assistiram à fundação do jornal Correio de Notícias, que tinha ali sua mais importante sucursal.
Gilda não saía de lá de mãos abanando – ganhava meia dúzia de cigarros e os fregueses ilustres lhe pagavam a cachaça, sem chiar. “Se não estivesse torrada, dava até para levar um papo”, conta Alberto Melo Viana, confirmando que a mendiga parecia ter boa instrução e algum verniz cultural. Adorava carnaval. E a turma do estabelecimento tinha um bloco de folia, cujo cortejo se limitava a ir até o Calçadão, uma quadra abaixo, e voltar correndo para a mesa, onde estava perto das geladas e a salvo dos Cavalheiros da Boca, com quem as fuças não batiam.
Foi nesse clima de samba, suor e cerveja que Viana a flagrou não fazendo micagens para divertir os bebuns, mas com o peito nu, os cabelos quase raspados, a barba por fazer. No pescoço, um colar de conchinhas do mar. As alças de um vestido puído desciam até a metade dos braços abertos. Em vez de insanidade, placidez. Pronto. Ao fundo desse balé, a cidade em movimento. É o tal do instante mágico de Cartier-Bresson, do qual se sai com uma pulga atrás da orelha. Gilda podia caber em qualquer definição, de boneca a maltrapilha de batom, mas ao mesmo tempo em nenhuma. Essa ambiguidade talvez explique a compaixão que seus contemporâneos lhe dedicaram.
Do muito que se escreveu sobre ela – artigos acadêmicos e três montagens de teatro –, um dos registros mais contundentes e menos conhecidos é uma peça jornalística, “A morte de Gilda, a alegria das ruas”, do veterano Paulo Marins. Saiu publicada na revista Panorama de maio de 1983 e poderia, com folga, figurar na biblioteca de textos fundamentais para entender Curitiba e sua fauna. Com elegância, Marins faz uma espécie de “a morte e a morte de Gilda”, pontilhando o que poderia ser um mero obituário com informações que explicam o reinado da travesti no imaginário local. Do mesmo naipe, apenas a escrava forra Maria Bueno.
Fica-se sabendo na reportagem da placa de bronze colocada em homenagem a Gilda, na XV; dos sambas a ela dedicados por Paulo Vítola e Cláudio Ribeiro; de seus entreveros com o presidente da Boca Maldita e da Banca Polaca, Anfrísio Siqueira; dos dias que descansou anônima na gaveta 66 do IML, até que os familiares – que por certo não se orgulhavam muito de seus trejeitos de Salomé – mandaram os documentos para que fosse sepultada.
Marins descreve com perícia os populares que atiraram vinténs ao caixão doado por Carlos Syzocki, da Funerária São Pedro. Dessa vez, não por medo de ganhar um beijo da boca banguela. Detalha que foi enterrada ao lado de Martinha, em tese a primeira travesti paranaense, assassinada por um estudante de Medicina. Ao fim da leitura, resta se entregar ao primoroso curta-metragem Beijo na Boca Maldita, do cineasta Yanko Del Pino. E lembrar do verso a ela dedicado pelo poeta Antonio Thadeu Wojciechowski: Gilda é “um pecado atrás da porta”. A pracinha de 120 metros quadrados que lhe será erguida numa esquina violenta da capital, com sorte, pode acordar o melhor de nós outra vez. Tomara. Texto de José Carlos Fernandes / Gazeta do Povo.
