Blog destinado a divulgar fotografias, pinturas, propagandas, cartões postais, cartazes, filmes, mapas, história, cultura, textos, opiniões, memórias, monumentos, estátuas, objetos, livros, carros, quadrinhos, humor, etc.
domingo, 20 de setembro de 2020
Riacho Ipiranga / Monumento à Independência, São Paulo, Brasil
Riacho Ipiranga / Monumento à Independência, São Paulo, Brasil
São Paulo - SP
Fotografia
Em frente ao Monumento da Independência, no bairro do Ipiranga, em São Paulo, um cheiro podre toma o ar. Quem se aproxima do local onde D. Pedro I deu o grito da nossa “libertação” para ver de perto o famoso riacho citado no hino nacional, encontra um cenário triste: sujeira, mau cheiro e meninos fumando crack no que sobrou de suas “margens plácidas”. Quase 200 anos depois da Independência, esse é o estado do riacho do Ipiranga em seu lugar mais nobre.
Segundo a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), a qualidade da água deste ponto específico do rio foi avaliada como “péssima” em medições feitas em janeiro, em maio e em julho deste ano. Em todos os seus 9,5 km de extensão pela cidade, só há um ponto em que ele é realmente limpo: em sua nascente, no Jardim Botânico.
Lá, uma trilha de 20 minutos construída no meio de uma reserva da mata atlântica leva a uma das três fontes que formam o rio. Limpo e com peixes, ele segue a céu aberto até o final do parque, quando encontra outros dois córregos na cidade e começa a receber o esgoto e a sujeira que o poluem.
“Depois da descanalização, a visitação [no Jardim Botânico] aumentou bastante”, conta Tânia Cerati, diretora do núcleo de pesquisa em educação do Instituto de Botânica. Quando ela chegou ao Jardim, há 20 anos, o riacho era tampado com um concreto, obra provavelmente do começo do século XX. O acesso à uma de suas nascentes era um projeto de Tânia, concretizado em 2006. Dois anos depois, ele foi todo revitalizado, e hoje o paisagismo do parque acompanha suas águas. “Acho que aqui é um bom exemplo de que é possível restaurar a natureza e com isso compensar vários erros que cometemos no passado”, diz ela.
Saindo do Jardim Botânico, no entanto, o riacho praticamente morre. Passando pela Rodovia dos Imigrantes, às vezes sob galerias fechadas e às vezes a céu aberto, suas águas recebem esgoto e são praticamente irreconhecíveis por quem passa ao redor.
Após percorrer a Avenida Abraão de Morais em diversos trechos, apenas um pedestre - nenhum motorista - sabia que no meio daquele buraco acimentado no canteiro central corria o famoso rio Ipiranga. Em outras partes da cidade, algumas pessoas não sabiam nem que o riacho ainda existia. “Mas esse rio não tinha secado?”, perguntou uma moradora da Zona Sul.
A relação das pessoas com o riacho do Ipiranga é quase inexistente. Para Tânia Cerati, isso se deve muito ao fato de ele correr seco, sem mata ao redor, entre grandes avenidas. "Uma parte dele é canalizada, e, portanto, imperceptível. Mas a partir de um determinado trecho, ele é descanalizado, corre a céu aberto. Só que tem um grande problema: existem avenidas que percorrem a lateral desse rio. Não basta só a descanalização, é preciso ter um rio que tenha qualidade boa da água. Isso vai trazer peixes, vai trazer uma flora e uma fauna associadas. Também nas margens é preciso criar um ambiente propício, aquilo que chamamos de mata ciliar. É isso que dá suporte à existência do rio, e é isso que torna agradável a convivência das pessoas com o rio”, explica ela.
A historiadora e professora da USP Cecília Helena Salles Oliveira diz que a relação do brasileiro com o riacho do Ipiranga é "dupla". "Por um lado, há o reconhecimento de que é um lugar diferente, porque estas paragens simbolizam o nascimento de uma nação. [...] Mas por outro lado, é profundo desalento, porque o riacho está muito sujo, recebe águas servidas, nas épocas de grandes chuvas ele alaga, continua alagando.”
