Mostrando postagens com marcador Nelson Rodrigues. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Nelson Rodrigues. Mostrar todas as postagens

sábado, 4 de janeiro de 2025

domingo, 20 de março de 2022

Crônica do Jogo Comercial 4 x 2 São Bernardo, Campeonato Paulista de Futebol da Série A3, 19/03/2022, Estádio Francisco de Palma Travassos, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil






Crônica do Jogo Comercial 4 x 2 São Bernardo, Campeonato Paulista de Futebol da Série A3, 19/03/2022, Estádio Francisco de Palma Travassos, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil
Ribeirão Preto - SP
Fotografia


E lá vamos nós com outro post sentimental...rs.
Um dos meus escritores prediletos é Nelson Rodrigues. Suas crônicas, textos e peças me encantavam, porque, entre outras coisas, a objetividade do fato, a realidade da situação, não eram o mais importante. Ao contrário, seus textos exaltavam o inusitado, o fora de controle, a obra do acaso, o imponderável, o sobrenatural, o que não tinha explicação científica ou era improvável de acontecer. Ele abominava os chamados (por ele) "idiotas da objetividade".
E eis que um jogo da terceira divisão do Campeonato Paulista me dá a oportunidade de (perdoem a heresia) "sentir-me um pouco Nelson".
Vamos aos fatos:
Eu gosto muito de assistir jogos de futebol, mas confesso que detesto assistir na TV. Desde pequeno sempre preferi assistir a jogos de futebol pelo rádio, acho um meio de comunicação muito mais democrático (especialmente por dar espaço aos times médios e pequenos que não encontram abrigo na TV, onde vigora o monopólio dos grandes) e divertido (os narradores e comentaristas não ficam presos a fórmula narrativa "engessada" e politicamente correta da TV, além de, na minha opinião, serem infinitamente melhores na narração e comentários). Além disso, no rádio não existem os chamados "comentaristas de arbitragem", uma das invenções mais horrendas da TV (não passam de ex-juízes que cansaram de cometer erros clamorosos nos jogos que apitaram antes da chegada do VAR, sempre prejudicando times menores e beneficiando times grandes).
Dito isso, tenho que dizer que além do rádio, também tenho preferência em assistir futebol no estádio, local que considero que se tem a melhor experiência com o esporte. Só no estádio você sente o jogo, experimenta nos noventa minutos de partida sensações de alegria, tristeza, medo, raiva, alívio, ansiedade, agonia, companherismo, ódio, pertencimento, diversão, ânimo, desânimo, etc (sempre sem violência física, sou totalmente contra brigas entre torcedores e torcidas organizadas violentas, acho um completo absurdo e prova de nossa falência como ser humano, que torcedores adversários não possam sentar-se lado a lado para assistir a uma partida sem agressão mútua, inclusive penso que se isso não é possível, nem deveria ser permitido a realização de jogos). Resumindo, ninguém consegue ficar ou manter-se indiferente em um estádio de futebol! (com exceção óbvia da "grã-fina de narinas de cadáver", apontada por quem? Nelson Rodrigues, mas isso é assunto para outro post)
Seguindo, outro fato a ser citado é que no estádio de futebol você consome alguns tipos de alimentos que remetem a sua infância ou passado, como pipoca, amendoim, espetinho de carne, cachorro-quente, pipoca doce de saquinho rosa, coquinho queimado, refrigerante e cerveja de marca barata, entre outros. É uma verdadeira festa!
Continuando a história, outro ponto que gostaria de citar, é que prefiro sempre ver jogos de times médios e pequenos, com jogadores que tem que suar a camisa, que jogam pelo salário, pelo "bicho" ou prato de comida (em sentido figurado, é claro que não quero que ninguém passe fome), a ver jogos de times grandes com jogadores milionários, que parecem executivos engravatados ao invés de futebolistas. Eu gosto do estilo de futebol do passado, com estádios acanhados, tipo "caldeirões", com alambrado, banheiros simples, arquibancada de concreto, com as crianças jogando sua bolinha durante a partida, com ingresso acessível que permita torcedores pobres, classe média e ricos (não o que acontece atualmente, onde só torcidas organizadas subsidiadas por clubes e ricos tem acesso aos jogos dos times em razão do preço) e bares que sirvam os alimentos que citei acima (diferente dos existentes nessas arenas milionárias, onde servem pizza ou hamburger de microondas a preços estratosféricos). Meu estilo de estádio é muito mais arquibancada de concreto do que cadeira acolchoada. 
Gosto de estádios com história, que foram construídos com rifas e doações de apaixonados pelo time, algo bem diferente das atuais arenas esportivas, construídas, na maioria das vezes, com dinheiro público (que jamais deveria ser colocado no futebol) e objetos de interesses escusos e corrupção. E, cumpre dizer, mesmo as privadas também se aproveitam de benesses públicas para abater os custos.
Antes de encerrar essa introdução, gostaria de citar uma inscrição de uma camiseta de um torcedor que vi no estádio do Juventus da Mooca (outro "templo" do futebol), na rua Javari, que dizia que eles são "contra o futebol moderno", esse que está destruindo os times pequenos e médios. Acho que sou, mais ou menos, como eles. E se você não acredita nisso, basta notar o que vem acontecendo com os times médios e pequenos do Brasil: a imensa maioria está em situação pré-falimentar, sofrendo com péssimas administrações, queda de receita, enorme dependência do dinheiro das federações estaduais, uma lesiva "Lei Pelé" que acabou com a principal fonte de recursos (que era o passe do jogador), penhora de rendas por dívidas, além de inúmeras ações trabalhistas e de cobrança em geral. A conjunção de todos esses fatores faz com que ainda estejam abertos por obra de verdadeiro milagre. Até quando irão resistir, não sabemos, mas ninguém consegue continuar fazendo milagre para sempre. O futuro é virarem SAFs ou clubes de empresários, tornando-se algo completamente diferente do que eram originalmente, acabando por afastar seus torcedores, que passam a enxergar aquilo não com o amor que viam, e sim como uma empresa, um negócio como outro qualquer.
Bom, mas e o jogo Comercial 4 x 2 São Bernardo? Você não vai falar?
Calma, pessoal. Prometo que agora vou começar a tratar do jogo. Lembrem-se que este é mais um post "sentimental", tem que ter lembranças e impressões. Senão não tem graça...rs.
