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sábado, 6 de abril de 2024

Portugueses Falando "Brasileiro"? Como Variante do Idioma Usada no Brasil Influencia Portugal - Artigo


 

Portugueses Falando "Brasileiro"? Como Variante do Idioma Usada no Brasil Influencia Portugal - Artigo
Artigo


No final de janeiro, uma postagem feita por uma página portuguesa de conteúdos anti-imigração no X (antigo Twitter) denunciou a existência de uma placa de trânsito escrita em “português brasileiro” em Sintra, na área metropolitana de Lisboa.
“Sinal rodoviário escrito em português brasileiro diz que é proibida a circulação excepto a ‘trens’ e bicicletas”, diz a postagem, que traz também uma foto da placa que supostamente “assassina a língua de Camões que é o português europeu”.
O grande problema, segundo o autor do post, é que a palavra "trens" teria sido retirada do português usado no Brasil, já que em Portugal o meio de transporte ferroviário é chamado de “comboio”.
O fato, porém, é que a palavra "trem" existe também no português europeu, mas com um significado distinto.
Em Portugal, pode ser “um carro de cavalos destinado ao transporte de pessoas”, ou uma carruagem, de acordo com a definição do dicionário da Porto Editora.
Levando em conta a localização da placa, a palavra "trens" se refere às carruagens puxadas por cavalos que fazem passeios com turistas por Sintra.
O episódio faz eco a muitos outros casos de portugueses "puristas" que cada vez mais rejeitam a presença de vocabulários e construções brasileiras na língua falada em seu país.
Esse repúdio fica claro em muitas das reações às notícias e manchetes de jornal que denunciam há alguns anos a influência dos conteúdos produzidos por brasileiros nas redes sociais e no YouTube nas crianças e jovens portugueses.
Enquanto alguns veem a cobertura da imprensa como exagerada e apontam o peso da xenofobia nas visões propagadas, outros fazem coro às queixas e temem que a presença cada vez maior dos vocábulos importados seja sinal de um "apagamento" da cultura local.
Há ainda quem aponte o grande e crescente fluxo migratório - havia 360 mil brasileiros em Portugal em 2022, segundo o Itamaraty - como outro fator que contribui para isso.
Mas por que a possibilidade da variante usada no Brasil ser encontrada em Portugal provoca tanta indignação entre alguns cidadãos? E qual a verdadeira extensão dessa influência?
Para Fernando Venâncio, linguista português que estuda o tema há décadas, há sim uma presença cada vez maior de traços importados do outro lado do Atlântico no idioma falado em terras portuguesas. Mas isso não é novidade.
“Desde finais dos anos 1970 e princípios dos anos 1980, houve uma aquisição de brasileirismos gigantesca”, diz Venâncio, autor do livro O Português à Descoberta do Brasileiro.
Na época, isso foi um reflexo principalmente do sucesso das novelas brasileiras em Portugal, explica o linguista. Agora, há um fenômeno novo em curso, que envolve principalmente as crianças e adolescentes.
"Em Portugal, eles veem cada vez mais youtubers brasileiros, às vezes, por muitas horas”, diz Venâncio.
A portuguesa Paula Lourenço é professora de escolas de ensino fundamental em Sintra há 24 anos.
Ela dá aulas para crianças entre 9 e 10 anos e diz que o uso de expressões e palavras brasileiras pelos seus alunos é cada vez mais evidente.
“Neste momento, na escola, tenho um caso de um aluno que fala ‘brasileiro’ apesar de os pais serem portugueses”, conta.
A professora relata que esse aluno começou a ser vítima de uma espécie de bullying, com colegas implicando com a forma como ele fala.
"Por fim, descobrimos que ele ficava até altas horas da noite sem supervisão a ver vídeos, principalmente aqueles shorts [vídeos curtos] que são reproduzidos um atrás do outro.”
Segundo Paula, o gosto pelos vídeos produzidos por influenciadores e youtubers do Brasil é compartilhado por praticamente todos os seus alunos.
“Houve um boom principalmente durante a pandemia. Até eu já estou um pouco aficionada pelos youtubers brasileiros, porque comecei a ver para acompanhar o que meus alunos gostam”, diz a professora.