Texto 3:
Era 17 de março de 1983, e a “Gilda da Boca Maldita” havia acabado de morrer. O jornal Tribuna do Paraná falava sobre à travesti que, naquela época, era uma das figuras populares mais conhecidas no centro da cidade: “Enquanto nenhum familiar reclama o corpo que se encontra na geladeira do Instituto Médico Legal, as manifestações pela morte de “Gilda” já começaram, espontaneamente. Os estudantes foram os primeiros, ao lado dos “gays”, a colocar bilhetes e velas acesas no marco “Boca Maldita”, já na noite de anteontem. Ontem à tarde, o suplente de deputado estadual, o folclórico Pedro Lauro, ao lado do obelisco de granito, começou a arrecadar contribuições para a confecção de uma placa de bronze para homenagear a “Gilda”…”
Enquanto a morte de Gilda comoveu os seus, levando cerca de 300 pessoas para o enterro, algumas até inesperadas – como o ex-vereador Algaci Túlio, que teria carregado seu caixão – no cemitério do Santa Candida, a associação da Boca Maldita se recusou a estender sua homenagem. Na época, um movimento realizou uma vaquinha para a confecção de uma placa. Ela diria: “Gilda, você deixou saudades. Do povo de Curitiba”. Porém, o pedido foi negado pelo presidente da associação à época, o político Anfrísio Siqueira, que era publicamente contra qualquer comoção entorno do falecimento da travesti.
Aí, quase 40 anos depois, só em abril de 2022, Gilda ganhou a homenagem que foi idealizada no começo, e até mais. 
Foi através do trabalho do artista e produtor cultural Guilherme Jaccon, para o 67º Salão Paranaense de Arte Contemporânea, que a placa para Gilda foi finalmente instalada. Não só isso, ela ganhou um cortejo carnavalesco, com sambas e jograis feitos especialmente para ela.
Com cara de monumento ou marco público, esse trabalho de arte trouxe à tona uma memória afetiva de muitos, uma figura marginalizada e o debate sobre quem tem direito de lembrado no espaço público.
“Meu objetivo é a reparação histórica. Se um grupo de pessoas, fez um abaixo-assinado, juntou dinheiro, fez uma placa e as instituições negaram na época: o mínimo é 40 anos, entendendo que os LGBTs fazem parte da sociedade, são de Curitiba e que ela é uma figura importante… O mínimo é recolocar essa placa.”, disse Guilherme, em entrevista.
Mesmo assim, pode ser que a homenagem do artista também seja pontual, e que a placa suma de lá até o fim desse mês de Outubro, quando o Salão Paranaense terminar.
Naquela época, Gilda era quase um personagem onipresente na região da Boca Maldita, no centro de Curitiba. Aparentemente, quem não a visse na rua, esperava ela aparecer a qualquer momento dobrando a esquina. Jornais a chamavam de um ser “folclórico” e irreverente, justificando a sua presença garantida nos carnavais da cidade e também o seu jeito teatral – para não dizer transgressor – numa das regiões mais emblemáticas da cidade.
Era o tempo dos “Cavaleiros da Boca Maldita”, quando a “confraria machista” – fundada pelo político Anfrísio Siqueira -, ainda se reunia naquela esquina da Av. Luiz Xavier, entre os bares e cafés, para discutir os assuntos do momento. Lá, a travesti Gilda, que não possuía casa e nem posses, perambulava, pedia trocados, dançava, provocava.
Sua morte trouxe comoção ao nível da figura pública que era. O Estado do Paraná publicou, já no dia seguinte à morte de Gilda, que o IML teria recebido vários donativos para o funeral. Nem precisou. Uma funerária da cidade doou um caixão, a travesti Márcia Regina cedeu parte do túmulo da família para o enterro e roupas foram doadas para o velório. Centenas de pessoas compareceram ao funeral e, após o enterro, transformaram o obelisco da Boca Maldita num tipo de memorial.
Hoje, Gilda é lembrada, sobretudo por quem viveu o seu tempo, como aquela que distribuía beijos por quem passava na Boca Maldita. Muito é contado através da oralidade, em relatos de memória de quem conviveu com a travesti. São poucos, mal organizados ou quase inexistentes os registros sobre Gilda em acervos das instituições municipais. Uma pena. Quem confere no Google, mesmo assim, vê que ela sobrevive em várias reportagens, documentários e trabalhos acadêmicos.