O Ipiranga tem, e sempre teve, um volume pequeno de água - e por isso é comumente chamado de riacho. Seu uso na história do Brasil nunca foi muito relevante, e sua fama se deve principalmente ao fato de estar ligado à Independência do país. Essa tese foi defendida na dissertação de mestrado do historiador e pesquisador do Arquivo Nacional Pablo Endrigo.
Ele disse que o riacho era inexpressivo até a Independência e que a primeira menção a ele nos documentos oficiais data de 1773 - uma tentativa de canalização que nunca aconteceu. "O uso do rio era pelos tropeiros em viagens entre São Paulo e o porto de Santos, passando pela Serra do Mar. Usavam [o rio] para beber água, lavar as botas. [...] O Ipiranga esteve em uma região praticamente desabitada. Ele é mais valorizado do que deveria pelo seu tamanho e uso."
Segundo o historiador, a fama do rio foi crescendo com o hino nacional e com a pintura do quadro de Pedro Américo - que, ao retratar a Independência, faz um desvio topográfico deixando o riacho à frente de D. Pedro I, quando na realidade ele estaria atrás. Depois, veio a construção do Museu e do Monumento à Independência. "Aí você tem a associação final: a imagem, o hino e a situação histórica."
Embora não seja de muito uso pela cidade, a não ser para receber dejetos, o riacho tem um papel histórico para o país. O fato de estar poluído há tantos anos irrita muitos moradores da capital, que já tentaram se mobilizar para mudar a situação.
O professor de engenharia da USP Sadalla Domingos é um dos autores de um projeto de limpeza e revitalização do riacho, que cria um parque linear desde a Rodovia dos Imigrantes até o Parque da Independência. Sadalla apresentou o projeto à Prefeitura da cidade em 2005, mas não recebeu nenhuma resposta. Segundo ele, falta vontade política.
"Como é possível que um símbolo histórico do Brasil tenha chegado a este grau de poluição? Além disso, qual é a expectativa em relação ao Riacho do Ipiranga e a todos os outros rios, e por que não ampliar a questão: qual é o ambiente de cidade que desejamos?", questiona o professor, indignado.
Outro entusiasta do projeto, o professor de direito ambiental da PUC Guilherme José Purvin criou um fórum de debates sobre uma possível revitalização do Riacho e a criação de um parque ao seu redor. "O rio está morto, completamente morto. Se você for na [Avenida Dr] Ricardo Jafet, aquilo está num estado deplorável. [...] Acho meio vergonhoso. Uma professora leva os alunos para conhecer o lugar da independência e é uma região que tem desmanche e motel", diz ele.
Percorrendo o trajeto do riacho, da nascente até o desague, no rio Tamanduateí, encontramos sujeira e mal cheiro em todo o caminho - a partir da saída do Jardim Botânico. Em três dias diferentes, podemos ver jovens usando drogas nas margens que ficam em frente ao Monumento da Independência.
A Prefeitura de São Paulo informou que desde 1986 foram realizadas 12 obras na região, que contribuíram para diminuir o problema das enchentes. As últimas obras quase dobraram a vazão do córrego e aumentaram de 9 para 13 metros sua largura. "Além disso, as galerias e o sistema de drenagem foram substituídos e ampliados, aumentando o fluxo de escoamento da água", dizia a nota. As Subprefeituras Ipiranga e Vila Mariana também informam que a limpeza no córrego do Ipiranga é realizada mensalmente de forma manual e, em alguns trechos, com ajuda de máquinas.
A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) informa que concluiu, em julho deste ano, uma obra na região - parte da terceira fase do Projeto Tietê. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, os investimentos foram de R$ 51,6 milhões e permitiram que 380 litros de esgoto por segundo vindos dos bairros Ipiranga, Vila Mariana, Saúde, Bosque da Saúde, Cursino, Jabaquara e Americanópolis seguissem para tratamento na estação de Barueri.
Ainda de acordo com a Sabesp, as medições feitas desde o término da obra mostram uma melhoria na qualidade da água do riacho do Ipiranga. No entanto, o último resultado da coleta feita pela Cetesb, de julho, mantém a indicação de qualidade "péssima".
