Brasil - 69 minutos
Poster do filme
Neste texto trataremos de obra sobre o nome máximo do futebol; sobre aquele que
anos mais tarde seria eleito o “atleta do século”. Podemos dizer que até o lançamento de "Pelé Eterno", de Aníbal Massaini, em 2004, "Isto é Pelé" constituísse no mais completo registro da carreira do maior jogador de todos os tempos. Aliás, a relação entre Edson Arantes (e principalmente de seu alter ego) com a sétima arte, é prolixa. Felizmente o professor Victor Melo inventariou as atuações fílmicas do craque, classificando a participação de Pelé em filmes em quatro rubricas agrupadoras: uma
na qual o motivo principal é sua carreira e/ou figura; outra na qual Pelé representou o próprio
papel ou de jogador, no contexto de uma ficção; uma terceira em que atuou como ator em
enredo não ligado ao futebol e, finalmente, quando esteve representado como mais um dos
personagens. O resultado perfaz um total de vinte e quatro filmes (dezessete longas e sete
curtas). É uma filmografia considerável. E a aventura fílmica do craque não acabou, atualmente vem sendo lançados vários filmes sobre a vida e carreira de Pelé.
Essa marcante presença de Pelé na cinematografia atesta a popularidade incomum atingida pelo mito. Para além da famosa história, segundo a qual o próprio ex-atleta teria afirmado ser mais conhecido que Jesus, reeditando declaração de John Lennon em relação aos Beatles, nos idos de 60, há, no meio da propaganda, um fenômeno Pelé. A International Advertising Association divulgou que o rosto do ex-jogador seria “imbatível em número de aparições em peças publicitárias em todo o mundo”, por conta disso agraciou o craque com um informal “atestado de ‘Garoto-Propaganda do Século’”. Um artigo da seção negócios da "Istoé Dinheiro" calculava, em 2002, que os rendimentos anuais de Pelé superavam os US$ 15 milhões e listava em sua carteira de clientes empresas como “Mastercard, Nokia, Coca-Cola e as brasileiras Petrobras, Vitasay (vitaminas), Probel (colchões) e Golden Cross”.
A magnitude do nome, figura, mito Pelé é, portanto, indiscutível. O caráter de constructo dessa operação não deve minimizar os elementos de uma trajetória efetiva que, poucos podem duvidar, qualifica o jogador para o papel de personificação desse exercício monárquico desportivo moderno. Em uma brevíssima súmula, podemos lembrar os 10 títulos paulistas pelo Santos (sendo Pelé o artilheiro do campeonato por 11 vezes; 9 delas consecutivamente), o bicampeonato da Taça Libertadores e do Mundial Interclubes (1962 e 1963); os três títulos mundiais pela Seleção Brasileira. Vale destacar ainda as 1.375 partidas nas quais marcou 1.285 gols, ao longo de 21 anos de carreira. Isso implica a média de 0,93 gols por partida!. Sem adentrarmos em uma aproximação qualitativa, da técnica e recursos
demonstrados, a extensão no tempo, a regularidade espantosa e a eficiência a toda prova se mostram, no conjunto, insuperáveis. Na sequência, vamos ver como os homens de cinema
equacionaram a exibição fílmica do reinado de Pelé que, em 1974, ano de feitura da fita, dizia adeus, em grandioso estilo, a sua participação oficial pela Seleção Nacional.
O lugar cinematográfico da fita ("Isto é Pelé", 1974):
Luiz Carlos Barreto apresenta uma indiscutível presença no cinema nacional, fundamentalmente como um grande produtor. Na função de direção, no entanto, Luiz Carlos somente tem um trabalho assinado, exatamente "Isto é Pelé", em parceria com Eduardo Escorel.
Nesse empreendimento, Barreto também foi co-produtor, com Carlos Niemayer. Escorel, por seu turno, acumulou o trabalho de edição, sua especialidade, a qual já emprestou seu talento a mais de 32 películas, tais como "Macunaíma" (1969), "Cabra marcado pra morrer" (1985), "Santiago" (2007), etc. Na tarefa de direção Escorel é bem mais experiente que Luiz Carlos, já tendo tido dez filmes sob sua batuta direta. Talvez o mais significativo para os nossos fins, seja observar o envolvimento não casual com o futebol (com o lidar com a transformação desse esporte em temática fílmica) por parte de Luiz Carlos Barreto. Em entrevista concedida ao jornalista Luiz Oricchio, Barreto contaria sua aventura cinematográfica-futebolística, lembrando que, além de "Isto é Pelé", também produziu e colaborou no roteiro e segunda unidade de câmera em "Garrincha, Alegria do Povo", e produziu os seguintes filmes: o documentário "Mané Garrincha", de seu filho Fábio, "Uma Aventura do Zico", de Antônio Carlos
Fontoura e "O Casamento de Romeu e Julieta", de seu outro rebento, Bruno Barreto.