“A Gilda, do que eu encontrei, ela era muito ligada ao Carnaval. (…). É uma pessoa que viveu numa miséria, e ficava na Boca Maldita pedindo “um trocado ou um beijo”. Com algumas pessoas que conversei da época, diz que tinha as pessoas que ela ia voluntariamente, e algumas pessoas que pagavam ela pra ficar rindo dela. Então, tem esse lugar do “bem e mal”. Mas, ela morou ali. Morava também na Des. Motta, onde ela faleceu. Era uma pessoa que todos tinham um afeto por ela. Não era uma figura indesejada.”, disse Guilherme Jaccon.
Considerar Gilda apenas como um personagem alegre e caricato, uma figura do Carnaval ou mera quebra da monotonia citadina é uma redução grosseira do que ela representa hoje, sobretudo para a comunidade LGBTQIA+ de Curitiba. A presença de uma travesti, naquele tempo, circulando num ambiente masculino, fazendo graça e deboche, é encarada como resistência.
Assim, a maneira que Guilherme Jaccon escolheu para homenagear Gilda, na forma de um contra-monumento, reflete muito sobre como lembrar, nos dias de hoje, de alguém que viveu e sofreu sendo quem é num contexto social e histórico que empurrava para a marginalidade.
Quem passa na Boca Maldita hoje vai precisar procurar pela placa em homenagem à Gilda. Não parece uma “obra de arte”, e nem foi pensado para ser um, como comentou Guilherme.
Ali, bem próximo ao monumento da Boca Maldita (a escultura de pedra que lembra uma boca e costumava ter dentes de metal), bem de frente para a Banca da Boca, está instalada a placa para Gilda. Ela diz “Gilda, você deixou saudades”, acima da data de falecimento.
Como o projeto do artista faz parte do Salão Paranaense, na categoria de intervenções urbanas, os trâmites burocráticos não foram os mesmos do que um “monumento”. Foi isso, justamente, que garantia sua aceitação. Segundo Guilherme, quando seu trabalho era barrado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), responsável pela paisagem da região, a diretora do Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Ana Rocha, precisava recorrer ao órgão: “Ela tinha que ir lá pessoalmente e falava “Não é uma placa, é uma obra do artista Guilherme que estará no Salão”. Aí eles falaram “Ah, então tá.”
A placa foi instalada num local muito próximo ao que deveria ter sido em 1983. Bem ao lado dela está o obelisco da Boca Maldita, onde existem algumas outras placas mais oficiais, instaladas pelos políticos locais. Ela se integrou à paisagem habitual da Rua XV, com seu ar de autoridade. Como resultado, foi até confundida como um gesto patrocinado pela Prefeitura.
“O que rolou, que eu achei muito legal, é que no dia seguinte da instalação tinha muita gente postando no Facebook e algumas agradecendo o Greca, achando que é da Prefeitura. Porque ela tem esse “layout”, né? Eu queria isso. Queria que fosse uma placa que a pessoa passa e pense que é uma placa da cidade. Não queria que fosse uma “obra”. É a placa que a Gilda devia ter tido em 83…”, contou Guilherme.
Na verdade, a placa original, aquela encomendada em 1983 logo após a morte de Gilda, era um pouco diferente, um pouco estilizada, como se nota em imagem do post.
É importante dizer que, lá em 1983, a placa inicial não deixou de ser instalada por qualquer questão estética. À época, Anfrísio Siqueira, dizia simplesmente ser “impossível”, justificando que o local era tombado como patrimônio histórico. Também dizia, ao mesmo tempo, “que o travesti Gilda nada fez para a cidade e não pode receber tal honraria.”, como ficou registrado no jornal Gazeta do Povo, em 20 de março de 1983. Após esse embate com os amigos de Gilda, placas em homenagem ao próprio Anfrísio e da fundação da Boca Maldita foram instaladas.
A memória de Gilda, em uma cidade conservadora como Curitiba, transparece uma ambiguidade sobre o que ela representava para aqueles que a conheciam e os contornos dessas relações.
Em alguns grupos de Facebook que reviram lembranças do cotidiano de antigamente, como “Antigamente em Curitiba” e “Curitiba Antiga”, Gilda volta e meia aparece em alguma publicação. Os comentários, muitas vezes, a lembram com carinho.