Introdução feita, gostaria de dizer que desde 2019 (início da pandemia da COVID-19), eu não ia ao estádio do Comercial (estádio Dr. Francisco de Palma Travassos). Como parecia à época que estávamos chegando nos "finalmentes" dessa tragédia, criei coragem e resolvi ir ao estádio com minha esposa, assistir ao jogo Comercial x São Bernardo, válido pelo Campeonato Paulista da série A3 de futebol (a terceira divisão do futebol paulista). Para quem gosta de saber os apelidos dos times de futebol, era o jogo do "Leão" (Comercial) contra o "Cachorrão" (São Bernardo).
O Comercial, para minha surpresa (e provavelmente de todos), vinha liderando a competição, jogando bem, pondo o coração na ponta da chuteira, dando alegrias a sua sofrida e fanática torcida.
Uma vez decidido a ir ao estádio, como de costume, gosto de chegar cedo, para escolher um bom lugar, comer e beber as porcarias que vendem no entorno e dentro do estádio, acompanhar o aquecimento dos jogadores, ver a torcida enchendo o saco dos adversários, enfim, todo o teatro que acontece nessas ocasiões. Não sei porque, desta vez, um fato me chamou a atenção durante o aquecimento do Comercial: a enorme quantidade de chutes para fora do gol. Parecia que a cada cinco chutes, apenas um acertava o gol. Achei meio estranho, mas reputei o fato aos jogadores estarem frios, no jogo, uma vez aquecidos, provavelmente seria diferente.
Passada essa fase, começa o jogo, e o Comercial vai para cima do adversário. Ataca mas sofre com o problema que notei no aquecimento: péssima pontaria, a maioria das finalizações vai para fora.
Por outro lado, o São Bernardo tinha um atacante chamado "Chuck", um baixinho liso e invocado, que estava aterrorizando os enormes zagueiros do Comercial, inclusive já tinhámos escapado de levar um ou dois gols dele. Acho que só o técnico do Comercial não via o estrago que ele estava fazendo e não melhorava a marcação naquele setor. E como essa falha defensiva continuou, o Comercial em uma bola mal dividida, tomou o primeiro gol do jogo, marcado justamente pelo "Chuck". 
Foi um balde de água fria na torcida!
O Comercial não se abalou muito e partiu em busca do empate, ainda que esbarrasse nas próprias limitações e pontaria ruim, deixando espaços para os sempre perigosos contra-ataques do São Bernardo, a maioria protagonizados pelo "Chuck", que a essa hora já tinha sido "eleito" como o vilão do dia da torcida comercialina, sendo xingado de inúmeros nomes (confesso que ri muito de um aposentado que não parava de chamá-lo de "Playmobil dos infernos").
E num desses contra-ataques, no último minuto do primeiro tempo, foi marcada uma falta para o São Bernardo, que numa bobeira incrível da defesa do Comercial, fez 2x0. 
Dessa vez não foi um balde água fria, foi uma piscina inteira! A torcida deu uma desanimada monstro, o que acredito que aconteceu com o time também. Sorte que o primeiro tempo acabou ali, senão teria ficado pior.
Quem acompanha futebol sabe que quando o time da casa termina o primeiro tempo perdendo de 0x2, a coisa fica feia. Não tem torcedor que entenda, que não fique bravo e revoltado, diante da pequena possibilidade de virar o jogo. É muito difícil fazer três gols em um só tempo, partindo de 0x2. O adversário vai amarrar o jogo, fazer cera, discutir, irritar, entre outras artimanhas para tentar impedir a reação. Na maioria das vezes não ocorre a reação e o time da casa acaba amargando a derrota.
No momento do fim do primeiro tempo, eu estava sentado na arquibancada, bem lá em cima (gosto de ter uma visão ampla do campo). Resolvi descer e comprar refrigerantes para mim e esposa. E no caminho falei para ela: "Venho aqui desde 1987, são 35 anos, nunca vi o Comercial virar um jogo que perdia por 0x2 no intervalo. Já vi empatar, ganhar nunca. Pode até ter acontecido mas nunca vi. Se conseguirmos empatar, é como uma vitória".
Mas falei sem entusiasmo algum, eu não acreditava nem no empate. Estava meio revoltado com essa quase certa derrota em minha volta ao estádio depois de tanto tempo. Achei até que era "pé-frio"...rs.
De qualquer forma, comprei os refrigerantes e, não sei porque, lembrei de uma frase que gosto de repetir sempre: "Se você faz sempre a mesma coisa, o resultado será sempre igual".
Pensando nisso, resolvi não voltar para a arquibancada e assistir o jogo no alambrado, bem em frente a dois policiais que estavam de serviço com um cachorro (que não parou de latir um só minuto...rs).
Os times voltaram do intervalo e o jogo recomeça. O Comercial, não sei o que aconteceu durante o intervalo, vem com uma vontade fora do normal, passam a correr e disputar a bola como se fosse um prato de comida, o time demostra uma vontade fora do normal, parecia que jogaram os caras em uma piscina de energético...rs.
E assim, com dois minutos do segundo tempo, o Comercial fazia seu primeiro gol, com o zagueiro Thiago, em uma cabeçada improvável no meio de dois zagueiros e o goleiro do São Bernardo.
A torcida enlonqueceu, o alambrado quase caiu na comemoração...rs.
Nova saída de bola, o Comercial continuava amassando o adversário, e aos cinco minutos, de novo o zagueiro Thiago, novamente de cabeça, em um frangaço do goleiro do São Bernardo, empatava o jogo! A torcida enlouqueceu de vez, o alambrando balançava sem parar...rs.
O clima do estádio tinha mudado completamente, a coisa virou um "caldeirão", todo mundo gritando e apoiando o Comercial, pedindo a virada, uma coisa linda!
E ela veio, aos 21 minutos, com o atacante Adriano, que mesmo errando o chute, a bola acabou batendo na sua outra perna e entrando! Era a virada! E ainda com um gol de sorte!
Foi um momento sublime, a torcida cantava, vibrava, comemorava, gritava, ria, chorava, uma coisa louca! O time tinha virado um 0x2 para 3x2 em apenas 21 minutos de jogo, algo inacreditável!
Após conseguir a virada, o Comercial deu uma arrefecida no ritmo, ninguém consegue manter aquela intensidade o tempo todo, e o São Bernardo deu uma equilibrada no jogo, e por pouco, não empatou em duas ocasiões. O jogo continuava com o Comercial tentando controlar a partida e esbarrando em finalizações ruins, e o São Bernardo, por outro lado, buscando empatar, mas sem a inspiração necessária (um time que vira o primeiro tempo ganhando de 2x0 na casa do adversário e leva a virada em pouco mais de 20 minutos, não consegue evitar o desânimo, a coisa sai dos trilhos, o jogo para de fluir, a perna pesa).