"Isto é Pelé", ademais, tem um lugar especial em relação à receptividade alcançada. Silva Neto registra o público pagante em 738.728 pessoas. Esse resultado, para um documentário, no Brasil, já configuraria um grande sucesso, porém há mais dados. A Agência Nacional de Cinema (ANCINE), apesar da precariedade de informações e estatísticas, principalmente para períodos um pouco mais afastados no tempo, divulgou uma preciosa lista com os filmes nacionais (449 no total) com bilheteria acima de 500 mil espectadores, de 1970 a 2011. Nela podemos encontrar "Isto é Pelé" na 196ª posição, com uma assistência ainda maior que a registrada por Silva Neto: 1.029.452.
Se levarmos em conta que na transformação da película para videocassete esse título foi um grande êxito da Globovídeo, na década de 1980, com 15.000 cópias vendidas até setembro de 1988, chegamos
ao termo de uma empreitada comercial e de público bastante favorável.
Uma das apostas explicativas para essa resposta extremamente positiva, principalmente quando do lançamento da película, é arriscada por Marco Antônio Resende, quando afirma que o documentário foi disponibilizado “com raro senso de oportunidade, nas vésperas da décima copa Mundial de Futebol”. Para além disso, seus criadores teriam acertado ao proporcionar que, “durante 68 minutos, o espectador se banhe em mais de cem gols históricos feitos pelo Rei do futebol”. Na opinião do jornalista, trata-se “(...) de um documentário emocionante, repleto de nostálgicas situações”. O tom crítico fica pela ausência do Rei “em casa, com a família ou conversando com os amigos”. Ou seja, “(...) focalizando
apenas o artilheiro Pelé”, faltaria “a dimensão humana”, encontrada, por exemplo, no excelente "Garrincha, Alegria do Povo". Nesse aspecto, Marco Resende é acompanhado, doze anos mais tarde, pelo editor de uma matéria publicada na própria Veja, por ocasião da chegada ao mercado de novos vídeos cassetes de filmes nacionais. Mais uma vez, a fita de Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto é comparada a de Joaquim Pedro de Andrade, que acabava de ser lançada pela Globovídeo. Na reportagem se lê que os respectivos filmes somente têm em comum o “rótulo de documentário”. Vejamos: Pelé e Garrincha compartilham apenas o rótulo de documentário, pois são fitas bastante diferentes. (...) Isto é Pelé é uma antologia monumental de gols, dribles e passes brilhantes do rei do futebol. (...) num ritmo de dois gols por minuto. Sente-se falta na fita, porém, de informações básicas. São apresentadas sequências de jogos sem que se diga quais times estão no campo, não se explica em detalhes como Pelé aprendeu a jogar e nem se fala que seu nome verdadeiro é Édson Arantes do Nascimento e que ele nasceu em Minas Gerais (...). Com isso, "Isto é Pelé" parece uma avalanche de jogadas, inesquecíveis, mas desordenadas. O espectador deixa o vídeo com a confirmação de que Pelé era um gênio do futebol, mas sem saber quem é o homem Pelé. Em "Garrincha, Alegria do Povo", ao contrário, há muitos dados sobre o homem Manoel Francisco dos Santos e pouco do futebol de Mané
Garrincha.
De modo simplista (e não era mesmo o caso de rebuscamento, em um texto quase de divulgação comercial) é feita uma distinção entre as referidas obras, as quais, de fato, possuem linhagem, natureza e proposições cinematográficas bastante diversas. As observações para "Isto é Pelé", no entanto, resumem de forma minimamente adequada uma apresentação da película, e por isso foram citadas: exploração do espetáculo imagético proporcionado pela carreira do Rei-atleta; seu quase nenhum outro investimento, ou mesmo atenção, a registro de elementos biográficos básicos e, menos ainda, a qualquer viés de desenvolvimento sociológico. Uma observação mais acurada, é claro, pode permitir o
desdobramento de vínculos e diálogos mais ou menos explícitos com o meio político e cultural circundante, mas disso trataremos abaixo. Uma curiosidade em relação à reclamação exposta acima seria saber/entender, como se poderia “explicar em detalhes como Pelé aprendeu a jogar”... E isso lá é possível?
ao termo de uma empreitada comercial e de público bastante favorável.