Mesmo nas aulas de inglês, a professora Teresa de Gruyter nota a repetição dos “brasileirismos”.
“Usamos muito a palavra ‘giro’ em Portugal quando queremos falar de uma coisa que achamos engraçada ou interessante. Mas quase não ouço mais. Hoje em dia, utiliza-se mais ‘é bonitinho’, que é muito mais brasileiro”, conta a portuguesa, que dá aulas principalmente para adolescentes em uma escola de línguas em Cascais.
Teresa nasceu em Portugal e se mudou para a África do Sul na década de 1990.
“Quando saí do país há 25 anos, estávamos muitos expostos ao português brasileiro através das telenovelas e das músicas", diz.
"Mas, desde a minha volta há menos de 10 anos, começo a notar que todo este mundo dos youtubers e tiktokers (produtores de conteúdo da rede social TikTok) influenciam muito mais a maneira de estar e a maneira de falar das crianças no geral.”
Graça Rio-Torto, professora de Linguística da Universidade de Coimbra, vê, no entanto, as novas construções e palavras aprendidas pelas crianças e jovens portugueses como aprendizados positivos.
“Essas palavras novas enriquecem o léxico dessas crianças e não há mal nenhum nisso”, diz ela.
"Mas se os pais portugueses têm preocupação com o fato dos seus filhos estarem a falar mais abrasileirado, lamento. Mas os responsáveis são eles. Não é tanto o contato com colegas brasileiros na escola que fazem com que elas falem assim, mas o número de horas que os pais permitem que elas fiquem na internet."
A professora Paula Lourenço concorda: “Essa influência é boa pelos conhecimentos que transmite na área no enriquecimento do vocabulário, da globalização e de conhecer outras culturas”.
“O problema são os casos extremos em que já não sabem utilizar as expressões corretas nem no português do Brasil, nem de Portugal”, afirma Lourenço.
Para a professora, são o uso excessivo de telas sem supervisão e o isolamento das crianças e adolescentes que prejudicam o aprendizado e a compreensão de textos.
Venâncio diz que o fato de jovens portugueses usarem expressões brasileiras não deveria ser motivo de alarde.
“As crianças deixam sair uma ou outra palavra que ouviram no YouTube, mas é exagero dizer que passaram a falar ‘brasileiro’.”
Entre os destaques do YouTube que servem de referência para o sucesso brasileiro em Portugal estão os canais dos irmãos Felipe e Luccas Neto, com respectivamente 46 e 42 milhões de inscritos.
Ao mesmo tempo, o canal de humor Porta dos Fundos atrai o público adulto português há alguns anos.
Para a linguista brasileira Jana Behling, doutoranda na Universidade de Coimbra que estuda o tema, o “impacto do brasileiro” também pode ser notado por meio da popularidade de cantores como Marília Mendonça e até da literatura produzida por autores contemporâneos, de Itamar Vieira Júnior a livros com conteúdo religioso.
“Coimbra é sempre mais conservadora, mas ainda assim desfila o ‘brasileiro’ no Poetry SLAM, que é uma competição em que poetas leem ou recitam um trabalho original”, ressalta.
Esse sucesso não acontece sem conflitos. Apesar dos consecutivos shows esgotados em Portugal, Luccas Neto já foi repudiado por popularizar na fala portuguesa palavras brasileiras, como "geladeira" no lugar de "frigorífico", "ônibus" no lugar de "autocarro" e assim por diante.
“Alguns portugueses enxergam essa popularidade como se emporcalhasse a língua europeia”, avalia Behling.
“Isso sem falar nas gírias, típicas do despojamento de qualquer língua, mas que as xenofobias ainda olham com desdém.”
As professoras Paula Lourenço e Teresa de Gruyter afirmam ouvir com frequência reclamações de pais sobre as novas expressões adotadas pelos filhos.
“Alguns pais mais tradicionais reclamam ou corrigem os filhos quando os ouvem dizer palavras mais à brasileira”, diz de Gruyter.
“Mas tem outros pais que são bastante flexíveis, principalmente na zona do país onde eu vivo, em que existem tantos estrangeiros”.
Lourenço acrescenta que, por outro lado, muitos pais não dão atenção a isso.
