Mostrando postagens com marcador Medicina. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Medicina. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Medicina e Práticas Curativas no Brasil Joanino - Artigo

 


Medicina e Práticas Curativas no Brasil Joanino - Artigo
Artigo




Para ser um "ótimo estudante da prática médica", e receber seu atestado de assiduidade na Escola Cirúrgica do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, Silvestre da Fonseca Proença assistiu às aulas de anatomia, fisiologia, patologia e terapêutica (ouvindo as lições de sua obrigação, assistindo às demonstrações e sabatinas) e foi aprovado no exame de anatomia teórica e prática. Examinado, em 1809, por João Manoel Pires de Menezes, lente de anatomia e cirurgia da Universidade de Coimbra, respondeu ainda aos diários de moléstias, através das experiências médicas nas enfermarias do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, como operações, ligaduras e curas praticadas diariamente. Seus estudos eram devedores da medicina setecentista e, sobretudo, daquela ensinada na Universidade de Coimbra reformada por Pombal. Essa demarcação não é, como poderia parecer, uma divisão tão clara entre dois modelos, subsistindo nas novas leituras que se formulam.
Desde o século XVI, com Vesalius (1514-1564), a anatomia de Galeno viria sofrer golpes, sendo considerada uma extrapolação das características animais para o Homem. Também a descoberta do sistema de circulação de sangue (iniciada com o médico árabe Ibn al-Nafis, no século XIII) pelo médico William Harvey (1578-1657) revolucionou as escolas médicas. Não se deve, no entanto, concluir por um abandono dos preceitos clássicos pois, ainda que não fosse doutrinária, a recorrência a Hipócrates e à tradição aristotélica acompanha esses acontecimentos. Assim, a medicina do século XVIII rompeu, progressivamente, com o sistema médico-farmacêutico galênico, em favor, entre outras doutrinas, da iatroquímica, que considerava que o tratamento das patologias deveria partir de uma interpretação química, executando-se o tratamento terapêutico com medicamentos apropriados. Era uma mistura de vertentes químico-vitalistas do século XVII, com a escola de Theophrast Bombast Von Hohenheim (1493-1541) mais conhecido por Paracelso, dos séculos XV e XVI e que se desenvolve paralelamente à base física da teoria e práticas médicas.
É no seiscentos que Descartes (1596-1650) irá exercitar uma concepção mecanicista do corpo, tornado por ele uma máquina. Fundada sobre a física galileana e reforçada pela concepção materialista do universo de Newton (1642-1727), essa corrente dará lugar à teoria iatromecânica que entendia o funcionamento do corpo em termos estritamente físicos e matemáticos. A iatromecânica ganha mais uma ferramenta com o microscópio, desenvolvido pelo holandês Antoni van Leenwenhoek (1623-1723), que permite a observação das microestruturas dos corpos, interpretadas como micromáquinas no interior da macro-máquina que eram os corpos.
No século das Luzes, o médico é um dos principais personagens do processo de desenvolvimento das ciências da natureza, do qual deveriam surgir bens objetivos, concretos: "rodeado de uma nova auréola, aquele que possuía a ciência, aquele que corrigia a natureza sempre que ela errava, aquele que curava os males da vida". Entre as teorias médicas e a clínica, encontramos propostas discrepantes, pois ainda que exija a observação direta do paciente para fundar uma teoria médica, os sistemas descritos obedeciam a uma atitude dedutiva, hipotética, e não segundo um modelo empírico-indutivo atribuído a Hipócrates. Os opositores dos sistemas afirmavam a clínica e reivindicavam em verdade um outro sistema, o empirismo, representado, em sua vertente moderna, por Francis Bacon (1651-1626) e John Locke (1632-1704). O filão empírico tem nos primeiros anos dos setecentos a defesa do princípio clínico, fundamentalmente empírico, no holandês Hermann Boerhaave (1668-1738), que ensina botânica e medicina, cirurgia e química na Universidade de Leyde.