E assim foi até os 43 minutos, quando o atacante Túlio, também de cabeça, marcou o quarto gol do Comercial (sim, o quarto!) decretando os números finais da partida, com o Comercial vencendo por 4x2 e se consolidando na liderança do campeonato, deixando sua torcida em êxtase, vibrando de felicidade!
Após o encerramento da partida, os jogadores do Comercial foram até o alambrado (que mais uma vez resistiu bravamente) comemorar o resultado com a torcida e tudo terminou em uma linda festa!
Concluindo, agradeço a paciência de quem chegou até aqui, abraços comercialinos a todos!
Nota do blog 1: Em 33 anos nunca tinha visto o Comercial reverter um resultado após terminar o primeiro tempo perdendo de 0x2. Agora eu vi!
Nota do blog 2: Vou morrer acreditando que o fato de não ter voltado com minha esposa para a arquibancada e assistido o segundo tempo do jogo em pé no alambrado, com o cachorro da Polícia latindo sem parar, foi "determinante" para a reversão do resultado do jogo. Sem isso o Comercial jamais teria virado. De alguma forma, na minha cabeça, meu humilde ato mudou a realidade, quebrou uma sequência, alterou o que estava previsto para aquele momento. Tenho absoluta certeza que Nelson Rodrigues concordaria comigo...rs.
Nota do blog 3: Quem resiste ao charme de um estádio onde os adversários ainda são tratados como "visitantes" no placar? Vida eterna ao futebol do interior e de antigamente!

sábado, 22 de janeiro de 2022

“Ao Cretino Fundamental, Nem Água” - Artigo


 

“Ao Cretino Fundamental, Nem Água” - Artigo
Artigo


Meu primeiro, único e último encontro com o gênio Nélson Rodrigues (1912-1980) começou com uma dúvida devastadora: por que diabos ele teria marcado nossa entrevista justamente para a hora de um jogo da seleção brasileira? Não é possível, deve ter havido algum engano – eu pensava com meus botões, enquanto caminhava pelas calçadas do Leme, na beira-mar, no Rio de Janeiro, em direção ao apartamento do homem.
Se Nélson Rodrigues escrevia aquelas crônicas geniais sobre futebol no jornal O Globo, é óbvio que ele não iria dar uma entrevista a um forasteiro pernambucano no exato momento em que a seleção brasileira entrava em campo, no Maracanã, com transmissão ao vivo pela TV. Se desse, como é que ele iria escrever sobre o jogo no jornal do dia seguinte? Não, deve ter havido um grande equívoco. É melhor que eu desista. Nélson não iria dar entrevista alguma num momento tão inoportuno. Ou iria?
Mergulhado num poço de constrangimento, aperto a campainha. A entrevista tinha sido marcada por telefone. Uma mulher abre a porta. Ao fundo, vejo a imagem de Nélson Rodrigues esparramado numa poltrona. Os pés estão fora dos sapatos. Não faz frio, mas ele veste um suéter sobre a camisa de mangas curtas. Pende na parede da sala uma foto emoldurada de Nélson Rodrigues em companhia de Sônia Braga e de Neville de Almeida – atriz e diretor da versão cinematográfica de A Dama do Lotação.
Quando a mulher avisa em voz alta que’o repórter de Pernambuco’ estava na porta da sala, Nélson ergue os braços, agita as mãos, saúda o ilustre desconhecido com uma exclamação calorosa, como se reencontrasse um amigo de infância:’Conterrâneo! Conterrâneo!’.
O cumprimento efusivo não afasta o temor de que Nélson tenha cometido um pequeno equívoco: ao marcar a entrevista para aquele horário, ele bem que pode ter se esquecido de que a seleção brasileira iria entrar em campo dentro de instantes. A hipótese pode parecer absurda, mas quem sou eu para menosprezar as possíveis excentricidades de nosso herói?
Tento uma solução alternativa para escapar de um vexame: digo que posso voltar depois para gravar a entrevista; não quero importuná-lo na hora do jogo. Teatral, Nélson Rodrigues repousa a mão direita sobre o peito, como se sugerisse uma pontada no coração. Olha para a televisão, pede à mulher: ‘Tirem o som desse aparelho! Tirem o som desse aparelho! O Brasil me faz mal! O Fluminense me faz mal!’. A mulher e a irmã de Nélson riem da cena teatral. Hiperbólico, épico, exagerado, o homem é uma fábrica de tiradas dramáticas. Desconfio de que acabo de me transformar em solitário e privilegiadíssimo espectador de um espetáculo teatral chamado Nélson Falcão Rodrigues, encenado pelo próprio autor.
A ordem de Nélson – ‘tirem o som desse aparelho!’ – é imediatamente atendida. O aparelho de TV fica mudo. A seleção entra em campo: Leão; Toninho, Oscar, Amaral e Edinho; Batista, Toninho Cerezo e Rivelino; Zé Sérgio, Nunes e Zico. Assim, este forasteiro se vê de repente na condição de coadjuvante de uma cena surrealista: diante de uma TV sem som que transmitia o jogo da seleção brasileira contra o Peru, o autor das mais brilhantes crônicas já escritas sobre o futebol brasileiro simplesmente tira os olhos do vídeo para responder ao interrogatório de um visitante que chegou em hora inconveniente, munido de um gravador e um bloco de anotações. Improvisado como fotógrafo, o também pernambucano Wilson Urquisa vai flagrando, com uma velha Olympus, as poses teatrais de Nélson Rodrigues.
Se houvesse justiça nesta República, uma lei deveria determinar que, depois de Nélson Rodrigues, ninguém deveria escrever sobre futebol no Brasil. Porque é extremamente improvável que um candidato a sucessor consiga igualar o brilho do texto deste pernambucano que passou quase toda a vida exilado no Rio de Janeiro.