Uma das apostas explicativas para essa resposta extremamente positiva, principalmente quando do lançamento da película, é arriscada por Marco Antônio Resende, quando afirma que o documentário foi disponibilizado “com raro senso de oportunidade, nas vésperas da décima copa Mundial de Futebol”. Para além disso, seus criadores teriam acertado ao proporcionar que, “durante 68 minutos, o espectador se banhe em mais de cem gols históricos feitos pelo Rei do futebol”. Na opinião do jornalista, trata-se “(...) de um documentário emocionante, repleto de nostálgicas situações”. O tom crítico fica pela ausência do Rei “em casa, com a família ou conversando com os amigos”. Ou seja, “(...) focalizando
apenas o artilheiro Pelé”, faltaria “a dimensão humana”, encontrada, por exemplo, no excelente "Garrincha, Alegria do Povo". Nesse aspecto, Marco Resende é acompanhado, doze anos mais tarde, pelo editor de uma matéria publicada na própria Veja, por ocasião da chegada ao mercado de novos vídeos cassetes de filmes nacionais. Mais uma vez, a fita de Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto é comparada a de Joaquim Pedro de Andrade, que acabava de ser lançada pela Globovídeo. Na reportagem se lê que os respectivos filmes somente têm em comum o “rótulo de documentário”. Vejamos: Pelé e Garrincha compartilham apenas o rótulo de documentário, pois são fitas bastante diferentes. (...) Isto é Pelé é uma antologia monumental de gols, dribles e passes brilhantes do rei do futebol. (...) num ritmo de dois gols por minuto. Sente-se falta na fita, porém, de informações básicas. São apresentadas sequências de jogos sem que se diga quais times estão no campo, não se explica em detalhes como Pelé aprendeu a jogar e nem se fala que seu nome verdadeiro é Édson Arantes do Nascimento e que ele nasceu em Minas Gerais (...). Com isso, "Isto é Pelé" parece uma avalanche de jogadas, inesquecíveis, mas desordenadas. O espectador deixa o vídeo com a confirmação de que Pelé era um gênio do futebol, mas sem saber quem é o homem Pelé. Em "Garrincha, Alegria do Povo", ao contrário, há muitos dados sobre o homem Manoel Francisco dos Santos e pouco do futebol de Mané
Garrincha.
De modo simplista (e não era mesmo o caso de rebuscamento, em um texto quase de divulgação comercial) é feita uma distinção entre as referidas obras, as quais, de fato, possuem linhagem, natureza e proposições cinematográficas bastante diversas. As observações para "Isto é Pelé", no entanto, resumem de forma minimamente adequada uma apresentação da película, e por isso foram citadas: exploração do espetáculo imagético proporcionado pela carreira do Rei-atleta; seu quase nenhum outro investimento, ou mesmo atenção, a registro de elementos biográficos básicos e, menos ainda, a qualquer viés de desenvolvimento sociológico. Uma observação mais acurada, é claro, pode permitir o
desdobramento de vínculos e diálogos mais ou menos explícitos com o meio político e cultural circundante, mas disso trataremos abaixo. Uma curiosidade em relação à reclamação exposta acima seria saber/entender, como se poderia “explicar em detalhes como Pelé aprendeu a jogar”... E isso lá é possível?
Vamos seguir.
Luiz Oricchio, nosso quase solitário interlocutor mais direto, por sua vez, arrisca mais
uma explicação para a boa aceitação da película:
"Isto é Pelé" conserva um esquema formal parecido ao de um programa para televisão, inclusive com a locução de Sérgio Chapelin, conhecido profissional da TV Globo, lendo texto de Paulo Mendes Campos.
"Isto é Pelé", o filme (a narrativa específica dessa obra singular):
A narrativa dessa película se inicia com a despedida de Pelé da Seleção, no Maracanã, em 18 de julho de 1971. Do "fim" parte para o "começo", na Suécia, em 1958, e explica-se: essa jornada “veria nascer o jogador mais completo que já se vira jogar”.
Luiz Oricchio, nosso quase solitário interlocutor mais direto, por sua vez, arrisca mais
uma explicação para a boa aceitação da película:
"Isto é Pelé" conserva um esquema formal parecido ao de um programa para televisão, inclusive com a locução de Sérgio Chapelin, conhecido profissional da TV Globo, lendo texto de Paulo Mendes Campos.
"Isto é Pelé", o filme (a narrativa específica dessa obra singular):
A narrativa dessa película se inicia com a despedida de Pelé da Seleção, no Maracanã, em 18 de julho de 1971. Do "fim" parte para o "começo", na Suécia, em 1958, e explica-se: essa jornada “veria nascer o jogador mais completo que já se vira jogar”.