"O riacho do Ipiranga pode e deve ser recuperado como uma prioridade entre todos os rios da cidade. [...] Isto é renaturalização de corpos d'água em áreas urbanas, uma tendência em todos os países: rios são despoluidos e destampados pelo menos em alguns trechos que permitam aos cidadãos perceber que tem um rio sob seus prédios, rodas e pés. É aqui que entra a política não só como interpretação do momento, mas como intuição, uma premonição até, para tomar uma decisão hoje como antecipação de uma demanda que será inevitável e muito mais cara ou até impossível [no futuro]", explica o professor Sadalla.
Ele termina a entrevista expressando um desejo, quase uma profecia, em nome de muitos brasileiros: "Antecipemos o início das programações do bicentenário da Independência e iniciemos no Ipiranga a limpeza de todas as nossas águas."
Curiosidade: "Ipiranga" é uma palavra de origem tupi que significa "rio vermelho", através da junção dos termos 'y (rio) e pirang (vermelho), daí ser antigamente escrito Ypiranga, conforme as normas ortográficas de outrora.
Um pouco de história: Uma incômoda diarreia obrigou o príncipe Dom Pedro a fazer repetidas paradas ao longo dos 70 quilômetros da volta de Santos para São Paulo. Por volta das 16h30 do dia 7 de setembro de 1822, perto do riacho do Ipiranga, a tropa parou numa venda, numa área desabitada, para descansar e dar de beber às mulas. Dom Pedro precisava se aliviar. Faltavam ainda 5 quilômetros para chegar a São Paulo, trecho em que passariam por apenas oito casas. Ali, naquele ponto, o príncipe recebeu as cartas do ministro José Bonifácio de Andrada e Silva e da mulher, a princesa Leopoldina, que desencadearam o grito de independência do Brasil de Portugal. Foi assim que um até então inexpressivo riacho (e não rio, por causa do pequeno volume de água) passou pela vida de Dom Pedro e entrou para a história brasileira.
O Ipiranga nasce no Parque do Estado, acompanha hoje importantes avenidas da zona Sul de São Paulo – Professor Abrahão de Morais, Ricardo Jafet e Teresa Cristina – até desaguar no Rio Tamanduateí, onde está a Avenida do Estado. A maior parte de seus 9 quilômetros está coberta por concreto. “Ele foi canalizado em 1942, como quase todos os demais riachos e rios da cidade de São Paulo”, explica o historiador Paulo Rezzutti, autor de D. Pedro – A História Não Contada. O responsável pela canalização foi o prefeito Francisco Prestes Maia (1896-1965) e o chamado “Plano de Avenidas”, colocado em prática em sua primeira passagem pelo cargo, entre 1938 e 1945. Antigos leitos de rios foram transformados em avenidas. “Há uma pequena parte do riacho que pode ser vista entre o Parque da Independência e a Avenida Doutor Ricardo Jafet,”, aponta Rezzutti. O trecho, que poderia ser um cartão-postal da cidade, está sujo e tem cheiro ruim.
O único ponto realmente saudável do Ipiranga fica dentro do Parque do Estado, também chamado de Parque das Cabeceiras do Ipiranga ou Parque das Fontes do Ipiranga. Esse grande parque abriga o Jardim Botânico, o Zoológico, o Parque de Ciência e Tecnologia, o Instituto de Botânica e o Observatório de São Paulo. A parte limpa do Ipiranga tem apenas 400 metros e recebe o nome de Córrego de Pirarungaua. O trecho foi descanalizado em 2006 e recuperado dois anos depois. “Dentro do Jardim Botânico, temos uma trilha suspensa de 360 metros no meio da Mata Atlântica”, explica o diretor do Jardim Botânico Domingos Rodrigues. “A trilha vai até uma das nascentes do Riacho do Ipiranga, de onde brotam suas águas. Nós somos os responsáveis por manter o local limpo e cuidamos dos pequenos peixes que vivem lá”. No final do parque, quando encontra a Avenida Miguel Stéfano, o Ipiranga começa a receber o esgoto de dois córregos. O esgoto doméstico e industrial que é despejado nele torna-o um riacho morto.