A coleção de pérolas rodrigueanas daria para encher uma enciclopédia. Ruy Castro organizou, para a Editora Companhia das Letras, um volume que reúne, sob o título de Flor de Obsessão, as ‘mil melhores frases’ do homem. Se quisesse, reuniria três mil, como estas vinte:
** ‘O brasileiro é um feriado’.
** ‘O Brasil é um elefante geográfico. Falta-lhe, porém, um rajá, isto é, um líder que o monte’.
** ‘Sou a maior velhice da América Latina. Já me confessei uma múmia, com todos os achaques das múmias’.
** ‘Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes, ainda que rezem pelo vampiro de Dusseldorf’.
** ‘O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota’
** ‘Na vida, o importante é fracassar’
** ‘A Europa é uma burrice aparelhada de museus’.
** ‘Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. O repórter mente pouco, mente cada vez menos’.
** ‘Daqui a duzentos anos, os historiadores vão chamar este final de século de’a mais cínica das épocas’. O cinismo escorre por toda parte, como a água das paredes infiltradas’.
** ‘Sexo é para operário’.
** ‘O socialismo ficará como um pesadelo humorístico da História’.
** ‘Subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos’.
** ‘As grandes convivências estão a um milímetro do tédio’.
** ‘Todo tímido é candidato a um crime sexual’.
** ‘Todas as vaias são boas, inclusive as más’.
** ‘O presidente que deixa o poder passa a ser, automaticamente, um chato’
** ‘Não gosto de minha voz. Eu a tenho sob protesto. Há, entre mim e minha voz, uma incompatibilidade irreversível’.
** ‘Sou um suburbano. Acho que a vida é mais profunda depois da praça Saenz Peña. O único lugar onde ainda há o suicídio por amor, onde ainda se morre e se mata por amor, é na Zona Norte’.
** ‘O adulto não existe. O homem é um menino perene’.
Fui testemunha ocular de uma verdade inapelável: Nélson Rodrigues era um cronista tão perfeito que nem precisava ver o jogo. O resultado da partida, as escaramuças dos jogadores, os esquemas táticos, todas essas bobagens não passavam de detalhes secundários aos olhos do gênio. A Nélson Rodrigues, importava a escalação do adjetivo certo na frase certa. Pouco interessava a distribuição de beques ou atacantes no retângulo verde. O relato dessas banalidades é tarefa que cabe aos ‘idiotas da objetividade’ – estes pobres seres que só são capazes de enxergar a rala superfície dos fatos.
A missão que Nélson Rodrigues outorgou a si mesmo era outra: traduzir em palavras a dimensão épica da maior paixão brasileira – o futebol. Para que, então, perder tempo com miudezas? Para que ouvir o narrador descrever o jogo na TV? Para que saber os nomes dos jogadores do Peru? Para que saber se o meio-de-campo do Brasil estava ou não estava inspirado?
– Em futebol , o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner bem ou mal batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural’, ele escreveu uma vez.
Nélson Rodrigues preferia se ocupar de questões metafísicas – como, por exemplo, a inapetência de nossos escritores brasileiros em tratar do futebol. Numa de suas tiradas clássicas, reclamou:
– Nossa literatura ignora o futebol – e repito: nossos escritores não sabem cobrar um reles lateral.
A frase é erradamente citada nove a cada dez vezes em que aparece em textos publicados em nossos jornais. Virou lugar comum dizer que Nélson Rodrigues reclamava de que nossos escritores não sabem nem bater um escanteio. É uma inexatidão. A implicância de Nélson era com literatos incapazes de cobrar um lateral. Mas, a bem da verdade, os que deturpam a queixa de Nélson não estão inteiramente errados: não apareceu ainda um escritor brasileiro capaz de bater um escanteio ou um lateral…
Alheio a esta fraqueza nacional, Nélson parece distante da disputa que se desenrola, ali, diante de nós, no vídeo da TV, entre a seleção brasileira e o escrete peruano. Faz ao repórter uma pergunta incrível:’Quem é o nosso adversário hoje?’ Informo que é o Peru.
Fique registrado para a posteridade que o maior cronista do futebol brasileiro não precisava necessariamente saber quem era nosso adversário.
Quando Zico faz um a zero, aos trinta e quatro minutos do primeiro tempo, Nélson interrompe a entrevista para inaugurar, aos brados, uma nova expressão exclamativa:
– Que coisa beleza! Que coisa beleza!
Depois, pede à família: ‘Pessoal, com licença dos nossos visitantes, vamos fechar essa máquina porque já estou começando a ficar nervoso’. Aos não iniciados nas sutilezas do dialeto rodrigueano, esclareça-se que ‘fechar a máquina’ significa desligar a televisão – o que, aliás, não foi feito. Nélson dispara, então, um julgamento entusiasmado sobre o escrete dirigido por Cláudio Coutinho:
– Mas esses rapazes são uns gênios! Uns gênios!
O repórter seria novamente surpreendido. Nélson já perguntara quem era ‘nosso adversário’. Agora, ao ver o replay do gol recém-marcado, toma um susto: ‘Mas já houve dois gols?’. Digo a ele que não: é apenas a repetição do primeiro gol. O placar é um a zero. O gênio da raça concorda com um ‘ah, sim!’. Teria dois outros motivos para vibrar: o mineiro Reinaldo – que entraria no lugar de Nunes – faria dois gols, aos 20 e aos 40 minutos do segundo tempo, para fechar o placar: Brasil 3 x O Peru.
Corro à banca no dia seguinte para comprar o jornal. O que diabos Nélson Rodrigues teria escrito sobre o jogo que eu não o deixara ver? Eis: – Vejam vocês como o futebol é estranho – às vezes maligno e feroz. Mas não quero ter fantasias esplêndidas. O jogo Brasil x Peru, ontem, no Mário Filho, não assustou a gente. Diz o nosso João Saldanha:’O Brasil fez seu jogo, jogo brasileiro’. Vocês entendem? Não há mistério. O brasileiro é assim. Quando um de nós se esquece da própria identidade, ganha de qualquer um. Outra coisa formidável: na semana passada, um craque nosso veio me dizer:’Nélson, é preciso que você não se esqueça: ao cretino fundamental, nem água’. O jogo foi lindo’.
Penso com meus botões que Nélson não precisou esperar pelo início do jogo para escrever a crônica. Com certeza, despachou o texto para o jornal antes da chegada do repórter intruso. Os ‘idiotas da objetividade’ se encarregariam de registrar, nas páginas esportivas, o jogo real. Porque o jogo de Nélson seria lindo de qualquer maneira. E aos cretinos fundamentais? Aos cretinos fundamentais, nem água.