Pois bem, sinteticamente a narrativa trata exatamente desse percurso, cujo fim, de antemão, sabemos
apoteótico. A partir da afirmação acima, dá-se um corte e podemos ver Pelé treinando (uma imagem constante dali em diante). O jogador aparece desempenhando performances em várias modalidades: vôlei, arremesso de dardo, basquete, arremesso de disco… Em off, ouvimos: capaz de se destacar em qualquer modalidade de esporte ou atletismo, foi no futebol que encontrou a possibilidade de se realizar plenamente como atleta. Dotado de coordenação muscular perfeita [aparece saltando numa corrida
de obstáculos] e de reflexos instantâneos, comprovou ao longo de sua carreira que o futebol não é apenas improvisação. Aprimorou seus recursos naturais com obstinação (grifo nosso).
Mais à frente, Pelé aparece como professor dos meninos da Vila Belmiro. Ensina a
bater com a esquerda, cabecear, matar no peito etc. Pelé também é colocado ao lado de
grandes personalidades da época. Em sequências “em meio ao assédio dos fãs”, afirma-se que “uma benção (...) foi especial”: tratar-se-ia de um encontro do Rei com o Papa, o qual é mostrado por intermédio de uma foto. Aqui nos reencontramos com as observações da imprensa que reproduzimos acima. Nesse caso, como em vários outros, não há nenhuma indicação do filme sobre lugares, personagens, situações. Tudo leva a crer, no entanto, que se trate de Paulo VI (pontífice de 1963 a 1978). Músicas também são utilizadas e não constam dos créditos.
apoteótico. A partir da afirmação acima, dá-se um corte e podemos ver Pelé treinando (uma imagem constante dali em diante). O jogador aparece desempenhando performances em várias modalidades: vôlei, arremesso de dardo, basquete, arremesso de disco… Em off, ouvimos: capaz de se destacar em qualquer modalidade de esporte ou atletismo, foi no futebol que encontrou a possibilidade de se realizar plenamente como atleta. Dotado de coordenação muscular perfeita [aparece saltando numa corrida
de obstáculos] e de reflexos instantâneos, comprovou ao longo de sua carreira que o futebol não é apenas improvisação. Aprimorou seus recursos naturais com obstinação (grifo nosso).
Mais à frente, Pelé aparece como professor dos meninos da Vila Belmiro. Ensina a
bater com a esquerda, cabecear, matar no peito etc. Pelé também é colocado ao lado de
grandes personalidades da época. Em sequências “em meio ao assédio dos fãs”, afirma-se que “uma benção (...) foi especial”: tratar-se-ia de um encontro do Rei com o Papa, o qual é mostrado por intermédio de uma foto. Aqui nos reencontramos com as observações da imprensa que reproduzimos acima. Nesse caso, como em vários outros, não há nenhuma indicação do filme sobre lugares, personagens, situações. Tudo leva a crer, no entanto, que se trate de Paulo VI (pontífice de 1963 a 1978). Músicas também são utilizadas e não constam dos créditos.
Continuando o rol de personalidades ilustres que se deleitam com a presença do jogador, temos, a partir de tomadas aéreas do Maracanã, que vão aos poucos precisando personagens presentes ao estádio, o esclarecimento de que “rainhas e estadistas sobem à tribuna para ver jogar o rei do futebol”. Aqui, mesmo sem legendas ou ajuda da narração, podemos distinguir claramente a monarca da Inglaterra, rainha Elizabeth, e o então senador republicano, Robert Kennedy. Este último, então, é enquadrado em plano médio, aplaudindo efusivamente um gol de Pelé (é o que se supõe) mostrado na cena imediatamente anterior.
Sergio Chapelin esclarece: “Todos rendem-se ao seu gênio”. Logo em seguida, noutra situação, com Pelé em roupas civis, o atleta aparece cercado de fãs (estrangeiros ao que se presume; balbuciam algo em italiano) e o narrador arremata: “Todas as línguas falam da glória de Pelé”.
O enredo, portanto, é simples. Em uma exposição não retilineamente cronológica, praticamente utilizando-se do recurso de um grande flashback, inicia-se com a despedida de Pelé da Seleção, consagrado. Desse resultado se retrocede à estreia do craque em uma Copa do Mundo (1958), defendendo o escrete brasileiro. O desfecho é uma volta à origem narrativa, ao ponto de partida fílmico, retomando as sequências de um Maracanã lotado e, em uníssono, clamando: “Fica, fica, fica...”. Temos, no entremeio, a exaltação imagética e textual de uma carreira vitoriosa, na qual o talento se une ao treino e aperfeiçoamento contínuos, resultando em um supercraque; sua superioridade o eleva à categoria de Rei, cuja corte extrapola as fronteiras nacionais, fazendo-se reconhecer por demais membros da nobreza (nada menos que a rainha da Inglaterra), personalidades internacionais (o lendário senador americano, o Papa) e por toda a gente comum. Isto é o documentário (uma síntese, espero, razoável).