As chamadas ciências empíricas são relacionadas às ciências humanas na perspectiva arqueológica de Michel Foucault: aqui, a medicina do século XVIII é uma atividade ao mesmo tempo política, pontuando a ação do Estado, que não exercerá sozinho o controle das doenças e da saúde. Na França, o Estado atua por meio da distribuição gratuita de medicamentos, da criação de órgãos como a Sociedade Real de Medicina e da elaboração de códigos de saúde, enquanto as sociedades científicas e as academias, "tentam organizar um saber global e quantificável dos fenômenos de morbidade". A medicalização da sociedade comprova que em seu excesso de poder o médico é também político, ocupando um lugar expressivo nos espaços consagrados do saber setecentista, tornando-se, nas palavras de Foucault, "presença cada vez mais numerosa nas academias e nas sociedades científicas"; com "participação ampla nas Enciclopédias".
Entre essas sociedades, encontramos também instituições de caridade e movimentos sanitaristas, acompanhados da formulação de teorias de assistência social, demonstrativas da idéia de higiene pública, uma das invenções das Luzes. Essa preocupação se evidencia com a criação da Sociedade Real de Medicina em 1776, em oposição à Faculdade de Medicina de Paris pouco interessada na missão de combater doenças epidêmicas e endêmicas. Doenças que se desenvolviam sobre um fundo de sífilis e que compunham o quadro de patologias características da Europa das Luzes. Enquanto a peste que havia grassado desde o século XIV viria atenuar-se em meados do XVIII, a mortalidade causada pela varíola vinha substituí-la. Tifo, gripe, desinteria e paludismo eram outros males que iriam ser temidos.
Um pensamento informado pela lógica médica está presente nas teses sociais e na economia, na própria formação de pensadores como John Locke (antes de se ocupar com a alma, diz Hazard, Locke se dedica a conhecer os corpos) e de ilustres representantes da escola fisiocrata como Quesnay, autor de Essai physique sur l'économie animale, de 1736. Os fisiocratas defendiam o útil, como uma unidade entre o físico e o moral, formando a noção de uma física da sociedade. Assim, a utilidade da natureza, o pragmatismo da ciência, atrelando, em grande medida, a botânica à farmácia e à medicina, encontravam correspondência e repercutiam nas teses econômicas e sociais, veiculadas, por vezes, pelos mesmos agentes, demonstrando a extensa superfície de contato entre essas formas de pensamento.
Em Portugal, o estudo e a prática da medicina, como em tantas outras áreas, conhecem uma narrativa histórica peculiar produzida pelos principais interlocutores da reforma pombalina. Tanto o oratoriano Luís Antônio Verney em O verdadeiro método de estudar, obra que na verdade antecede as reformas, editada em 1746, sob o reinado de d. João V, quanto títulos como o Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra..., além, claro, dos Estatutos da Universidade de Coimbra, tratam do tema da medicina sob o prisma dos ensinamentos formulados pelos jesuítas em contraste aos ensinamentos da ciência moderna e à vinculação a uma origem.
Um ponto de interseção interessante é o recorrente Vocabulário Português e Latino do padre Rafael Bluteau, consagrado como um moderno, membro do círculo dos Ericeiras, que escreve no início do século XVIII, na corte de d. João V. No verbete Medicina, Bluteau descreve uma história iniciada com os hebreus, com o anjo Rafael. A medicina é definida como "a arte e a ciência de excogitar e apontar remédios para conservar no corpo humano a saúde que tem e para lhe restituir a que perdeu". Sobre Hipócrates, diz Bluteau, "foi o primeiro que deu os preceitos da Medicina, a reduziu a forma e método e com as curas que fez adquiriu tão grande nome principalmente no contágio ... que os gregos lhe tributaram as mesmas honras e venerações que a Hércules". Além dessa breve história na qual se destaca Hipócrates, Bluteau estabelece os três tipos de medicina existentes: metódica, empírica e dogmática. É a essa última que o Vocabulário visivelmente reconhece, chamando-a, também, medicina racional. Seus mestres são Hipócrates e Galeno, e suas subdivisões, especulativa e prática, "porque une a razão com a experiência", são também os enunciados da filiação moderna de Bluteau, ainda que recorra a Galeno.