A lista de surpresas nessa tarde no Leme não se esgotaria aí. Quando deu por encerrada a entrevista, Nélson pergunta ao repórter: ‘E então, você me achou muito reacionário?’. Não, claro que não. Em seguida, pega o telefone, liga para a cozinha do Hotel Nacional, identifica-se e faz uma pergunta a um maitre provavelmente atônito:
– Companheiro, aqui é Nélson Rodrigues. Qual é o prato do dia?
Ouve a resposta em silêncio, desliga o telefone. Recolhido ao sossego do lar, no fim de tarde de um feriado, já parcialmente debilitado por doenças que lhe encurtavam o fôlego, Nélson jamais se animaria a ir até o Hotel Nacional para saborear o prato do dia. Mas fez questão de tirar a dúvida com o maitre. Para quê?
As cenas que Nélson Rodrigues protagonizou nesta tarde no Leme já valiam por uma entrevista. Mas o interrogatório ainda iria começar. A fera dispensa ao repórter um tratamento afetuoso: chama-me de ‘meu bem’. Alheio ao eventual cansaço de Nélson, estico a conversa até o limite máximo. Não quero desperdiçar a chance de ouvir de viva voz as tiradas do cronista inigualável. A irmã do gênio é que, delicadamente, interrompe o questionário no instante em que Nélson fez uma pausa para engolir uns comprimidos. Ao autografar o exemplar do livro de crônicas O Reacionário – consultado durante a entrevista – Nélson Rodrigues oferece-me uma dedicatória dúbia: ‘A Geneton, amigo doce e truculento – Nélson Falcão Rodrigues’.
Quase um quarto de século depois (a entrevista foi gravada no dia 1 de maio de 1978) ouço novamente a fita, releio a transcrição da entrevista. Confirmo que Nélson Rodrigues é um caso raríssimo de escritor que falava como escrevia. Só há outro caso: Gilberto Freyre. Transcritas, as entrevistas dos dois em certos momentos se assemelham aos textos que escreviam, o que é uma façanha: a linguagem falada normalmente é mais pobre que a linguagem escrita. Mas a regra – guardadas as naturais diferenças entre o que se fala e o que se escreve – nem sempre valia para os dois.
A entrevista foi embalada por citações ao livro O Reacionário, lançado por Nélson meses antes. Durante toda a entrevista, Nélson fez, repetidas vezes, citações a histórias e personagens descritos em O Reacionário. De vez em quando, entre uma resposta e outra, ele mudava repentinamente de assunto; parecia afogado em divagações. Chegou a reclamar: ‘Eu estou tendo lapsos lamentáveis…’ Assim, frases de O Reacionário complementam, nesta entrevista, as respostas gravadas por Nélson Rodrigues.
Os melhores momentos do diálogo improvável entre Nélson Rodrigues – o gênio que se intitulava ‘a flor da obsessão’ – e o repórter intruso.
***
Quando foi que Nélson Rodrigues descobriu que nascera para escrever?
Nélson Rodrigues – A coisa é a seguinte: escrever para mim, muito mais do que uma decisão profissional, é um destino. Escrever é o meu destino! Não é um caso de opção. Eu só tinha esta opção, uma vez que nasci assim.
O senhor se considera um escritor por vocação?
N.R. – Digo que, no meu caso, eu nem precisava de vocação, porque o negócio era o óbvio – o óbvio ululante! Eu tinha de ser aquilo. Se você chagasse junto de mim e pedisse para eu ter outra profissão, podia até dar dinheiro para que eu tivesse outro destino, não seria absolutamente possível.
O início foi com ficção ou com jornalismo?
N.R. – Eu estava no quarto ano primário na Escola Prudente de Morais. Uma dia, a professora – que mandava a gente desenhar e colorir uma vaca de estampa, para que nós, alunos, fizéssemos em torno da vaca toda uma história – disse: ‘Olhem aqui: Hoje, vocês vão ter de escrever da próprio cabeça. Agora não é mais sobre a vaca pintada’. E então deixou que cada um de nós fizesse o seu drama, o seu projeto dramático.
Duas histórias tiveram o primeiro lugar. A do meu adversário era um a história de um daqueles magnatas que davam passeios. Ele descrevia o passeio de um rajá no seu elefante favorito. E pronto. A minha foi inteiramente diferente. Eu fiz a história de uma moça que era uma fera. Quase uma dama do lotação. Um dia, o marido chega em casa mais cedo e, quando empurra assim (imita o gesto de alguém forçando o trinco de uma porta). Entra em casa, segura o amigo traidor e enfia nele uma faca. Eu tive o primeiro lugar e empatamos. O prêmio ao rajá e ao respectivo elefante era uma concessão ao convencional.
Isto foi a primeira vez em que eu era ficcionista. Todo o meu futuro está aí. Era a história de uma pobre adúltera que morreu de maneira tão melancólica. O traidor morreu também de maneira melancólica: direi, a bem da verdade, que a minha história causou um horror deliciado. Eu era, para todos os efeitos, um pequeno monstro.
Eu comecei com treze anos a trabalhar como jornalista profissional e repórter: esse é o caso. Não teria jeito: eu teria de meter uma bala na cabeça…
Para o senhor – que é considerado um mestre nesse ofício – o que é necessário para retratar, num texto teatral, o mundo desses personagens suburbanos das nossas cidades?
N.R. – Em primeiro lugar, o sujeito tem de ser ficcionista. Precisa ser inteiramente sensível ao primeiro chamamento da profissão. Não basta apenas o gosto. Não é apenas uma facilidade, mas um destino (pronuncia em tom dramático esta palavra).
A inspiração é uma entidade que existe para o senhor?
N.R. – O negócio da inspiração é o seguinte: eu considero a inspiração, ao contrário de Valèrie, que só via a máquina individual do ficcionista. Aquilo é uma coisa que o ficcionista apura com o tempo, desenvolve com a experiência.
Dentre as peças que escreveu, qual a que o senhor considera como definitiva, como a obra acabada do dramaturgo Nélson Rodrigues?
N.R. – O mais importante para mim, até o momento, é o dramaturgo. Volta e meia, me sinto muito perplexo diante de certas manifestações que me induzem ao teatro, embora o teatro tenha um defeito: tenho de vez em quando vontade de fazer certas experiências não teatrais dentro da área de literatura, mas sem ter nada de dramático.
Dentre as peças já escritas, qual é a predileta?
N.R. – Tenho várias prediletas. Eu diria mesmo que são todas as prediletas. Não tenho prediletas (ri). Todas são favoritas. Já pensei muito em querer discriminar qual a minha melhor peça, mas não sei.