O papel do futebol na tela de "Isto é Pelé":
Na película de Barreto e Escorel, o futebol em si (e o respectivo virtuose homenageado) é a atração central. Podemos notar uma preocupação estética na exibição do futebol filmado, marca e responsabilidade não exclusiva, mas relevante, da participação e colaboração do Canal 100 e de Carlos Niemeyer. A própria narração fílmica indica, logo no início, do que se trata o espetáculo que se descortina: Ao preparar-se para abandonar o futebol, Pelé deixa como legado as imagens de um
repertório de jogadas que só ele seria capaz de executar.
É parte desse legado que vai ser exposto ao longo dos 110 minutos da fita.
Diferentemente de outras obras, porém, não se pode constatar afirmação expressa sobre as
potencialidades sociais ou de qualquer outra natureza sobre o futebol. Não obstante, e isso é o
que tentaremos demonstrar na seção seguinte e final, esse desporto, no filme sobre o Rei,
assume um caráter/função muito mais amplo. O futebol, sob uma versão filmada do internacional reinado de Pelé, sugere muito mais do que possamos imaginar em uma visão mais rápida.
Quanto ao lugar de produção de "Isto é Pelé":
Engana-se o analista que queira fincar "Isto é Pelé", de 1974, no âmbito de uma possível
nova conjuntura, marcada pelos anúncios de abertura, a partir do governo Geisel e de suposta
desconfiança pelo pretenso desgaste do modelo econômico. Não devemos fazê-lo. Tanto por elementos externos à produção da película, quanto pelo teor interno à narrativa fílmica apresentada.
O lançamento do filme de Escorel e Barreto acontece em 13 de maio de 1974, visando, como apontamos acima, usufruir da expectativa e clima da Copa do Mundo da Alemanha, que
se avizinhava. Ora, não foi possível obter mais detalhes sobre o período e o tempo total
demandado para a produção, finalização e disponibilização da fita no mercado, mas somos
obrigados a colocá-la, pelo menos, em alguns meses antes de maio. Pelo menos. A posse de
Ernesto Geisel e a geração de expectativas (ou dissabores) decorrentes, se dá em 15 de março
de 1974, há praticamente dois meses exatos da primeira exibição do filme, muito
provavelmente depois, inclusive, da sua finalização. O único grande evento de real abalo e
preocupação prognóstica anterior se deveu ao choque do petróleo, que desde outubro de 1973
forçou sua entrada ruidosa na pauta político-econômica, do Brasil e do mundo. Tenhamos
em mente que nesse mesmo ano de 1973 o PIB brasileiro foi de 14% (o maior de toda a série
histórica registrada, até a atualidade) e o do ano corrente ao lançamento de "Isto é Pelé", um
resultado que somente seria do conhecimento dos contemporâneos em 1975, ainda seria
superior a 8% (muito próximo à incrível média obtida entre 1968 e 1973). Retomemos agora
a estrutura e discurso cinematográfico de "Isto é Pelé".
Conforme nossa própria exposição anterior, podemos sintetizar a proposta narrativa da
película como a apresentação de uma jornada, apoiada em dois vértices. De um lado, temos a
reconstituição de uma trajetória (magnífica, aliás) do jogador Pelé, ocupando, por intermédio
de seu “legado” de imagens fantásticas, o principal do conteúdo e tempo filmado. Por outro lado, temos uma explicação de como isso foi possível. São vértices convergentes, na verdade.
Correspondem a uma tese que parece conectar uma pré-disposição, uma potencialidade
atlética incrível de Pelé (“capaz de se destacar em qualquer modalidade de esporte”;
“dotado de coordenação muscular perfeita e reflexos instantâneos”) com uma obstinada e
recorrente preocupação com treinamento e aperfeiçoamento (“aprimorou seus recursos
naturais com obstinação”). A fórmula final fica mais ou menos assim: incomum capacidade
atlética + aperfeiçoamento e treinamento contínuo = um jogador como nenhum outro, merecedor de admiração internacional.
Se lembrarmos de alguns dos pontos trabalhados pelos pesquisadores Salvador e
Soares, teremos que os mesmos nos alertavam para o fato de que “estava explícito no
imaginário da época” (referem-se ao que obtiveram a partir da análise de jornais durante a
Copa de 1970) a “ideia de que o futebol no Brasil” lidava com a “combinação da criatividade,
da autenticidade com a disciplina e conhecimentos científicos”. Euclides Couto, outro estudioso do tema, compartilha essa convicção, indicando que a “tônica jornalística (...) exaltava princípios como racionalidade (...) método e disciplina”. E completa: isso tinha a ver com “valores disseminados pela caserna”. Nisso era acompanhado por Marcus Oliveira, o qual também identificava tais valores a um processo de “militarização” da Educação física, cuja característica era uma “maior entrada da ciência do treino físico no campo do treinamento esportivo”.