Os estatutos que vigiam até a Reforma da Universidade, em 1772, datam do início do século XVII e a Ratio Studiorum estabelecida pelos jesuítas determinava, essencialmente, para as cadeiras de medicina o estudo de Galeno, Avicena e Hipócrates. Para os autores do Compêndio Histórico do estado da Universidade de Coimbra, oratorianos reunidos na Junta do Providência Literária, até um passado recente a medicina havia mergulhado nas "trevas dos intérpretes e comentadores arábico-galênicos". O grande texto é o de Hipócrates, o corpo de diversos conhecimentos médicos enriquecidos por seus comentários, até a intervenção de Galeno que, segundo os autores, seguiu a doutrina e a prática de Hipócrates, mas errou ao explicá-la pela lógica do "peripato".
A reforma da Universidade de Coimbra trouxe, entre outras transformações, a criação da Faculdade de Medicina, oferecendo como disciplinas "história da medicina, matéria médica, prática farmacêutica, anatomia, medicina operatória e obstetrícia, fisiologia, patologia geral, prática clínica hospitalar diária, aforismos de Hipócrates e Boerhaave", entre outras. Valorizava-se, assim, o estudo da anatomia e dos estudos práticos, investindo-se, também na criação de um Dispensatório Farmacêutico e do Teatro Anatômico, que colocava um fim nas demonstrações de então, sobre carneiros e porcos esfolados.
Na colônia portuguesa na América, a administração da medicina foi, como sabemos, bastante flexível dada à escassez de indivíduos formados em medicina, um cenário descrito por Márcia Moisés Ribeiro, assinalando que "no Brasil, a raridade numérica dos médicos ou físicos obrigou os cirurgiões a desempenhar certas funções que teoricamente não lhes competia. De simples práticos, viram-se na condição de médicos, devendo discutir teorias e mostrar erudição. Distantes do reino, eles tiveram seu status elevado".
Quanto ao controle das enfermidades, pouco podiam fazer os físicos no além-mar. Como lembra o escritor e médico Moacyr Scliar, as instituições metropolitanas ficavam longe, como a Junta do Proto-Medicato, de 1782, preocupada antes em controlar boticas e curandeiros do que em deter doenças. Scliar assinala o caráter precoce das primeiras epidemias e destaca que a assistência hospitalar ficava a cargo das Santas Casas de Misericórdia, que proporcionavam basicamente a albergaria e a assistência religiosa.
Chegadas ao continente, como é conhecido, por meio dos conquistadores, as principais epidemias foram as de sarampo, varíola e tuberculose, além das doenças venéreas, que vieram da Europa mas também de portos africanos. Apesar de todo o efeito devastador, a complexificação da patologia brasileira, avalia Márcia M. Ribeiro engendrou o que podemos denominar de medicina colonial, "que nada mais é que o conjunto de conhecimentos, hábitos e práticas nascidos a partir do convívio assíduo entre as três culturas". Em 1563, uma primeira epidemia de varíola atingiu a capitania da Bahia. Era grande o terror que essa doença espalhava, chamando-se ao surto, "açoite do Senhor", nas palavras de um religioso. Segundo Anchieta, a varíola dizimava a população da capitania de São Vicente. Os índios, duramente atingidos pela doença e seus efeitos assustadores, passaram a temer enormemente a varíola também. Ainda no século XVI, as epidemias de sarampo acometeram a população da colônia ao mesmo tempo em que a varíola e, no século XVI, a febre-amarela é relatada como uma peste espantosa, causando inúmeras mortes entre a população escrava. Embora não representadas no presente conjunto que privilegia as práticas e o conhecimento médico, não se pode deixar de mencionar que apenas o tema das epidemias no período colonial, abrangendo o Império luso-brasileiro, relaciona noventa ocorrências de pesquisa, sobretudo com o descritor "peste" e também o da varíola.
O elo intrínseco entre a botânica e a farmacopéia se manifestou através das diretrizes metropolitanas para o desenvolvimento da cultura das plantas medicinais existentes na colônia. No uso cotidiano, mesmo popular, a flora e a fauna americanas desempenhavam um papel importante: havia um aprendizado e uma adaptação da cultura indígena à européia, tema desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda em capítulo intitulado "A botica da natureza", ao tratar das jornadas pelo sertão, nas quais "o paulista terá apurado as primeiras e vagas noções de uma arte de curar mais em consonância com o nosso ambiente e nossa natureza". O uso da fauna e flora na cura de doenças foi, antes de tudo, iniciativa dos jesuítas, que "souberam escolher, entre os remédios dos índios, o que parecesse melhor, mais conforme à ciência e à superstição do tempo".