Diferente do Ipiranga que cruzava o “Caminho do Mar”, estrada que ligava São Paulo a Santos. Quem descia ou subia a serra acabava passando pela colina do Ipiranga. “Em tupi-guarani, Ipiranga significa ‘rio vermelho’, por causa da tonalidade escura e barrenta de suas águas”, diz o jornalista e escritor Laurentino Gomes, autor de 1822 – Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado. Na época chamada de Moinhos, a região acabou sendo rebatizada de “Ipiranga”, justamente em homenagem ao riacho.
A Independência foi mesmo proclamada às suas margens? O quadro “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, é a mais famosa imagem do que aconteceu naquele 7 de setembro. Só que o pintor fez uma série de alterações na cena, incluindo até mesmo uma mudança na localização do riacho (leia o texto abaixo). Laurentino Gomes explica que foram dados, na verdade, dois ‘gritos’. O primeiro, mais silencioso, foi uma conversa entre Dom Pedro e parte da comitiva. O monarca explicou que proclamaria a independência do Brasil naquele momento. O segundo, um pouco mais solene, aconteceu a 408 metros do riacho. “O grito aconteceu na altura de onde se encontra hoje o Monumento do Ipiranga”, explica Laurentino. Lá, ele disse à guarda de honra – cavalaria e sertanejos – o famoso ‘Independência ou Morte!’.
“Na América Latina, convencionou-se chamar de ‘grito’ qualquer proclamação ou declaração pública que anunciasse o movimento independentista”, explica Paulo Rezzutti. “É por isso que, no Brasil, o ato de Dom Pedro de separar politicamente o Brasil de Portugal, realizado próximo ao riacho do Ipiranga, ficou conhecido como o ‘Grito do Ipiranga’”. A São Paulo de 1822 era muito simples – foi apelidada de “formosa sem dote” por um antigo governador. A área urbana era confinada entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú e a população local não ultrapassava os 5 mil habitantes.
O pequeno Ipiranga acabou sufocado com o crescimento da metrópole. Mas nunca foi esquecido. Em 2005, Sadalla Domingos, professor de Engenharia Civil da USP, apresentou à Prefeitura um projeto de limpeza e revitalização do riacho. A ideia, que nunca saiu do papel, era transformar a região num grande polo turístico, valorizando a história da Independência. Pelos planos do professor, haveria um parque vertical percorrendo toda a extensão do riacho. “Queremos para o Ipiranga o que queremos para todo rio: que ele seja limpo e útil para a população”, proclama Sadalla. “Mas isso requer comprometimento do poder público e mobilização dos cidadãos”. Mobilização para não deixar uma parte da história do Brasil acabar em esgoto.
Um pouco sobre o quadro: O pintor Pedro Américo estava estudando em Florença, na Itália, em 1886, quando foi chamado pelo imperador Pedro II para retratar o momento da Independência do Brasil. Pedro Américo viajou para São Paulo e foi conhecer o local da proclamação. Conversou até com algumas pessoas que fizeram parte da comitiva. Quando terminou a pesquisa, Pedro Américo tinha uma noção exata de como tudo aconteceu. Mesmo assim, para dar mais pompa ao seu trabalho, fez uma série de mudanças na cena do famoso quadro “Independência ou Morte”, finalizado em 1888. Mudou as roupas e trocou as mulas da comitiva por garbosos cavalos. Mudou também a posição geográfica do Ipiranga. Pedro Américo deixou o riacho à frente de D. Pedro, quando ele deveria estar atrás. Colocou ainda o riacho mais próximo da “Casa do Grito” (na época da proclamação, ela era uma venda conhecida como Rancho Nacional), que ficava a 140 metros de distância.
O riacho ganhou ainda mais fama quando foi parar na letra do Hino Nacional brasileiro – “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante (…)”. Os versos escritos por Joaquim Osório Duque Estrada em 1909 foram oficializados somente em 1922, ano do centenário da Independência. “Não posso precisar se meu bisavô conheceu o Ipiranga, mas muito provavelmente sim”, diz Eliza Duque Estrada. Duque Estrada nasceu em Paty do Alferes, no interior do Rio de Janeiro, mas viajou muito para São Paulo. “Duque Estrada foi um homem muito culto, amante da língua portuguesa, do Brasil e de sua história. A combinação desses elementos e sua paixão pela Terra Brasilis foram fonte de inspiração para exaltar nossas belezas naturais na composição do Hino Nacional”.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário