quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Comprando Soldados: Uma Estratégia de Recrutamento Para a Guerra do Paraguai - Artigo

 


Comprando Soldados: Uma Estratégia de Recrutamento Para a Guerra do Paraguai - Artigo
Artigo

Para dar conta do conflito que já durava quase dois anos, o Império do Brasil criou uma Lei que permitia a alforria de escravos em troca de serviço militar – e dinheiro para o “seu senhor”.
Quase dois anos de guerra já haviam se passado. As forças militares brasileiras, que tinham argentinos e uruguaios como aliados, estavam desorganizadas. Aquele ano fora particularmente difícil para os soldados no front: em abril de 1866 teve início a invasão ao desconhecido território paraguaio. Uma verdadeira guerra de posições. O deslocamento das tropas era demorado e custoso; o Exército brasileiro estava desarticulado. A derrota dos aliados na Batalha de Curupaiti, em setembro, evidenciaria o esgotamento de suas forças.
Longe do palco da “Guerra do Paraguai”, as autoridades brasileiras viam o recrutamento entrar em crise: após tantos meses de conflito, o ímpeto inicial de voluntariado estava arrefecendo. A esperança em uma solução rápida para a guerra desapareceu, deixando o alistamento cada vez mais difícil. Fugas, confrontos locais, brigas políticas, casamentos forjados e muitos outros problemas passaram a ser enfrentados pelos que buscavam soldados pelo país. As tentativas de forçar membros da Guarda Nacional a irem para os campos de batalha provocavam sucessivas reações. Na imprensa, as querelas envolvendo o recrutamento eram assunto rotineiro.
Foi nesse contexto que, em outubro de 1866, D. Pedro II enviou ao Conselho de Estado três quesitos para consulta. A primeira questão era a de se, caso prosseguisse a guerra, seria “conveniente lançar mão da alforria de escravos para aumentar o número de soldados do Exército”. O Imperador também queria saber quais escravos seriam “preferíveis para o fim de que trata o primeiro quesito, os da Nação, os das Ordens Religiosas ou os de particulares”. Por fim, a última pergunta do monarca era: “como realizar essa medida?”.
A solução que D. Pedro II estava propondo era audaciosa e polêmica, pois tocava em dois temas importantes, sensíveis e, ao mesmo tempo, definidores do Brasil de então: a escravidão e a Guerra do Paraguai. Não à toa, a reunião para deliberar sobre os três questionamentos foi marcada para uma semana depois do envio dos mesmos pelo Imperador, que presidiu o encontro.
Por horas, membros do Gabinete Ministerial e membros efetivos do Conselho de Estado debateram sobre as possibilidades de recrutar os libertos e sobre as prováveis consequências de tal mobilização. O medo e a apreensão cercavam a fala da maioria dos conselheiros que estavam na sessão. Para Antônio Paulino Limpo de Abreu, por exemplo, o processo de manumissão deveria ser realizado com “discernimento e prudência”. José Antonio Pimenta Bueno também alertava para a necessidade de cautela, pois, na sua visão, o recrutamento de libertos poderia ser encarado como o princípio da emancipação geral dos escravos. O conselheiro Visconde de Itaboraí engrossava o coro dos temerosos: em seu voto, Joaquim Rodrigues Torres classificou a proposta de libertar escravos para a guerra como “impolítica, indecorosa, ineficaz ou para deixar de sê-lo, se tornará minimamente onerosa ao Tesouro Público”.
Outros conselheiros insistiam na questão da segurança. O receio de que as alforrias incentivassem a movimentação de escravos pelo país esteve presente em diferentes votos. Afinal, ao propor uma medida de libertação dos cativos, mesmo que vinculada à atuação na guerra, o governo poderia, na opinião de alguns, estar fomentando fugas e sublevações pela abolição. Foi também recorrente o argumento de que a libertação de escravos para guerra traria sérios transtornos para a agricultura nacional. Retirar mão-de-obra das lavouras naquele período pós-proibição do tráfico internacional de escravos, sem a previsão de substituição da força de trabalho aterrorizava os grandes senhores e fazendeiros representados no Conselho de Estado. Não se pode esquecer que o café era, então, o principal produto brasileiro. Mesmo o conselheiro Nabuco de Araújo, defensor do engajamento dos libertos, sugeriu que as alforrias acontecessem preferencialmente nas capitais, onde os escravos poderiam ser mais facilmente substituídos por braços livres.
Mas, apesar de todos os obstáculos colocados pelos conselheiros que eram contrários à medida, o caráter emergencial do recrutamento para o conflito no Paraguai pareceu guiar a decisão final. No dia seguinte à sessão, 6 de novembro de 1866, o decreto nº 3.725 concedeu liberdade gratuita aos escravos da nação que pudessem servir na guerra. Mas um dos pontos de tensão – que era o cuidado para com os senhores de escravos – não foi deixado de lado. Na prática, tal determinação abriu espaço para que os senhores vendessem seus escravos para o governo com esta finalidade.