Os limites entre o que seria ciência e crença, se desvanecem na afirmação de Sérgio Buarque, como se apagam para os homens brancos, as fronteiras desses mundos da natureza, quando "os adventícios guiavam-se muitas vezes pelos sentidos, que os fazia associar confusamente reminiscências do Velho Mundo às impressões do Novo", o que explicaria a atribuição às espécies nativas, de nomes e propriedades de outras, certamente européias. As provisões e permissões a boticários e a referência ao uso de ervas medicinais ecoam a tradicional tentativa de controle sobre a farmacopéia do reino e dos domínios e de obras que desde as viagens dos Descobrimentos se dedicaram ao inventários das drogas do Novo Mundo.
Os documentos selecionados para o tema das práticas médicas concentram-se, sobretudo, na coleção Fisicatura mor, que reúne processos com exames e cartas de confirmação de parteiras, cirurgiões, sangradores, médicos, entre 1808 e 1828. Com a vinda da Corte para o Rio de Janeiro foi estabelecida a jurisdição do físico-mor, e de seus delegados em 22 de janeiro de 1810, extinguindo-se, assim, a Real Junta do Proto-medicato. Pela leitura das ementas destaca-se o papel de fiscalização exercido pelos delegados sobre o exercício da medicina. Além das matérias em que eram inquiridos os médicos, chama a atenção os exames prestados para a ‘arte de sangria e cirurgia', a concessão dada por um ano do ofício de curandeiro ao "preto forro", Adão dos Santos Chagas ou a autorização do padre carmelita "descalço da cidade do Porto", fr. João dos Prazeres à "arte de boticário". Destacam-se também nomes como o do médico pernambucano José Correia Picanço que estudou em Portugal e se aperfeiçoou na França. Atuou como demonstrador da cadeira de anatomia da Universidade de Coimbra, realizando seguidamente as primeiras dissecações em cadáveres humanos em aulas de anatomia; em 1807 acompanhou a Corte ao Brasil e aqui lançou as bases para o ensino médico estimulando a criação das escolas de cirurgia na Bahia e no Rio de Janeiro. E é como cirurgião-mor do Reino que Picanço emerge em documentos que confirmam ou negam cartas de confirmação de sangria ou combate à prática da "arte da cirurgia" por pessoas não autorizadas.
Diversos ofícios estão embutidos no que entendemos como parte da prática da medicina, mas seus sentidos são diversos do que hoje atribuímos, cujo maior exemplo é a função de cirurgião, que divergia da de médico. Conforme ensina Lycurgo Santos Filho, os cirurgiões eram divididos em "diplomados", "aprovados" ou "barbeiros". Os primeiros freqüentaram hospitais, como o São José, em Lisboa, sendo poucos os que chegaram a vir para o Brasil. No período joanino, as escolas de cirurgia do Rio de Janeiro e da Bahia deram lugar ao "cirurgião-formado" que desaparece com a posterior unificação do ensino médico-cirúrgico. Aqueles classificados como "aprovados" eram orientados por um mestre-cirurgião em hospitais militares e Misericórdias; segundo Lycurgo Santos, nos séculos XVII a XIX, brasileiros, brancos, mulatos e negros substituíram a maioria de cristãos-novos nessa categoria. Os negros recebiam a denominação de "barbeiros" simplesmente, tendo como procedimentos sangrar, sarjar (ou escarifar, gerando incisões na pele), aplicar bichas ou ventosas, arrancar dentes, semicúpios, cortar cabelos e barbas etc.