Oliveira ainda chamava a atenção para o fato de que, nesse contexto, o esporte, e o futebol, é claro, foi considerado pelo regime como fator de “possível reconhecimento do Brasil no cenário mundial”, valendo o investimento que nele fosse aplicado.
Relativamente a essa utilização ou vontade de utilização do futebol para a projeção de uma
imagem positiva do Brasil, vimos que Fátima Antunes afirmava a constatação, para o início
dos anos 70, de uma “associação entre a vitória futebolística e a elevação do homem
brasileiro e do Brasil” em “um país pujante e promissor”. Agostino, nesse mesmo sentido, defendia que o regime Médici (que se estende até março de 1974, período mais provável de feitura de "Isto é Pelé") articulou “êxitos futebolísticos à imagem do Brasil potência”. Corroborando essa posição, Euclides Couto citava o próprio ex-presidente Médici, em pronunciamento à nação, após a conquista de 1970. O mandatário máximo, à época, “identificava na vitória” a “prevalência de princípios” como o da
“unidade”, da “capacitação técnica, da preparação física e da consistência moral”, mas “sobretudo (...) [da] harmoniosa equipe, em que mais alto que a genialidade individual, afirmaram a solidariedade coletiva”. Nisso Garrastazu Médici disse enxergar “a própria afirmação do homem brasileiro”.
Esse conjunto de menções bibliográficas e históricas teve o sentido de por em evidência o quanto todo o arrazoado de "Isto é Pelé" está profundamente vinculado a um “imaginário de época”, visível na “tônica jornalística” e que valoriza princípios de inspiração ou alinhamento militar calcados no “método”, na “disciplina”, na ciência aplicada ao treino esportivo. Esse é o contexto e o entrosamento com o tempo (o seu tempo) que podemos verificar no filme. "Isto é Pelé" está em diálogo com os termos ainda vívidos do início da década de 1970, esquadrinhados pelos autores mencionados.
Epílogo:
O que podemos concluir destas notas? O filme parece nos dizer o seguinte: Vejam, mesmo Pelé, esse colosso de “reflexos instantâneos” e “coordenação muscular perfeita”, teve que superar a “improvisação” e potencializar “seus recursos naturais” com “obstinação”, técnica e disciplina. A narrativa fílmica, sem dúvida, nos remete ao orgulho nacional diante desse brasileiro a cujo gênio “todos se rendem” e diante do qual “todas as línguas” o glorificam. Pelé parece nos redimir. Temos aqui, a enfática superação de nossa vira-latice sob forma de enunciado fílmico. Aciona-se e reafirma-se, no filme, a construção social do “país do futebol”, mecanismo pelo qual nos sentimos “distintos, únicos, singulares” frente ao mundo.
Não deveríamos, então, nós, os brasileiros e o país, seguir o mesmo exemplo? "Isto é Pelé" também parece querer dizer: isso pode ser o Brasil, com sucesso e reconhecimento internacional. A afirmação do homem brasileiro, identificada por Garrastazu Médici na vitória obtida nos campos do México, parece ser encontrada também aqui, nas telas nas quais se projetou "Isto é Pelé". O que não deixa de ser curioso, uma vez que esse é um dos filmes que mais apresentou o futebol como jogo e ocupou-se exclusivamente de cenas e sequências diretamente relacionadas às partidas, aos lances, aos gols, às entrevistas de e sobre o futebol e sobre os jogadores (principalmente sobre Pelé, é claro), às concentrações etc. Ou seja, o filme que mais tratou de futebol foi aquele que mais claramente se articulou e se construiu conectado a toda uma linha de imaginação vinculada à vontade de uso do futebol para além dele mesmo.
Sergio Chapelin esclarece: “Todos rendem-se ao seu gênio”. Logo em seguida, noutra situação, com Pelé em roupas civis, o atleta aparece cercado de fãs (estrangeiros ao que se presume; balbuciam algo em italiano) e o narrador arremata: “Todas as línguas falam da glória de Pelé”.