Falando sobre como e por que Gilda alimenta lembranças tão afetuosas e despertou admiradores no seu tempo, Guilherme comentou: “Eu acho que a Gilda tem uma coisa, que talvez tenha sido um pouco minha motivação de ter ido a fundo niso, que Gilda é o oposto de Curitiba, né? Ela é o deboche. Ela debocha do conservadorismo, da caretice da cidade. Eu vejo ela rindo de Curitiba, quando eu penso nas coisas, sabe? Eu acho que isso, talvez, cause alguma coisa em pessoas que talvez não sejam tão conservadoras assim, sabe? (…) Acho que uma sensação de “puts, eu não preciso ser tão duro”. Eu vejo desse jeito. (…) A Gilda afronta, ela afronta Curitiba. Acho que por isso passou a ser um ícone da comunidade LGBT também.”.
Não é possível esquecer que Gilda era tão presente na vida das pessoas, entre outros motivos, porque precisava pedir dinheiro para sobreviver. Isso tudo para não dizer também que esses saudosismos trazem apenas uma superfície do tratamento que Gilda provavelmente recebia, correndo o risco de transparecer uma visão fetichizada acerca da travesti da Boca Maldita.
O gesto de Guilherme vai justamente em outro caminho. Usando o “artifício da arte”, como ele diz, conseguiu contornar os impedimentos de 40 anos atrás. Poderia ter feito outra coisa, em outro lugar, mas qualquer vírgula diferente não reviveria essa memória da mesma forma.
Entrando num universo mais oficial, dando ao seu trabalho de arte uma roupagem de homenagem pública – e vice-versa -, ele coloca Gilda num campo além de uma mera lembrança caricata. Com a placa, o cortejo e o arquivo que está construindo, ele não a deixa cair no esquecimento.
“Gilda, você deixou saudades” é mais um de vários projetos artísticos e acadêmicos que se debruçaram sobre a vida da Gilda da Boca Maldita. 
Aqui vão alguns outros: documentário “Beijo da Boca Maldita”; artigo “Gilda em Curitiba: o corpo transgressor invade a cidade” de Caroline Marzani e Naira Nascimento; sobre o cortejo para Gilda, em abril de 2022, organizado por Guilherme Jacoon; sobre o espetáculo “Para Gilda com Ardor”, de Ricardo Nolasco; exposição “Gilda, sem limites”, realizada no Museu da Imagem e Som; e sobre o circuito de espetáculos e performances “Gilda convida Maria Bueno”. Texto de Renan Archer / Plural.
Texto 4:
"Meu nome é Gilda, eu sou travesti” – apresentava-se diante dos pedestres ou nas festas curitibanas no intuito de angariar algumas moedas para sobreviver, além, é claro, de roubar beijos dos rapazes com o seu bordão “uma moeda ou um beijo?”. Algumas figuras são tão potentes que não marcam somente a memória das pessoas, mas também a memória de uma cidade e de uma geração. Gilda, portanto, faz parte de uma mitologia de Curitiba, como se fosse uma divindade ou personagem histórica que mora em um imaginário coletivo uma vez que registros, documentos e fotografias da sua pessoa são extremamente difíceis de serem encontrados.
Gilda de Abreu, nascida em 1950, teve seu corpo encontrado em 1983 em um casarão abandonado na Rua Desembargador Motta. Sua morte é cercada de mistérios, pois apesar do atestado de óbito constar doenças como pneumonia, cirrose e meningite; existem burburinhos de que ela teria morrido de frio ou que fora assassinada por um amante ou que tivera se suicidado. 
E é interessante notar que a história de Gilda é cercada de rumores, de dizeres, de causos – alguns mentirosos ou aumentados – que tem o intuito de dar veracidade a essa personagem tão importante por transgredir o espaço social, as normas de gênero, as convenções de uma época e de uma cidade. Se tem uma palavra-chave para definir Gilda é: transgressão.