A ocupação de forros, escravos, africanos ou mulheres com algumas artes de curar e, de modo geral, com as terapias populares, praticadas em contraste ou complementação com a medicina instituída nesse período, despertou grande interesse da historiografia. O caráter de regulamentação de cargos e órgãos como a Junta do Protomedicato e do físico-mor teria tido efeitos singulares, pois ao mesmo tempo em que hierarquizou as categorias médicas, dispondo em um primeiro grupo o médico, o cirurgião e o boticário e em outro, os sangradores, curandeiros, parteiras, curadores de moléstias específicas e outros, acabou por legitimar, pelo controle e oficialização, o cumprimento dessas atividades. A par da dificuldade encontrada pela instituição da Fisicatura, em fazer valer a lei, a dispersão das populações e a própria escassez de médicos fez com que esses ofícios se perpetuassem por muito tempo, enquanto que, ao se aproximar a segunda metade do século, os representantes do saber médico procurassem cada vez mais desqualificar as demais formas de terapia.
O período demarcado pela administração joanina se justifica pela atuação institucional do físico-mor, do cirurgião-mor, pela presença mesma da Corte na América, que ainda que como projeto, indica a germinação de escolas de medicina, controle de práticas, edição de publicações e outros emblemas da medicina defendida em academias e faculdades tocadas pelas idéias ilustradas. Por outro lado, essa periodização não pode nos convidar a estabelecer demarcações para o saber médico, para as práticas, a cultura e absorção de um corpus científico dependente ainda de um conjunto de transformações e resistências em tantos outros campos. A delimitação do próprio tema da medicina é complexa no que se refere mesmo às fontes do Arquivo Nacional: a consulta ao Roteiro de fontes sugere o aprofundamento de pesquisas em fundos, nomes e instituições tais como Academia Médico-Cirúrgica, temas como epidemias, Universidade de Coimbra, cadeira de anatomia e fundos como Casa Real ou Junta da Fazenda entre outros, válidos ainda para uma investigação que antecede a chegada da Corte.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Mais Médicos Mal Formados - Artigo

 


Mais Médicos Mal Formados - Artigo
Artigo


Larissa Nader, 21 anos, está a um ano de ingressar no internato, período do fim da graduação em que os alunos de medicina põem em prática o conhecimento teórico adquirido nos anos anteriores. A jovem cursa o sétimo período na Universidade de Rio Verde (UniRV) em Goianésia, cidade de 71 mil habitantes no Norte de Goiás, a 180 km da capital. Nos dois anos de internato da UniRV, os estudantes fazem uma espécie de rodízio entre cinco hospitais da região. O problema, segundo ela, é que três deles são de baixa e média complexidade, com capacidade apenas para cirurgias simples. “Dificilmente o aluno vai fazer um acesso venoso central nesse tipo de hospital, por exemplo”, diz Nader, referindo-se ao procedimento de inserir um cateter de grosso calibre em veias como a jugular para administrar medicamentos. Além disso, boa parte dos preceptores, como são denominados os professores no internato, são recém-formados. “Eles adquirem experiência com os próprios alunos.”
Atualmente, a estudante passa pelo “ciclo clínico” do curso, no centro médico da UniRV em Goianésia, onde são feitos atendimentos ambulatoriais. O excesso de alunos, diz Nader, provoca situações constrangedoras. “Muitas vezes há dez alunos para cada paciente. Como dez farão exames clínicos em sequência em uma única pessoa? É constrangedor.” Ela paga atualmente 3,7 mil reais de mensalidade – antes da pandemia, eram 5,7 mil.
Até 2004, havia apenas um curso de medicina no estado, oferecido pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Atualmente, são dezesseis, dos quais nove ainda não têm turmas que concluíram a graduação. “Em pouco tempo haverá 4 mil alunos ao mesmo tempo no internato. Não há hospitais suficientes para essa demanda”, afirma Lucas Lourencio, presidente da Associação dos Estudantes de Medicina de Goiás. Em nota, a UniRV informou que os hospitais vinculados à instituição “possuem as estruturas necessárias para a execução das atividades práticas […] sem quaisquer prejuízos ao aprendizado” e que, no ambulatório, são 4 a 5 alunos por consultório (a instituição não se manifestou diretamente sobre o número excessivo de alunos por paciente no centro médico).
