Casarão da rua Catarina Emezu, onde morou Mauro Pinto da Rocha, mantém características originais.
Casarão de 1911, onde nasceu Orlando Villas-Bôas no ano de 1914.
Santa Cruz do Rio Pardo - SP
Fotografia
Santa Cruz do Rio Pardo surgiu nas imediações do ribeirão São Domingos, no local conhecido como “Chafariz”, quase à beira do rio Pardo. Foi ali, provavelmente há mais de 170 anos, que o sertanejo mineiro Manoel Francisco Soares cercou três fazendas nas terras em que surgiria posteriormente uma cidade. Manoel era um bugreiro que veio para a região com a comitiva de José Theodoro de Souza.
Logo depois, já na companhia do padre João Domingos Figueira, Manoel doou 100 alqueires de terras para a constituição do lugarejo. Próximo do ‘Chafariz’, foi erguida uma capela em homenagem a Santa Cruz. Mais tarde, acrescentou-se “Rio Pardo” por causa do rio que banhava a extensão do novo povoado do sertão paulista.
O lugar ganhou o nome de “Chafariz” devido a uma bica de água que existe até hoje, agora encanada, na rua Coronel Júlio Marcondes Salgado, perto da ponte sobre o ribeirão São Domingos.
As primeiras movimentações de aventureiros nas terras de Santa Cruz mostram que a cidade começou a ser desenhada muito tempo antes do que os 153 anos comemorados como sendo de sua fundação. É que o aniversário do município é contado a partir de sua elevação à condição de freguesia, que ocorreu em 1872.
A emancipação política veio alguns anos depois, agora sob o comando de um idealista, o mineiro Joaquim Manoel de Andrade, o homem que impulsionou o desenvolvimento do então incipiente povoado sertanejo. Durante décadas, o fazendeiro Andrade foi tido como um dos fundadores da cidade.
Todas as terras onde Santa Cruz do Rio Pardo começou já tinham donos antes da chegada dos aventureiros. Elas eram habitadas pelos índios Coroados, que reagiram à tentativa de invasão, em alguns casos com violência.
Até o início do século 20, ainda existia a política de extermínio dos povos indígenas. O jornal “Correio do Sertão” chegou a publicar um editorial, em 1902, conclamando a população a catequizar os indígenas, “mesmo, se preciso for, à bala”.
Foi neste cenário que as fazendas foram abertas e o pequeno lugarejo começou a ter um comércio forte. As primeiras fortunas foram aparecendo e, ao mesmo tempo, os casarões nas imediações do espaço no entorno do antigo “Chafariz”. Eram símbolos das primeiras fortunas.
Muitos foram demolidos e o mais velho casarão ainda existente está na esquina da atual praça Major Antônio Aloe, entre as ruas Saldanha Marinho e Coronel Emigdio Piedade. A data na parede, no alto de uma das portas, assinala o ano de construção: 1896.
Para se ter uma ideia da longevidade do casarão, foi nesta época que assumiu a chefia política de Santa Cruz do Rio Pardo o coronel João Batista Botelho, considerado pela história o primeiro “prefeito” da cidade — na verdade o cargo era de intendente.
A construção do século 19, entretanto, foi descaracterizada há muitos anos. Já não tem as portas e janelas originais e há grades nos dois lados do imóvel. Também há diferenciação de cores nas paredes da rua Saldanha Marinho, o que pode indicar a separação da casa em duas residências.
Porém, o imóvel ainda conserva os adereços superiores e a data da construção, tudo feito artesanalmente em cimento.
Na mesma esquina, atravessando a rua, está o casarão que pertenceu a Agnello Villas-Bôas, prefeito indicado pelo coronel Antônio Evangelista da Silva — o “Tonico Lista” — em 1914. Agnello era o pai dos irmãos Villas-Bôas, que desbravaram o Oeste brasileiro na expedição “Roncador-Xingu” e criaram o “Parque Nacional do Xingu”.
Naquele casarão construído em 1911 e ainda hoje conservado, nasceu Orlando Villas-Bôas, o mais famoso dos filhos de Agnello. Ele chegou a ser indicado duas vezes ao Prêmio Nobel da Paz. Hoje, é a residência do ex-vereador José Messias de Britto.
A duas quadras, está outro casarão, construído em 1914 e que voltou às mãos da família Brondi de Carvalho, após pertencer ao ator Umberto Magnani Netto. Embora sua conservação não esteja adequada, o prédio mantém as janelas de madeira e os adereços típicos das construções de Santa Cruz no início do século 20.