Que autores brasileiros de hoje o senhor considera como verdadeiros artistas do teatro?
N.R. – Vou pular esta, porque tenho autores que são inimigos meus. Pior do que o inimigo é o amigo. Um autor que é um amigo tem todos os defeitos…
O senhor diz sempre que ‘a admiração corrompe’. É o caso?
N.R. – É isso, é o caso. A admiração corrompe. O amigo que é o nosso maior torcedor não é o maior coisa nenhuma, porque, ele próprio, não consegue se prender. Então, começa a fazer insinuações e etc…Como eu sinto, evidentemente, o nosso amigo, o inimigo, com a maior facilidade, então eu prefiro o inimigo (ri).
Se o senhor fosse levado a fazer uma hipotética opção entre o teatro e o jornalismo, qual dos dois preferiria?
N.R. – O teatro! E não é um problema de qualidade intelectual não’.
O jornalismo brasileiro continua padecendo de objetividade? – que o senhor considera uma ‘doença grave’?
N.R. – O idiota da objetividade é o jornalista que tem grande fama, todo mundo, quando fala dele, muda de flexão. Mas eu acho o idiota da objetividade um fracasso. Isso num julgamento absoluto. O idiota da objetividade é também um cretino fundamental.
Quais foram as causas da ocorrência desse culto à objetividade que, no conceito do senhor, corresponde à falta de emoção?
N.R. – Pois é, é esse o negócio (ri de novo). É a falta de complexidade do sujeito que diz só a coisa certa ou aparentemente certa e não vê que todo fato tem uma aura. A verdade é que o fato só, em si mesmo, é uma boa droga. Olhe aí (e mostra a crônica ‘A desumanização da manchete’). O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção da população. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy. Na velha imprensa, as manchetes choravam com o leitor. A partir do copydesk, sumiu a emoção de títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do Jornal do Brasil. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver, ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto na manchete. Havia um abismo entre o’Jornal do Brasil’ e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete.
A ausência de um ponto de exclamação numa manchete faz falta ao leitor comum?
N.R. – Faz. Eu digo o seguinte: na minha infância, havia primeiro o’Correio da Manhã’, um jornalaço. E havia A Noite – que vendia muito mais. E era um jornal muito mais amado pelo leitor. A Noite era um jornal amado (acentua a voz, ergue os braços). O sujeito comprava A Noite disposto a ler ou disposto a não ler. Não fazia mal isto. Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismo permitia, por exemplo, que você fosse fazer a cobertura de um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro, uma gaiola e metesse a gaiola com um pássaro lá num certo ponto da casa em chamas. E aí o repórter que não era idiota da objetividade dizia que o nosso querido fotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminava dizendo: ‘Morreu cantando’ (a essa altura, Nélson Rodrigues concede uma entonação teatral a esta frase). O repórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repórter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar para morrer.
A história desse canário fez um sucesso tremendo. Um sujeito queria uma vala especial para o canário, o nosso querido canário cantor. Era lindo. O jornalismo de antigamente era mais ou menos assim. Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da objetividade. A geração criadora de passarinhos parou em Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem sobre o incêndio. Eis o drama: o passarinho foi substituído pela veracidade que, como se sabe, canta muito menos. Daí porque a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira.
Que fatos ou situações brasileiras o senhor contemplaria com um ponto de exclamação numa manchete de jornal?
N.R. – (pensativo, com olhar distante) Deixe-me ver… O negócio é o seguinte: houve num desastre uma coisa atroz que foi uma explosão. Morreram seiscentos sujeitos, segundo as manchetes da ocasião. Todo mundo fazia coro… E outro caso de repórter que não era idiota da objetividade: o sujeito foi fazer a cobertura de um desastre de trem. Geralmente, em desastre de trem, morria gente pra burro. Agora, morre muito menos, não sei por que.
Mas qual é o fato? Deixe-me ver… Ah, o suicídio de Getúlio Vargas foi de uma brutalidade incrível. Uma coisa bonita é que foi uma coisa misteriosa, aí é que não entrou objetividade nenhuma. Morreu, então o cara passa a ser um deus. O que é que você pode fazer contra o cara? Deu um tiro no peito, ia ser deposto. E só porque ia ser deposto ele se mata.
Veja só: no princípio da minha infância havia o pacto de morte. Havia sujeitos que se amavam tanto que já não suportavam mais o próprio amor. Então, o que fazia ele? Propunha à pequena o suicídio, um pacto suicida. Rara era a pequena que duvidava. O lindo era a vontade, o encanto com que esse par de amorosos se matava e cumpria o seu destino. Esse é que é o caso.
Quer dizer então que na história recente do Brasil o suicídio de Getúlio Vargas seria o último grande fato que mereceria um ponto de exclamação do senhor numa manchete de jornal?
N.R. – Olhe: quando eu digo merecer a manchete de jornal… (interrompe, olha para a televisão, comenta a iminência de um gol da seleção brasileira, distrai-se, retoma a conversa de um ponto anterior). Você compreendeu como é o caso? Antes de certo tempo aí, achavam que era uma coisa gravíssima o sujeito se matar, era uma covardia. E nem ele nem a menina acreditavam que isso fosse um defeito, o defeito de se matar: alguém ter o direito de destruir o próprio amor e o amor do outro. Mas os dois se destruíram. O sujeito achava que era uma maneira de coroar o próprio amor.
Agora, a nossa realidade está realmente muito pobre, muito vazia, sem um certo apelo dramático. Ninguém hoje quer morrer, ninguém quer se suicidar!. Ali o sujeito só queria destruir o amor. E aí a sogra ia cuspir na morte do sujeito que lhe matara a filha.
O senhor lê a chamada imprensa alternativa?
N.R. – Alternativa o quê?
A imprensa alternativa, esses novos jornais que têm surgido, o senhor lê?
N.R. – Eu leio de vez em quando mas não faço questão, porque jornal é uma coisa inquietante. O jornal não é o jornal do dia, é o jornal da véspera. Há anos não leio um jornal que não seja rigorosamente o jornal da véspera. Só sai o jornal da véspera e nunca o jornal do próprio dia. São fatos da véspera , figuras da véspera. O fato do dia não existe e ou só existe para rádio e as TVs. No passado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atropelado acabava de estrebuchar na página do jornal. E assim o marido que matava a mulher e a mulher que matava o marido. Tudo tinha a tensão, a magia, o dramatismo da própria vida. Mas, como hoje só há jornal da véspera, cria-se uma distância entre nós e a notícia, entre nós e o fato, entre nós e a calamidade pública ou privada. Servem-nos a informação envelhecida. Nós, jornalistas, é que estamos mais obsoletos, mais fora de moda do que charleston, do que o tango.