Dizem que sua chegada a Curitiba se deu por volta dos anos 1970 após fugir com o circo. Ela passa a figurar fortemente o cenário de efervescência cultural da cidade, circulando pela Boca Maldita, pela Rua das Flores, pelas diversas praças da região central de Curitiba. Gilda também era uma pessoa em situação de rua, de modo que não figurava só pela quiproquó noturno das festas, baladas e desfiles de carnaval, mas perambulava no dia a dia entre jornalistas, empresários, estudantes, office boys e outros trabalhadores no intuito de conseguir moedas e se demarcar artisticamente a partir da sua expressão: uma barba volumosa, um batom avermelhado, vestidos, trejeitos, desmunhecagens.
Como se pode ver no documentário Beijo na Boca Maldita de Yanko Del Pino, Gilda é uma incógnita até para ser definida, isto é, as pessoas daquela época não sabiam se a tratavam de ele ou ela, se era uma bicha afeminada, uma drag, uma travesti; se ela estava apenas “brincando” ou se de fato era uma atitude radical de se mostrar verdadeiramente para o mundo. Nesse caminho, Gilda obviamente foi uma existência vítima de diversas formas de violência, um corpo atravessado por olhares transfóbicos, moralizantes e de forte exclusão social por ser uma “mendiga” (termo pejorativo que aparece em algumas de suas definições).
Portanto, Gilda foi um incômodo, uma dor de cabeça, uma provocação. Diferente de algumas capitais brasileiras, Curitiba sempre teve aspectos político-históricos de conservadorismo, de um certo ruralismo, de um povo sisudo e de cara fechada, de uma cidade cinza, triste, fria, insólita. Quando surge uma expressão corporal tão oposta e contraditória com essa realidade, Gilda vira uma metáfora dessa situação, tornando-se um ícone e atraindo para si – inevitavelmente – tentativas de silenciamento e de invisibilidade, justamente por mostrar como era possível superar uma sociedade tão preconceituosa e heteronormativa.
Multiplicam-se assim relatos dessas violências: dizem que sofreu uma facada certa vez, dizem que apanhou de um morador de rua e outros dizem que apanhou de um guardador de carros, dizem que foi esganada e que foi xingada em tal data. Dos relatos mais verídicos, está o dia que levou um chute na boca de um político e o dia de véspera de carnaval de 1981 em que foi internada a força em um hospital psiquiátrico. Logo, as violências que a perpassaram se entremeiam de forças muito maiores: não era apenas por pertencer ao que se denomina hoje de grupo LGBTQIAPN+ e nem por ser “da rua”, mas principalmente, por representar modos de existir não autorizados, aceitos e [cis]tematizados. Parece que até mesmo a felicidade de Gilda era uma ruptura com o status quo, uma felicidade que incomodava e não era bem-vista por alguns. Muito do que se pode reconstruir de Gilda está na memória oral que vêm se materializando em comentários perdidos em redes como Facebook, Veremos a seguir uma série de comentários recortados que nos dão um panorama da personagem:
“Grande Gilda, pra nós, curitibanos que estudamos no centro, era a diversão, uns curtiam, outros tinham medo e outros nojo. Ela faz parte de nossas histórias” – Maurício Penteado.
“Tem pessoas que acham que menosprezar o papel cultural ou importância de alguém, é lindo. Sem paciência para estes tipos. Gilda será sempre lembrada” – Jamy Savtchen.
“Bela lembrança. Eu adorava a Gilda. Ela conseguia se fazer bela, apesar dos trapos e das línguas de trapo dos preconceituosos que a detestavam. Certa vez lhe deram um vestido de noiva. Um vestido bonito, que no terceiro dia de uso já estava um chapéu velho. Mas foi muito gostoso vê-la alegre naqueles dias convidando os mocinhos para casar. Cada macho que corria era uma gargalhada dos frequentadores dos bares da XV. Obrigado pela lembrança. Eu levava a moeda, mas só entregava depois do beijo. Meus amigos me zoavam, mas a maioria deles chorou ao saber de sua morte” – Maerlio Barbosa.