Quase ao lado, na esquina, está o casarão construído pelo coronel Tonico Lista, que foi sede do município na década de 1920. Hoje Biblioteca Municipal, o imóvel ostenta a data de construção (1910) e os enfeites feitos com cimento. Ao longo de sua existência, foi a residência das famílias dos professores Bernardino de Mello Lacerda e, posteriormente, de Exedil Magnani, antes do imóvel ser novamente comprado pelo município.
Mais alguns metros em direção à praça principal de Santa Cruz, já na rua Catarina Etsuco Umezu, outro velho casarão de fazendeiros tenta manter sua originalidade, embora hoje seja um endereço comercial. As janelas e portas externas têm vidros e não são originais, mas as internas conservam as características da época, inclusive com tramelas de ferro. Durante muitos anos, morou no imóvel a família de Mauro Pinto da Rocha.
Na praça Leônidas Camarinha, o antigo prédio da Câmara Municipal, construído em 1910 com projeto do arquiteto Ramos de Azevedo, mantém a data na parede e o mesmo estilo arquitetônico. É outro imóvel histórico construído na época do coronel Tonico Lista e que já foi cenário, inclusive, de tiroteio e morte durante evento político.
O prédio pertence à prefeitura, está desocupado e já existem algumas rachaduras em suas paredes, embora sua conservação seja considerada razoável.
Outros dois imponentes casarões ficam na mesma praça Leônidas Camarinha. Construídos lado a lado, na esquina da Conselheiro Antonio Prado com a travessa Manoel Herculano. Um deles pertenceu ao coronel Moyses Nelli e foi construído no final do século 19.
O prédio de dois pavimentos foi comprado pela indústria Special Dog, restaurado e transformado no “Centro Cultural Special Dog”, inaugurado em 2014.
Segundo o arquiteto Marcos Blumer, os casarões dos fazendeiros de Santa Cruz do Rio Pardo foram inspirados no estilo eclético de construções surgidas em São Paulo no início do século passado. Como a ferrovia chegou à cidade em 1908, muitos construtores observavam casarões paulistanos e traziam a ideia para os ricos de Santa Cruz.
O estilo eclético – ou ecletismo – chegou ao Brasil na virada dos séculos 19 e 20, “importado” da Europa sob impacto das grandes revoluções industriais. Foi um período em que a arquitetura usou matérias primas variadas para produzir estilos simples e produzidos com menos materiais.
Um dos marcos do estilo em São Paulo são as construções do Teatro Municipal (1903) e da Estação da Luz (1901), projetos do genial Ramos de Azevedo.
Na verdade, segundo Marcos Blumer, o eclético misturou os estilos barroco e neo clássico para dar uma aparência de luxo e grandiosidade nos imóveis. De acordo com o arquiteto santa-cruzense, os casarões de Santa Cruz do início do século 20 eram feitos com alicerces de pedra e, embora luxuosos para a época, hoje seriam desconfortáveis do ponto de vista da modernidade.
É que, na sua concepção original, os banheiros eram construídos do lado de fora — ou em “anexos” ou “puxadinhos”. O motivo? Naquela época, não se concebia um local para as necessidades fisiológicas dentro da casa.
Além disso, quase todas as construções tinham porões, que eram usados para isolar o frio ou o calor excessivo. Todavia, este espaço também servia para o proprietário da casa — geralmente um fazendeiro — guardar arreios, tralhas e até um pouco da produção agrícola. Havia, ainda, aberturas para que o ar entrasse nos porões.
Tudo era planejado para a época, como aberturas superiores nas enormes janelas, que funcionavam como “respiro” para a própria madeira. As construções eram altas o suficiente para arejar o ambiente interno.
Os casarões de Santa Cruz do Rio Pardo também possuíam redes de energia elétrica primitivas. É que somente em 1909 foi fundada a “Companhia Luz e Força Santa Cruz”, gerando energia para as casas da cidade através de uma pequena usina no rio Pardo — local até hoje conhecido como “Usina Velha”.
Assim, não havia necessidade de tomadas, uma vez que nem existiam aparelhos eletrodomésticos. O rádio, por exemplo, só chegaria na década de 1920. O único dispositivo a mais num casarão era a lâmpada, pendurada no teto, possuir uma tomada embutida.
Segundo Marcos Blumer, quando a energia elétrica se tornou abundante, a fiação dos casarões foi adaptada externamente, pelas paredes. Era uma maneira das antigas construções se adaptarem aos tempos modernos. Texto de Sérgio Fleury Moraes.