“As pessoas estão tão sobrecarregadas com o trabalho que deixam os filhos ficarem horas na frente das telas e não percebem como isso os está influenciando.”
O linguista Xoán Lagares, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), nota que ainda “há muito preconceito em relação ao português do Brasil porque ele se diferencia em muitos pontos, sobretudo na sintaxe do que é a tradição normativa portuguesa constituída em Portugal”.
“Então, para muitos portugueses, as diferenças são identificadas como erros, como uma deturpação do português”.
Mas, segundo Lagares, especialista em história social e cultural das línguas, não existe uma versão mais correta da língua.
“No caso do português, não há uma gramática oficial. Há uma tradição normativa que se manifesta em gramáticas e dicionários”, explica.
Essa tradição tem sua origem em Portugal e foi elaborada a partir dos usos considerados de prestígio no país.
“O que aconteceu é que no Brasil foram se desenvolvendo outros usos de prestígio em relação à gramática”, diz o professor.
Por isso, vigora hoje no Brasil uma tradição normativa autoral e interpretativa, que pode variar conforme a gramática e a visão dos seus autores.
Para alguns linguistas, as diferenças entre as variedades que se estabeleceram dos dois lados do Atlântico já são tão grandes que deveria haver uma separação definitiva entre o português e o brasileiro.
“Não dá mais para dizer que falamos português do Brasil”, opina a linguista Jana Behling.
“Dou aula de 'brasileiro' hoje em dia, porque algumas pessoas acham o brasileiro mais fácil do que o português. Isso para mim indica uma ruptura.”
Xoán Lagares, porém, afirma que ainda é difícil falar em suas línguas separadas.
“Em termos de descrição linguística, não há um critério para dizer em que momento duas variantes se tornam línguas diferentes. Esse é um problema em várias partes do mundo. Por isso, muitas vezes, é apenas uma questão política.”
Mas qual a real influência do português do Brasil em Portugal, para além das críticas embutidas nas manchetes de jornais e dos "brasileirismos" denunciados nas redes sociais?
Segundo os especialistas consultados, é difícil prever o impacto que isso pode ter ao longo do tempo.
Até o momento, há poucas pesquisas publicadas que analisam o fenômeno – e novas expressões, palavras e estrangeirismos surgem e desaparecem nas línguas a todo tempo.
“Alguns youtubers brasileiros têm muita qualidade, e não é por acaso que as crianças assistem e também aprendem com eles”, diz Fernando Venâncio.
“Mas é impossível dizer se esse fenômeno novo vai ter futuro, porque também há alguns youtubers portugueses que estão a aprender bastante com os brasileiros e estão a produzir mais coisas com alguma qualidade.”
Para Xoán Lagares, a influência atual se dá sobretudo na sintaxe e a partir de algumas construções específicas. Ou seja, não engloba toda a língua.
“É difícil que eles mudem, por exemplo, a colocação pronominal por conta da forma usada no Brasil. Essas coisas demoram e são difíceis de acontecer”, diz.
“Veja no Brasil, onde ensinamos a questão da ênclise e até hoje não se consolidou, muitos alunos precisam ser corrigidos na escola e em redações.”
O linguista afirma ainda que o próprio preconceito demonstrado por alguns portugueses em relação à variedade brasileira deve barrar qualquer influência maior.
“Há muitas questões identitárias, de reconhecimento da própria variedade e de lealdade linguística envolvidas”, afirma.
Por sua vez, a linguista Graça Rio-Torto avalia que o inglês exerça uma influência hoje mais forte em Portugal do que o português falado no Brasil, sobretudo nas linguagens técnicas e da área de informática.
Ela é categórica ao afirmar que o português falado em Portugal não sofrerá mudanças profundas e permanentes a partir dessa influência, ao menos por enquanto.
Para ilustrar seu argumento, ela ressalta que Portugal passou por séculos de dominação estrangeira e foi colonizado por árabes e espanhóis.
"Esses fatos tiveram alguma influência sobre a língua, mas não alteraram o rumo principal das mudanças linguísticas em curso”, diz ela.
"Como linguistas, não esperaríamos que em tão pouco tempo e em um conjunto numericamente não tão significativo assim de falantes pudesse ter uma influência decisiva sobre a língua."
Havia essa mesma preocupação, segundo ela, nos anos 1970, quando as novelas brasileiras eram muito populares.