No início de 1867, os primeiros grupos de escravos comprados pelo Império foram encaminhados para o Exército e a Marinha do Brasil. Homens que, repentinamente, viram chegar suas cartas de alforrias, seus uniformes e a missão de defender a pátria que até então lhes negava a cidadania.
Um desses homens foi o baiano Raimundo. Em junho de 1867, ele, que era então escravo do fazendeiro Manoel Cruz Pinto, saiu pelas ruas da Freguesia de Vera Cruz carregando um pedaço de papel. No bilhete, um aviso de Manoel dizia que Raimundo tinha licença para procurar outro senhor, já que o escravo mostrava “não estar satisfeito com o cativeiro” de Manoel, que completava a mensagem: “quem pretender comprar, vá a minha casa que me achará para contratarmos o preço”.
Duas semanas depois de deixar a fazenda de Barra Grande, Raimundo retornou com uma reposta para o fazendeiro. Ao final de seu bilhete, Manoel percebeu que haviam rabiscado outra mensagem: “O governo dá um conto e duzentos mil réis em apólices com a condição de assinar a carta de liberdade. Querendo, há de vir ou mandar procurador para tratar o negócio”.
A quantia que o governo pagou pelo cativo acabou sendo maior do que a que fora oferecida a princípio. Manoel recebeu um conto e quatrocentos mil réis do Império e o escravo foi então alforriado. A partir dali, Raimundo deixaria o cativeiro indesejado, mas a liberdade, tão almejada, não seria plena afinal. A carta de alforria não lhe garantiu o direito de se deslocar para onde quisesse ou de fazer o que bem entendesse. Como muitos outros escravos do Brasil, Raimundo foi comprado e libertado com um objetivo específico: ingressar na luta contra as forças paraguaias.
A alforria de escravos comprados pelo governo não foi a única forma de inserção dos cativos na guerra. Doações e substituições também aconteceram. Mas a análise da documentação de compra dos escravos permite concluir que, em muitas províncias, ela foi um instrumento significativo de recrutamento militar nos anos de 1867 e 1868.
Encarregados do Império geriam a compra dos escravos nas províncias. Na Bahia, por exemplo, Pedro Joaquim de Vasconcelos, fixado no Arsenal da Marinha de Salvador, publicava anúncios nos jornais locais convidando possíveis vendedores a encaminharem seus escravos para o serviço militar. A exemplo do que aconteceu em outras cidades brasileiras à época, o negócio da venda de cativos para a guerra agitou a praça de Salvador. Além do representante do governo, dos escravos e dos respectivos proprietários, boa parte das negociações envolvia também a figura do procurador. Isso mostra que a compra de soldados pelo governo brasileiro durante a Guerra do Paraguai não foi uma opção de negócio apenas para os senhores, mas também para seus procuradores, os quais constituíam redes, buscando, no interior, escravos que pudessem ser vendidos nas capitais.
Depois de vendidos, alforriados e examinados por uma junta médica, os libertos viravam soldados. Deslocados pelas necessidades da guerra, muitos eram obrigados a deixar para trás a cidade natal, os laços e a família. Em alguns casos, saíam da agricultura diretamente para o cenário de guerra. Um levantamento feito a partir das alforrias de quase 430 escravos da Bahia permitiu concluir que a maioria era declaradamente do “serviço da lavoura” ou vinha da zona rural. Outras atividades apareciam em menor número: cozinheiros, calafates, alfaiates, vaqueiros e de ganho. Tinham entre 16 e 35 anos; a maior parte, sem identificação do estado civil. Ao serem recrutados, escolhiam ou eram induzidos a adotar sobrenomes. E seguiam para a Corte em embarcações da Marinha, a qual foi, em verdade, o principal destino dos que saíram da Bahia.
A proposta do Imperador, a aplicação da estratégia e as discussões ministeriais fazem parte do longo processo histórico de fim da escravidão no país, que envolveu disputas de poder e interesses. E neste processo, é importante observarmos as ambiguidades de cada momento. Para este o grupo de libertos baianos e para todos os outros que foram comprados e recrutados pelo Império nas demais províncias, por exemplo, as vendas significaram, sem dúvidas, uma alforria imediata. Significaram, ainda, a possibilidade de distanciamento do lugar do cativeiro para os que assim desejavam, como no caso de Raimundo. Por outro lado, a liberdade, para estes homens, veio limitada. Se a libertação do escravo era condição para a venda e para que fosse recrutado, a alforria, por sua vez, também estava condicionada. Ao serviço militar.

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