“Maravilhosa, debochava e enfrentava a caretice curitibana dançando na Boca Maldita. Gilda um ícone da Curitiba Velha de Guerra” – Paulo Afonso Souza Castro.
“Ela se divertia correndo atrás da gente, mas às vezes dava para perceber a barra pesada que enfrentava” – Chico Cardoso.
“Conheci Gilda também na minha adolescência. Bons tempos onde nos reuníamos na antiga loja de discos ‘Cash Box’ que, mantinha suas caixas acústicas na porta e nós nos bancos de esquina da Muricy com a Rua das Flores, ouvindo música e se divertindo com as peripécias da Gilda, Mendigo? Louco? Homem? Mulher? Travesti? Homossexual? Nada disso. Hoje sabemos que era apenas um ícone performático que marcou um tempo na cidade de Curitiba” – Alcino Fogaça.
“Tinha dó! Uns olhos tristes. Enlouquecida, fazia graça e pirraça para botar medo” – Maria Leitão.
“Gilda era uma figuraça, nunca foi de incomodar ninguém. Os outros é que se incomodavam com ele/ela, pois este era uma época ainda em que não se falava muito em homossexualismo [sic] e nem tínhamos muito conhecimento dos casos a nossa volta. Achávamos que ele/ela fazia estas brincadeiras por gostar. O fato é que Gilda estava sempre feliz e sempre sorrindo…” – Lucia Stuver
“Era tão parte da Boca Maldita e do calçadão da XV, dançando em frente à loja de discos com vestido de chita por cima das roupas esfarrapadas, pedia cigarro e beijava por encomenda, corria atrás, usava batom vermelho. Nunca pensei na sexualidade dúbia. Era uma pessoa, um ser, que girava ao som da loja de discos e ainda o faz na minha memória. Sorria, declarava seu amor por uns poucos tostões, alegremente. Às vezes, sumia. Aparecia limpo, de cabelo cortado, barba feita. Era um rapaz até bonito. Achei que a família cuidava e ele fugia. Lembro que sofreu agressões (facadas de certa feita)” – Cristina Maria Rigler.
O que se vê, portanto, nessa fragmentação e reavivamento da memória disperso em comentários na internet (em blogs, documentários, no Facebook) é uma Gilda construída de vários pontos de vista, que se complementam e que se contradizem, reforçando também a sede popular de uma recuperação de sua memória enquanto parte da formação sociocultural da cidade. Após a sua morte, Gilda foi uma figura muito homenageada – algo que vem se perdendo ao longo dos anos, afinal, em 2023 se completou quarenta anos de sua morte. Enquanto algumas intervenções artísticas tentaram – e ainda tentam – fazer essa recuperação, há ainda certa reticência do poder público em aprovar, manter ou propor monumentos, placas, estátuas, nome de praças ou de ruas vinculadas a Gilda, algo que a população vem pedindo há anos. Essa recuperação se faz tanto necessária, como emergente. Viva a Gilda! Texto de Gilmar Montargil.
Nota do blog 1: O projeto da praça de bolso da "Gilda" na rua Cruz Machado com Visconde de Nácar, não deu certo. A Prefeitura de Curitiba, em 2021, implantou no local o "Largo da Saúde", em homenagem às vítimas do COVID-19.
Nota do blog 2: A placa atual, colocada na avenida Luiz Xavier em abril de 2022, ainda permanece, apesar de continuar aguardando autorização definitiva (a original, colocada em 1983, foi arrancada e desapareceu).
Nota do blog 3: Imagem 1, 2, 3, 4 e 12, data e autoria não obtidas / Imagem 5, 1983, crédito para Júlio Garrido / Imagens 6 e 9, data 04/2022, crédito para Luana Navarro / Imagem 7, data 2022, autoria não obtida / Imagem 8, data 2016, autoria não obtida / Imagem 10, data 2024, crédito para Jaf / Imagem 11, data não obtida, crédito para Macaxeira. 

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