"Também se dizia que muitas construções lexicais e até gramaticais iriam ser introduzidas na variedade portuguesa. Mas não foi tanto assim", diz.
"É uma moda como outra qualquer, circunscrita no tempo." Texto de Julia Braun / BBC.

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Quem Foi o Primeiro a Traduzir a Bíblia Para o Português? - Artigo

 






Quem Foi o Primeiro a Traduzir a Bíblia Para o Português? - Artigo
Artigo



Se você já manuseou uma Bíblia, são grandes as chances de ter se deparado com o nome dele na folha de rosto: João Ferreira de Almeida. Ou, para usar a versão completa: João Ferreira Annes d’Almeida.
Trata-se de um português nascido em 1628 que, oriundo de família católica, tornou-se protestante e, aos 17 anos, conseguiu uma proeza: foi o primeiro a verter para o português os livros considerados sagrados que formam a Bíblia.
"Ele nasceu em Torre de Tavares, então reino de Portugal, viajou por várias regiões que tinham ligação tanto com Portugal quanto com os [hoje chamados] Países Baixos, viajou por regiões onde atualmente ficam a Indonésia e Malásia", conta à BBC News Brasil o historiador e teólogo Vinicius Couto, doutor em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo, presbítero da Igreja do Nazareno e professor do Seminário Teológico Nazareno do Brasil e do Seminário Batista Livre.
A ligação de Almeida com a religião vem desde a mais tenra infância. Órfão, acabou criado por um tio, que possivelmente era sacerdote católico.
"Segundo consta em alguns documentos e relatos de historiadores, esse tio era padre. E ele assumiu a responsabilidade da criação e do cuidado do Almeida", afirma à reportagem o pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
"O fato é que pouco se sabe a respeito da infância e da adolescência desse sujeito, mas ele teria recebido uma excelente educação, possivelmente sendo preparados para seguir a carreira religiosa, inclusive."
Aos 14 anos ele já estava na Ásia. Ali, acabou instalando-se na Batávia, a atual capital da Indonésia, hoje chamada de Jacarta. Naquela época a região era disputada entre portugueses e holandeses.
A cidade era o centro administrativo da Companhia Holandesa das Índias Orientais e, logo ao lado, Malaca, na atual Malásia, havia sido colônia portuguesa depois conquistada pelos holandeses.
"No ano seguinte, ele deixou a Igreja Católica e se converteu ao protestantismo", prossegue Maerki. Essa guinada foi fundamental na trajetória que Almeida teria como tradutor da Bíblia.
Por razões históricas, vale ressaltar. Afinal, no contexto da chamada reforma protestante, a partir da questão trazida por Martinho Lutero (1483-1546) e que abalou os alicerces do catolicismo de então, era importante que o fiel tivesse acesso aos textos bíblicos diretamente e em sua língua. Ora, isso motivou que uma série de traduções bíblicas fossem realizadas pelo mundo, sobretudo nos século 16 e 17.
Almeida ingressou na então denominada Igreja Reforma Holandesa sob esse contexto. E logo viu que havia uma lacuna a ser preenchida: até então, os crentes lusófonos não contavam com uma versão no seu idioma.
A conversão de Almeida ao protestantismo não foi acidental, mas sim fruto do contato que ele teve, em Batávia, com os membros da igreja holandesa. "[A conversão] foi depois da leitura que ele teve de uma obra que trazia uma perspectiva anticatólica, questionando pontos que o protestantismo [histórico] questiona em relação ao catolicismo", pontua Couto.
Trata-se de um manifesto intitulado 'Differença d’a Christandade'. E entre os ataques promovidos pelo panfleto à Igreja Católica estava um ponto que serviria de maior estímulo ao incipiente tradutor: o uso exacerbado do latim durante os ofícios religiosos, em detrimento de línguas vernaculares.
"A tradução da Bíblia para as línguas vernaculares é uma conquista da reforma protestante. Uma grande sacada dos protestantes foi justamente isso: traduzir a Bíblia para as línguas das pessoas, as línguas que as pessoas falavam", contextualiza à BBC News Brasil o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
É justamente por isso que Maerki define Almeida como um jovem "com ímpeto e desejo de mostrar o quanto estava de fato permeado pela atmosfera protestante, encantado com a Igreja Reformada".