O enredo, portanto, é simples. Em uma exposição não retilineamente cronológica, praticamente utilizando-se do recurso de um grande flashback, inicia-se com a despedida de Pelé da Seleção, consagrado. Desse resultado se retrocede à estreia do craque em uma Copa do Mundo (1958), defendendo o escrete brasileiro. O desfecho é uma volta à origem narrativa, ao ponto de partida fílmico, retomando as sequências de um Maracanã lotado e, em uníssono, clamando: “Fica, fica, fica...”. Temos, no entremeio, a exaltação imagética e textual de uma carreira vitoriosa, na qual o talento se une ao treino e aperfeiçoamento contínuos, resultando em um supercraque; sua superioridade o eleva à categoria de Rei, cuja corte extrapola as fronteiras nacionais, fazendo-se reconhecer por demais membros da nobreza (nada menos que a rainha da Inglaterra), personalidades internacionais (o lendário senador americano, o Papa) e por toda a gente comum. Isto é o documentário (uma síntese, espero, razoável).
O papel do futebol na tela de "Isto é Pelé":
Na película de Barreto e Escorel, o futebol em si (e o respectivo virtuose homenageado) é a atração central. Podemos notar uma preocupação estética na exibição do futebol filmado, marca e responsabilidade não exclusiva, mas relevante, da participação e colaboração do Canal 100 e de Carlos Niemeyer. A própria narração fílmica indica, logo no início, do que se trata o espetáculo que se descortina: Ao preparar-se para abandonar o futebol, Pelé deixa como legado as imagens de um
repertório de jogadas que só ele seria capaz de executar.
É parte desse legado que vai ser exposto ao longo dos 110 minutos da fita.
Diferentemente de outras obras, porém, não se pode constatar afirmação expressa sobre as
potencialidades sociais ou de qualquer outra natureza sobre o futebol. Não obstante, e isso é o
que tentaremos demonstrar na seção seguinte e final, esse desporto, no filme sobre o Rei,
assume um caráter/função muito mais amplo. O futebol, sob uma versão filmada do internacional reinado de Pelé, sugere muito mais do que possamos imaginar em uma visão mais rápida.
Quanto ao lugar de produção de "Isto é Pelé":
Engana-se o analista que queira fincar "Isto é Pelé", de 1974, no âmbito de uma possível
nova conjuntura, marcada pelos anúncios de abertura, a partir do governo Geisel e de suposta
desconfiança pelo pretenso desgaste do modelo econômico. Não devemos fazê-lo. Tanto por elementos externos à produção da película, quanto pelo teor interno à narrativa fílmica apresentada.
O lançamento do filme de Escorel e Barreto acontece em 13 de maio de 1974, visando, como apontamos acima, usufruir da expectativa e clima da Copa do Mundo da Alemanha, que
se avizinhava. Ora, não foi possível obter mais detalhes sobre o período e o tempo total
demandado para a produção, finalização e disponibilização da fita no mercado, mas somos
obrigados a colocá-la, pelo menos, em alguns meses antes de maio. Pelo menos. A posse de
Ernesto Geisel e a geração de expectativas (ou dissabores) decorrentes, se dá em 15 de março
de 1974, há praticamente dois meses exatos da primeira exibição do filme, muito
provavelmente depois, inclusive, da sua finalização. O único grande evento de real abalo e
preocupação prognóstica anterior se deveu ao choque do petróleo, que desde outubro de 1973
forçou sua entrada ruidosa na pauta político-econômica, do Brasil e do mundo. Tenhamos
em mente que nesse mesmo ano de 1973 o PIB brasileiro foi de 14% (o maior de toda a série
histórica registrada, até a atualidade) e o do ano corrente ao lançamento de "Isto é Pelé", um
resultado que somente seria do conhecimento dos contemporâneos em 1975, ainda seria
superior a 8% (muito próximo à incrível média obtida entre 1968 e 1973). Retomemos agora
a estrutura e discurso cinematográfico de "Isto é Pelé".
Conforme nossa própria exposição anterior, podemos sintetizar a proposta narrativa da
película como a apresentação de uma jornada, apoiada em dois vértices. De um lado, temos a
reconstituição de uma trajetória (magnífica, aliás) do jogador Pelé, ocupando, por intermédio
de seu “legado” de imagens fantásticas, o principal do conteúdo e tempo filmado. Por outro lado, temos uma explicação de como isso foi possível. São vértices convergentes, na verdade.
Correspondem a uma tese que parece conectar uma pré-disposição, uma potencialidade
atlética incrível de Pelé (“capaz de se destacar em qualquer modalidade de esporte”;
“dotado de coordenação muscular perfeita e reflexos instantâneos”) com uma obstinada e
recorrente preocupação com treinamento e aperfeiçoamento (“aprimorou seus recursos
naturais com obstinação”). A fórmula final fica mais ou menos assim: incomum capacidade
atlética + aperfeiçoamento e treinamento contínuo = um jogador como nenhum outro, merecedor de admiração internacional.