Não há nenhum fato do dia…
N.R. – Pelo menos a gente tem essa impressão. O que nós chamávamos antigamente de furo não existe mais. Todos hoje acham que podem viver sem o furo, ao passo que, no meu tempo, quando eu era garoto, um furo de reportagem era tudo. Era o grande momento da carreira.
Agora, para falar de manchete, outro fato formidável foi o seguinte: antigamente, o Largo do São Francisco era o local próprio para o sujeito se manifestar. E quando havia muitos interessados em se manifestar, havia o diabo, o diabo! Um dia, fizeram uma coisa qualquer com o chefe de polícia. E o chefe de polícia – que era um santo – assinou uma portaria proibindo os estudantes não sei de quê nem ninguém sabe. Tudo que houve foi por conta da falta de bossa, da falta de inteligência dos nossos queridos estudantes. E então os estudantes resolveram fazer um ‘enterro’ do chefe de polícia – que era um velho general, sujeito que acreditava em honra, num tempo em que ninguém sabia o que era honra. O general era um santo homem e então achou que aquilo era brincadeira de estudante. E lá foi ele dizendo aos queridos investigadores que não queria machucar ninguém. Nada de bala, nada de punhal, dizia o nosso general. E no dia do ‘enterro’, os estudantes carregavam o caixão, todos levando uma vela acesa. Era uma coisa só, com mil vozes cantando a marcha fúnebre, dando vivas à morte. Dois ou três homens de polícia, furiosos com a questão, simplesmente acharam de matar três estudantes. Aí foi aquela coisa tremenda. Houve então uma manchete, a manchete mortal da imprensa brasileira. Um jornal descobriu uma manchete fantástica (muda a flexão de voz, entusiasmado). A manchete quase derruba a presidência da República, a vice-presidência, o chefe de polícia imediatamente se demitiu, foi embora, não quis mais nada, achando-se culpado. Inventaram uma manchete que até hoje eu gosto de ouvir…
Qual foi?
N.R. – Era assim: ‘Primavera de Sangue’ (pronuncia cada uma das sílabas devagar, como se saboreasse as palavras). A manchete quase derruba o presidente da República, o ministro da Guerra, um negócio terrível. E tudo isso pela beleza que se atribui à manchete. Quero dizer que, se você quiser, com uma frase bem trabalhada, você resolve o caso.
De quando foi essa manchete?
N.R. – Eu era garoto, tenho agora sessenta e cinco anos. E foi na altura dos meus dez anos. Agora, eu sei disso tudo pelas informações do pessoal. O cara que fez esta manchete ganhou uma fortuna, quinhentos mil réis. Só o Rockfeller tinha esse dinheiro na ocasião (ri).
O senhor se interessa por política partidária?
N.R. – Eu não sou ninguém para dizer certas coisas, mas o bom no brasileiro é que ele, sem saber de nada, diz coisas horrendas.
Quais são os políticos brasileiros que o fascinaram ou fascinam hoje? Existe algum nome que o senhor queira citar?
N.R. – (Pausa de alguns minutos, ele está pensando) Num desses momentos, quem é o sujeito? Já começo a ficar amargurado, porque para achar um sujeito, poder dizer um político interessante… Eu acho que só Napoleão Bonaparte! (ri).
O senhor já disse que um dos traços do caráter nacional é o fato de que o brasileiro adere a qualquer passeata. Quais seriam os principais traços do nosso caráter nacional?
N.R. – O brasileiro é um tipo gozadíssimo. O diabo é que o brasileiro não pode se esforçar muito porque, senão, cai na chanchada trágica. O brasileiro é um sujeito que gosta de fazer farra, é um desses que, em pleno velório, põe a mão na viúva. E a viúva é também um caso sério porque este negócio de viúva vocacional é um fato. Há realmente um repertório sensacional de casos. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro. Houve um tempo em que nem o Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil sabia quem era o brasileiro. Mas se um sujeito se apresentava como brasileiro, as pessoas de bem respondiam: ‘Não te conheço!’. E muitos duvidavam que o Pão de Açúcar ou o poente do Leblon fossem brasileiros.
Olhe: houve tempo em que a mulher mais séria do mundo, mais digna, mais respeitável se deixava envolver por um poeta, se abandonava por um soneto. Era outra vida. De repente eu fico olhando: era outra vida, outro homem. E havia a figura do bêbado. Hoje, o bêbado é um sujeito que a psicanálise cura depois de quinze anos de tratamento, quando, aliás, a cura já não adianta mais nada. Eu tinha um tio que se enamorou da minha tia Yayá. E se você perguntar ‘Qual foi o maior homem que você viu no mundo?’, eu acho que esse tio está no segundo ou terceiro lugar, porque o desgraçado, ele amava a minha tia Yayá. Ele já não precisava mais beber para estar bêbado, de alto a baixo. E, com isso, fazia uma considerável economia de dinheiro… Em minha família houve um bêbado indubitável, foi este meu tio Chico. Como sujeito que bebe muito, ele durou pra burro. Morreu com oitenta e tantos anos, sempre bêbado, rigorosamente. Vem desse tio antigo o meu horror ao bêbado. Mas ele me ensinou também uma série de coisas lindas. Por exemplo: o amor. Meu tio Chico me ensinou a amar. Embriagou-se em cada minuto da lua-de-mel. Bebeu antes, durante e depois. Yayá costurava para o casal não morrer de fome. Mas eu, menino, queria amar e ser amado como esse alcoólatra enlouquecido. Era um amor que hoje não existiria. A minha tia Yayá deu graças a Deus que ele tivesse se apagado. Agora ninguém ama mais, eis o que comecei a descobrir desde os treze anos de batalha. Você ponha aí: o meu tio Chico e sua bem amada Yayá. Era um negócio impressionante.
Por que é que o senhor diz, desse jeito, que hoje ninguém ama mais?
N.R. – Meu bem, se a evidência objetiva e espetacular vale alguma coisa, o homem não ama mais. E não ama mais porque o nosso cenário se povoa de sujeitos que são débeis mentais absolutos. O sujeito já não acredita em amor, pra começo de conversa. Não acredita em amor. O sujeito acha que todo mundo é a mesma coisa, e apesar disto, se diz marxista. É uma coisa esterilizante que há na vida brasileira, sobretudo carioca. O carioca é esse sujeito fascinante só na base dos defeitos que tem. Arranja logo casamento e é uma besta. E todo mundo diz: ‘Oh, que coisa, que amor!’.