"Porque nela, um dos elementos principais é justamente a tradução da Bíblia para o vernáculo", acrescenta.
A base da tradução de Almeida foi a consagrada versão em latim elaborada pelo teólogo protestante francês Teodoro de Beza (1519-1605). Mas não foi a única fonte — os registros históricos indicam que ele, como é praxe em trabalhos de tradução do tipo, comparou sua versão com as opções realizadas por outros autores.
"O Beza foi um teólogo que trabalhou bastante na arqueologia bíblica, com muitos comentários [em sua tradução]. Almeida utilizou isso, mas também usou as versões da Bíblia em castelhano, francês e italiano", ressalta Couto. "Nesse período, já tínhamos uma boa quantidade de traduções da Bíblia para outros idiomas."
Almeida terminou sua primeira versão do Novo Testamento em 1645, quando ele tinha, impressionantemente, apenas 17 anos. Ele pretendia que o material fosse publicado e, conforme alguns pesquisadores afirmam, chegou a enviá-lo para um editor em Amsterdã. "Entretanto, essa primeira versão do trabalho dele se perdeu", relata Couto.
O tradutor descobriu isso apenas em 1651, quando foi procurado por interessados em publicar a versão em português. Então decidiu recorrer aos seus rascunhos, preservados, para refazer o trabalho.
Dali em diante, houve intensos debates acerca da publicação ou não do seu trabalho, já que alguns que tiveram acesso aos manuscritos puseram-se a criticar fortemente a qualidade da tradução. Em 1656 ele foi ordenado pastor da Igreja Reformada e enviado para Ceilão, hoje Sri Lanka. Ali, além de atuar como sacerdote, dava aulas de português para outros religiosos e ensinava o catecismo.
Em paralelo à sua atuação comunitária, dedicava-se a revisar a Bíblia.
"Seu texto chegou a ser publicado mas, logo em seguida, identificaram problemas de tradução. E tudo foi recolhido às pressas, para que não circulasse", afirma Couto. "Ele consegui pregar e fazer uso de alguns desses textos, mas uma equipe passou a se dedicar a revisar tudo."
Algumas dessas versões chegaram a circular. O Museu Britânico, em Londres, guarda um exemplar cuja impressão data de 1681. Mas ainda eram tiragens restritas e não consensuais entre os cristãos lusófonos.
Sobre a vida de Almeida, pouco se sabe. A maior parte dos textos biográficos aponta que ele teria se casado, no Ceilão, com uma mulher chamada Lucrécia Valcoa de Lamos. Assim como ele, ela também seria protestante de origem católica. O casal teria tido dois filhos, um menino e uma menina.
Sua vida foi cheia de conflitos, tanto com católicos quanto com grupos locais. Por suas pregações contra a Igreja Católica, enfrentou proibições do governo da Batávia, em 1657. Também experimentou sanções similares em Colombo, no atual Sri Lanka, entre 1658 e 1661.
Na então possessão portuguesa de Tuticurim, atualmente parte da Índia, os problemas foram com as populações locais. Ali, anos antes, uma comitiva da Inquisição havia promovido uma queima de seu retrato em praça pública, indicando aos habitantes que ele não era bem-visto pela Igreja Católica que tanto criticava.
No período de cerca de um ano em que ele foi pastor ali, sofreu as consequências. Moradores nativos se recusavam a ouvi-lo, e poucos aceitavam serem batizados ou terem seus casamentos abençoados pelo religioso.
Almeida morreu na atual Indonésia em 1691, com 63 anos. Não havia ainda concluído a sua tradução definitiva do Antigo Testamento e esse trabalho prosseguiu com um de seus colegas missionários, o pastor holandês Jacobus op den Akker (1647-1731).
Oficialmente, nem Akker nem Almeida viram a obra concluída. De acordo com a Sociedade Bíblica do Brasil, aquela que é considera a primeira edição da Bíblia completa em português foi publicada apenas no ano de 1753, em dois volumes. Já a primeira versão consolidada em apenas um volume data de 1819.