A realidade goiana espelha a situação do país. Inaugurado em 2015, o curso de medicina da UniRV em Goianésia é um dos 247 abertos nas duas últimas décadas, de acordo com dados do MEC (84 apenas nos últimos cinco anos). Esse número representa o dobro das 104 escolas inauguradas nos séculos XIX e XX no Brasil. Desses 247 cursos, 73% são privados. Só cinco tiraram nota máxima na avaliação do MEC (o índice considera as notas dos alunos no Enade, a qualidade do corpo docente e a infraestrutura do curso). E, ainda que apenas dezenove, 7,3% do total tenham tido nota insatisfatória, abaixo de três, muitos deles acumulam graves deficiências no ensino da medicina, sobretudo na parte prática, devido à carência de infraestrutura hospitalar na graduação. “A abertura desses novos cursos foi pensada para suprir a carência de médicos nos rincões do país, mas saiu dos eixos, sobretudo devido ao forte lobby político das instituições particulares de ensino”, diz Eliana Goldfarb Cyrino, professora do departamento de saúde pública da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu (SP) e ex-coordenadora de educação na saúde do Ministério da Saúde. Levantamento inédito do Conselho Federal de Medicina (CFM) estima que os cursos em faculdades particulares arrecadem 2 bilhões de reais por ano com as mensalidades dos alunos, cujo valor varia de 3,6 mil reais a 12,7 mil reais mensais.
Criado em 2013 no governo Dilma Rousseff, o programa Mais Médicos marca o início do boom no número de cursos de medicina. Com o objetivo de mitigar a carência de médicos nos rincões do país, o programa passou a “importar” profissionais estrangeiros ou brasileiros formados fora do país e a incentivar a criação de cursos de medicina em cidades do interior nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Duas portarias definiram critérios objetivos para a escolha do município, entre eles cinco leitos públicos por aluno e um hospital com mais de cem leitos exclusivos para o curso. O programa teve resultado imediato: em 2014 foram inaugurados 38 novos cursos de medicina no país, contra 7 no ano anterior. Já em 2015, no entanto, por conta do lobby das faculdades particulares, houve uma flexibilização das normas, e o que era uma obrigação estrutural da rede pública municipal passou a ser apenas uma recomendação. “Hoje boa parte das faculdades de medicina se tornaram cursinhos de aulas teóricas e semiteóricas”, diz Júlio Braga, coordenador da comissão de ensino médico do CFM. “Há trinta anos o aluno saía da faculdade sabendo fazer uma cirurgia; hoje, muitos não sabem nem prescrever um exame.”
Atualmente, o Brasil tem 10,04 médicos recém-formados para cada 100 mil habitantes, a trigésima maior taxa do mundo – em seis anos, o índice estará em 17,67, o sexto do planeta, segundo o CFM. Esse índice geral do país esconde distorções: em 2027, Tocantins terá 41,5 egressos dos cursos de medicina por 100 mil habitantes; se fosse um país, teria a maior quantidade de médicos recém-formados do mundo. O estado contabiliza atualmente oito cursos de medicina e dezenove hospitais; o problema, segundo Estevam Rivello Alves, médico na rede pública de Palmas, é que apenas seis são adequados para a formação do aluno de medicina. Por isso, muitos estudantes optam por fazer o internato em outros estados. “Cria-se uma situação de insolvência”, diz. Atualmente há 6 mil médicos em atividade no estado, o dobro de dez anos atrás. “Há muita ingerência política na decisão de se criar esses cursos”, diz Arthur Vinicius Moraes Silva, estudante de medicina em Araguaína (TO) e vice-presidente da Associação dos Estudantes de Medicina do Brasil (Aemed). “Muitas vezes o critério deixa de ser técnico. Pensa-se apenas no desenvolvimento econômico da região e no consequente dividendo eleitoral.”
Julia Marinho, 20 anos, aluna do segundo período do curso de medicina da Universidade de Gurupi (UnirG), na cidade homônima de Tocantins, reclama da falta de estrutura do curso. “É comum faltarem professores, e os microscópios estão ultrapassados. Além disso, os cadáveres estão em péssimo estado”, diz. Em 2019, o curso de medicina da UnirG ganhou nota 2 do MEC, considerada insatisfatória. Além de hospitais da região, a UnirG envia alunos para o internato na Santa Casa de Limeira, interior paulista, distante 1,4 mil km de Gurupi.