Se lembrarmos de alguns dos pontos trabalhados pelos pesquisadores Salvador e
Soares, teremos que os mesmos nos alertavam para o fato de que “estava explícito no
imaginário da época” (referem-se ao que obtiveram a partir da análise de jornais durante a
Copa de 1970) a “ideia de que o futebol no Brasil” lidava com a “combinação da criatividade,
da autenticidade com a disciplina e conhecimentos científicos”. Euclides Couto, outro estudioso do tema, compartilha essa convicção, indicando que a “tônica jornalística (...) exaltava princípios como racionalidade (...) método e disciplina”. E completa: isso tinha a ver com “valores disseminados pela caserna”. Nisso era acompanhado por Marcus Oliveira, o qual também identificava tais valores a um processo de “militarização” da Educação física, cuja característica era uma “maior entrada da ciência do treino físico no campo do treinamento esportivo”.
Oliveira ainda chamava a atenção para o fato de que, nesse contexto, o esporte, e o futebol, é claro, foi considerado pelo regime como fator de “possível reconhecimento do Brasil no cenário mundial”, valendo o investimento que nele fosse aplicado.
Relativamente a essa utilização ou vontade de utilização do futebol para a projeção de uma
imagem positiva do Brasil, vimos que Fátima Antunes afirmava a constatação, para o início
dos anos 70, de uma “associação entre a vitória futebolística e a elevação do homem
brasileiro e do Brasil” em “um país pujante e promissor”. Agostino, nesse mesmo sentido, defendia que o regime Médici (que se estende até março de 1974, período mais provável de feitura de "Isto é Pelé") articulou “êxitos futebolísticos à imagem do Brasil potência”. Corroborando essa posição, Euclides Couto citava o próprio ex-presidente Médici, em pronunciamento à nação, após a conquista de 1970. O mandatário máximo, à época, “identificava na vitória” a “prevalência de princípios” como o da
“unidade”, da “capacitação técnica, da preparação física e da consistência moral”, mas “sobretudo (...) [da] harmoniosa equipe, em que mais alto que a genialidade individual, afirmaram a solidariedade coletiva”. Nisso Garrastazu Médici disse enxergar “a própria afirmação do homem brasileiro”.
Esse conjunto de menções bibliográficas e históricas teve o sentido de por em evidência o quanto todo o arrazoado de "Isto é Pelé" está profundamente vinculado a um “imaginário de época”, visível na “tônica jornalística” e que valoriza princípios de inspiração ou alinhamento militar calcados no “método”, na “disciplina”, na ciência aplicada ao treino esportivo. Esse é o contexto e o entrosamento com o tempo (o seu tempo) que podemos verificar no filme. "Isto é Pelé" está em diálogo com os termos ainda vívidos do início da década de 1970, esquadrinhados pelos autores mencionados.
Epílogo:
O que podemos concluir destas notas? O filme parece nos dizer o seguinte: Vejam, mesmo Pelé, esse colosso de “reflexos instantâneos” e “coordenação muscular perfeita”, teve que superar a “improvisação” e potencializar “seus recursos naturais” com “obstinação”, técnica e disciplina. A narrativa fílmica, sem dúvida, nos remete ao orgulho nacional diante desse brasileiro a cujo gênio “todos se rendem” e diante do qual “todas as línguas” o glorificam. Pelé parece nos redimir. Temos aqui, a enfática superação de nossa vira-latice sob forma de enunciado fílmico. Aciona-se e reafirma-se, no filme, a construção social do “país do futebol”, mecanismo pelo qual nos sentimos “distintos, únicos, singulares” frente ao mundo.
Não deveríamos, então, nós, os brasileiros e o país, seguir o mesmo exemplo? "Isto é Pelé" também parece querer dizer: isso pode ser o Brasil, com sucesso e reconhecimento internacional. A afirmação do homem brasileiro, identificada por Garrastazu Médici na vitória obtida nos campos do México, parece ser encontrada também aqui, nas telas nas quais se projetou "Isto é Pelé". O que não deixa de ser curioso, uma vez que esse é um dos filmes que mais apresentou o futebol como jogo e ocupou-se exclusivamente de cenas e sequências diretamente relacionadas às partidas, aos lances, aos gols, às entrevistas de e sobre o futebol e sobre os jogadores (principalmente sobre Pelé, é claro), às concentrações etc. Ou seja, o filme que mais tratou de futebol foi aquele que mais claramente se articulou e se construiu conectado a toda uma linha de imaginação vinculada à vontade de uso do futebol para além dele mesmo.
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