Uma curiosidade adicional à vida de Almeida é que muitas impressões antigas o creditam como "padre". "Na verdade ele nunca foi padre. Ele foi um pastor calvinista", frisa Moraes.
Até hoje muitas das versões da Bíblia em português trazem o gênese da versão de Almeida. É o caso daquela conhecida como ARA, assim chamada porque é Almeida Revisada e Atualizada. Também há a Almeida Corrigida Fiel e a Edição Revista e Corrigida, entre outras.
"É uma referência em língua portuguesa, uma tradução muito boa. Mas é lógico que, com o passar do tempo, vai-se fazendo ajustes e isso também é importante de salientar", comenta Moraes.
O historiador e teólogo dá um exemplo sobre esses ajustes. Por exemplo, quando no Antigo Testamento são mencionados os filhos de Noé. "Antes dos anos 1990, eles eram chamados de Sem, Cão e Jafé. Então começaram a chamar de Sem, Cam e Jafé. Para não gerar nenhum estranhamento com a palavra 'cão'", exemplifica Moraes.
Outra passagem bastante conhecida também foi ajustada mais recentemente. Trata-se do Salmo 23, aquele do "o Senhor é meu pastor, nada me faltará".
Ali, as versões antigas continham a frase "a tua vara e o teu cajado me consolam". "Os tradutores [contemporâneos] mexeram nessa expressão, porque com 'vara' poderia se gerar uma situação jocosa", conta Moraes. A ARA traz "o teu bordão e o teu cajado me consolam".
O teólogo Couto também identifica problemas na tradução de Almeida. No relato da criação do mundo, no livro do Gênesis, por exemplo, o trecho em que Deus cria "o homem à nossa imagem, conforme à nossa semelhança", é seguido da frase "e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra".
A ideia do ser humano "dominando" a natureza, se não incorreta, soa anacrônica aos tempos atuais, em que o discurso ambiental clama por cuidados ecológicos.
"A questão é que o verbo dominar vem do hebraico e essa tradução feita assim é muito pobre. Difícil encontrar uma tradução precisa, porque a ideia de domínio passa uma imagem de superioridade, sugerindo que o ser humano domina a natureza e esta lhe é inferior", comenta Couto.
"Mas, na verdade, a palavra original trazia uma conotação diferente, um sentido de mordomia responsável, querendo dizer que o ser humano seria quem deve cuidar da criação", explica o especialista.
O pesquisador Maerki ressalta outros trechos curiosos, alguns responsáveis, segundo ele, por "distorções".
"Um dos problemas apontados pelos estudiosos é a tradução da palavra ídolo, tanto do hebraico quanto do grego", afirma.
"Almeida traduz como escultura, como imagens em escultura, e não como ídolos. E isso acarreta justamente esse debate entre a tradição católica e a protestante sobre ter ou não imagens [sacras]. Foi um problema de tradução que originou um debate teológico."
"Outro trecho curioso está no livro de Isaías, quando a palavra que originalmente no hebraico significa ‘moça jovem’ foi traduzida por ele como 'virgem', mesmo que no hebraico haja outra palavra para 'virgem'", aponta. Trata-se do trecho encarado como profético e utilizado pelo cristianismo, sobretudo católico, para justificar o dogma da virgindade de Maria, mãe de Jesus: “eis que uma virgem conceberá, e dará à luz a um filho […]."
Probleminhas e problemões à parte, é unânime o reconhecimento de que o trabalho realizado por pioneiros como Almeida são dignos de respeito pela dificuldade em se traduzir textos tão complexos em uma época antiga. “Não havia os recursos de hoje e o tradutor sempre têm de fazer opções. Estamos falando de textos que originalmente foram escritos em idiomas com estruturas e até caracteres diferentes, como o hebraico, o grego antigo…”, comenta Moraes.
"O trabalho desses homens que traduziam a Bíblia no passado é um trabalho digno dos maiores louvores porque, além dos conhecimentos que eles tinham de ter das línguas ditas originais: o grego, o hebraico, o próprio latim, e de outras versões que eles já usavam para cotejar e decidir as melhores opções de tradução, como o francês, o italiano, o inglês, essa era uma temática totalmente nova", acrescenta o professor, lembrando que a reforma protestante encabeçada por Lutero que havia aberto essas possibilidades não estava tão distante daquele tempo.