Em nota, a UnirG disse que, quando há saída de docentes do curso, imediatamente são contratados substitutos e que as aulas são repostas; sobre os equipamentos, afirmou que todos atendem às exigências do curso; e que, dos vinte cadáveres disponíveis para o curso, quatro foram cedidos pelo governo goiano em 2020, depois de não terem sido reclamados por familiares nem terem documentos de identificação quando foram encontrados. “A instituição tem como missão o desenvolvimento regional e a produção de conhecimento com qualidade, por meio da ciência e da inovação.”
Levando em conta os critérios previstos na portaria de 2013 do Ministério da Educação (flexibilizada dois anos depois), apenas 20% dos cursos de medicina do país atenderiam a todos os parâmetros. Se forem consideradas apenas as escolas abertas na última década, esse percentual é ainda menor: 8,1%. No quesito leitos públicos por aluno, dos 228 municípios com ao menos uma faculdade de medicina, 75% não alcançam o índice mínimo de cinco leitos por estudante, incluindo sete capitais (Palmas, João Pessoa, Porto Velho, Belo Horizonte, Manaus, Curitiba e Belém). “Temos negociado com o MEC a retomada desses critérios de avaliação objetivos, porque os atuais não são adequados”, diz Hideraldo Luís Souza Cabeça, diretor do CFM.
A última leva de novos cursos de medicina ocorreu em 2018, no fim do governo de Michel Temer. O MEC selecionou 29 municípios das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, todos com mais de 65 mil habitantes e distantes pelo menos 50 km de uma faculdade de medicina já existente. Equipes de avaliadores do ministério visitaram esses municípios para avaliar a estrutura de saúde pública. Em Itacoatiara (AM), município de 103 mil habitantes às margens do Rio Amazonas, o grupo do MEC encontrou uma situação precária: o único hospital local estava com o tomógrafo quebrado e não tinha ventilador mecânico – se um paciente apresentava insuficiência respiratória, tinha de viajar quatro horas de ambulância até Manaus com ventilação manual. Os avaliadores também constataram que muitos dos leitos haviam sido instalados recentemente, apenas para a visita do MEC.
Em Estância, cidade de 70 mil habitantes no litoral sergipano, a situação era ligeiramente melhor, mas ainda assim precária: hospitais sem equipamentos básicos, como tomógrafo, e falta de comunicação entre as unidades de saúde. “Qualquer caso mais grave era encaminhado de ambulância para Aracaju”, lembra um dos avaliadores, que não quis se identificar para não se indispor com o Ministério da Educação.
Das 29 cidades, 9 foram reprovadas e uma acabou excluída. Mas as nove prefeituras recorreram e acabaram sendo aprovadas mediante a assinatura de um “termo de compromisso” com a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres), ligada ao MEC. No documento, os prefeitos garantem, entre outros pontos, a oferta de cinco leitos do SUS por aluno e de oitenta leitos em um hospital de ensino. Também assumem compromissos vagos, como “implementar melhorias contínuas na estrutura física da rede municipal de saúde, […] visando o bom funcionamento e manutenção da qualidade do curso de graduação em medicina”.
“Foi uma solução política. Infelizmente a Seres é um balcão de negócios. Perdi meu tempo com uma análise criteriosa e, no fim, tudo acabou no lixo”, critica o avaliador. Procurado desde a semana passada, o MEC não se pronunciou.
Ainda em 2018, o Ministério da Educação concluiu o processo de seleção das faculdades para cada um dos 28 municípios – cada curso terá no mínimo cinquenta vagas. Escolhido para a graduação de medicina em Itacoatiara, o grupo Afya afirma ter investido 15 milhões de reais na construção do campus. Segundo a assessoria do grupo, o curso depende apenas do aval do MEC para começar a funcionar – o valor previsto da mensalidade vai variar entre 7 e 8 mil reais. O Afya disse desconhecer possível pressão sobre o MEC para a criação do curso na cidade amazonense. Já o curso em Estância, que começou em julho do último ano, ficará a cargo do Grupo Tiradentes. Em nota, a instituição afirmou que a rede de saúde pública do município “atende às necessidades básicas da sua população, apresentando, inclusive, todos os requisitos para o recebimento de um curso de medicina”. O prefeito de Estância, Gilson Andrade (PSD), reeleito em 2020, não retornou as ligações. Já o prefeito de Itacoatiara na época da escolha do município, Antônio Peixoto de Oliveira (PT), não foi localizado.
No interior paulista, investigação da Polícia Federal descobriu que um curso particular de medicina transformou-se em um grande balcão de negócios. Em atividade desde 2016, a Universidade Brasil em Fernandópolis, segundo a PF e o Ministério Público Federal (MPF), falsificava as declarações de renda dos alunos de medicina para ingressá-los no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) ou matriculava-os inicialmente em outro curso (onde era mais fácil obter o financiamento) para, semanas depois, transferi-los para a medicina, o que é ilegal. Além disso, ainda de acordo com a polícia e o Ministério Público, a faculdade driblava o Revalida, prova aplicada pelo MEC para graduados em medicina fora do Brasil: ilegalmente, permitia que o aluno, normalmente brasileiros formados na Bolívia ou no Paraguai, cursasse o internato em Fernandópolis e em seguida obtivesse o diploma como se houvesse concluído o curso integralmente na Universidade Brasil. Tudo isso mediante a cobrança de uma taxa que variava de 80 mil a 120 mil reais.
Como consequência desse balcão de vagas, o curso inchou: embora fosse autorizado pelo MEC a abrir 205 vagas anuais, a faculdade chegou a manter 400 alunos por ano. “Agindo desta forma, os integrantes da organização criminosa transferiram boa parte do risco de inadimplência, que acompanhou a ilegal conduta de aumentar a oferta de vagas no curso de medicina, aos cofres públicos da União, que é quem patrocina o programa de financiamento estudantil”, afirma o MPF na denúncia. O prejuízo aos cofres públicos foi calculado pela PF em pelo menos 250 milhões de reais.
A investigação mostra que, em pouco tempo, o reitor da universidade, José Fernando Pinto da Costa, passou a ser procurado por pessoas influentes em busca de vagas no curso de medicina para os filhos, parentes ou conhecidos, entre eles os deputados Fausto Pinato (PP), federal, e Roque Barbiere (Avante), estadual. Em julho de 2019, um juiz de direito de São José do Rio Preto (SP), não nominado no inquérito da PF, procurou um dos diretores da Universidade Brasil, que também era escrevente no Tribunal de Justiça, em busca de “uma força” para inscrever a filha no Fies; em troca, o magistrado oferecia ajuda na transferência do servidor para outra comarca: “E aquela notícia que você tinha me dado? Tá em estudo ainda?”, pergunta o juiz, referindo-se ao ingresso no Fies. “Já passei diretamente pro mantenedor e expliquei a condição, tudo… eu creio que a gente vai conseguir uma ajuda, sim.”
Costa e outras dezenove pessoas foram presas pela PF em setembro de 2019 – atualmente, ele responde em liberdade à ação penal, acusado pelo MPF por organização criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informações e estelionato. As citações aos deputados Pinato e Barbiere e ao juiz foram remetidas, respectivamente, à Procuradoria-Geral da República, à Procuradoria da República da 3ª Região e à presidência do TJ paulista. Em novembro último, porém, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes (sempre ele) concedeu liminar à defesa de Costa suspendendo o trâmite da ação penal em primeira instância, com o argumento de que foram citados no inquérito parlamentares com foro privilegiado. O caso ainda será julgado pelo plenário do STF.
Em nota, a defesa de Costa e da Universidade Brasil disse que as acusações são “falsas”. “As regras do Fies são rígidas, com controles rigorosos. Quem conhece o sistema sabe que não há possibilidade de ‘vendas’ de vagas com financiamento.” Também por meio de nota, a assessoria do deputado Pinato afirmou não haver elementos que apontem para a participação dele nos crimes investigados pela PF na Universidade Brasil. A assessoria do parlamentar Barbiere não se manifestou.
Nota do blog: Data e autoria da imagem não obtida.