E eu me lembro de uma menina grã-fina mesmo… Aliás, diga-se de passagem que eu não acredito na existência da grã-fina nem do grã-fino. Dou-lhes este nome. Mas é incrível esse negócio da mulher moderna (fala com a voz arrastada, como se entoasse um lamento). Nunca ela foi tão infeliz e tão pouco feminina. Eu tive um cachorro, o nosso querido Boogie-Woogie, que ficava diante da minha casa amando sua querida cachorra. Ela ficava lá, digníssima, empinada, recebendo as homenagens. Os carros passavam e achavam o cachorro louco. E esse nosso amigo, o cachorro, era muito mais humano que a mulher dos nossos tempos. Elas se meteram a bestas.
O brasileiro continua sendo um ‘Narciso às avessas que cospe na própria imagem’, como o senhor dizia?
N.R. – Continua, continua!
Qual é o remédio para isso?
N.R. – O remédio para isso? Nunca. Para isso não há remédio. Veja que o Brasil ganhou três vezes o campeonato mundial. Se ganhou três vezes, e se o brasileiro não fosse o otário que é, estava tudo salvo, tudo salvo. Ganhou três vezes no futebol, feito como esse ninguém teve e não se conhece isso.
O brasileiro tem virtudes. É bom fazer uma ressalva nesses defeitos que digo. Isso o torna extremamente simpático. Aquela volubilidade… O sujeito ora ama aqui, ora ama ali… Vai lá pra chegada do trem elétrico, vai arranjando os seus amores que, aliás, duram geralmente vinte e um dias, quando duram. Há pessoas que casam e lá na sacristia estão os convidados fazendo apostas sobre a duração daquele casamento. E você pode ficar sossegado porque aquele casamento está inteiramente liquidado antes do começo. Há amores, entendeu, que o sujeito traz consigo e realmente são sinceros. Mas evidentemente, não existe este amor, porque o nosso querido Brasil…
Olhe: em 1958, quando o nosso querido Brasil voltou campeão da Copa, foi o maior futebol que jamais se viu…
Diga-se de passagem que eu considero o brasileiro o maior sujeito do mundo. O europeu já está esgotado. O europeu tem na casa dele pires de mil anos. Escadas de mil anos. Tudo é velho pra burro. Já com o brasileiro é inteiramente diferente. É como se ele estivesse sempre há quinze minutos do fato. Um negócio genial.
(Nélson tinha mudado de assunto; volta ao futebol) Basta o sujeito passar quinze minutos assistindo a um jogo importante desses camaradas. Esses rapazes são uns gênios. Mas o sujeito pensa que isso não é importante e sai, nem liga. Mas quando o negócio vai se transmitir em forma de gorjeta, aí então o brasileiro é um feroz…
O senhor diz também que a paisagem dos países desenvolvidos é triste sem imaginação…
N.R. – É. Como se não bastasse a padronização de caras, corpos, costumes, usos, idéias, valores, há também a estandardização da paisagem. Tudo prodigiosamente igual. É trágica a falta de imaginação da paisagem no país desenvolvido. O desenvolvimento é burro, ao passo que o subdesenvolvimento pode tentar um livre, desesperado, exclusivo projeto de vida.
O diabo é que o Burle Marx, no Brasil, faz o que nem o europeu faria lá. O nosso Burle Marx retira a flor da paisagem. Dizem que o Amazonas é a coisa mais gigantesca do mundo. O nosso Burle Marx só usa uma cor, a verde, e danem-se as outras cores. Fiz esta anotação e ele me disse numa entrevista dele que o teatrólogo Nélson Rodrigues, com certeza, não estava olhando para a paisagem, não viu outra cor, se não a verde. Fui espiar lá e, realmente, o único paisagista do Aterro do Flamengo é o Exército, porque acrescentou, ao Monumento dos Pracinhas, algumas flores, umas dezessete flores. O paisagista foi o ministro da Guerra. O nosso querido Burle Marx, a quem muito admiro, não pôs flores no Aterro, e com a maior tranqüilidade do mundo. Não precisa prestar atenção… O negócio das cores… (Nesta altura da conversa, ele ri e confessa: ‘Eu estou tendo lapsos lamentáveis…’).
Você sabe o que é o sujeito fazer uma bobagem e negar a verdade? Se ele aceitar o erro, está bem. Agora, quando o sujeito fica impune… A impunidade faz de um São Francisco de Assis um canalha. Ele comete um ato e ninguém o prende, ninguém o ameaça, sequer.
É este o caso de Burle Marx. Como ele está faturando cada vez mais, não liga por ter feito um jardim onde só existe uma cor e onde não tem uma violeta. Ele está cada vez faturando mais, e mais fiel aos seus erros, porque descobriu que o erro está muito mais perto do êxito. Já falei pra burro, agora você está satisfeito, não é? E vai querer continuar…
Agora, uma explicação para as causas do rancor e da ironia feroz que o senhor cultiva diante de seus personagens, como por exemplo, ‘as verdadeiras grã-finas’…
N.R. – O que eu acho é que a gente diz ‘grã-finas’ sem achar que elas tenham obrigação de agir como grã-finas. E elas não agem como deviam ser. Maria Antonieta podia dizer: ‘Ah, eu sou grã-fina…’. Por isso, certa vez, o povo estava urrando de fome de fora do palácio e ela disse: ‘Se não tem pão, comam brioche’. Então, a Maria Antonieta é que poderia bradar: ‘E, portanto, eu posso dizer que sou grã-fina’. Ela derrubou um erro, derrubou um regime horrendo. A única grã-fina do mundo é a Maria Antonieta. De então para cá nunca mais vi uma grã-fina. E muito menos uma grã-fina paulista que é gorducha, porque tem dinheiro à beça para comer. E come. Mas não existe. A nossa querida grã-fina precisa de dinheiro. Como precisa de dinheiro, e está furiosa porque não tem, então assume diversas atitudes, como, por exemplo, dizer numa mesa: ‘Na minha casa, só as criadas vêem televisão’. As grã-finas não existem. A única descoberta que eu fiz com as grã-finas foi esta: elas não existem.
E as ‘estagiárias de calcanhar sujo’?
N.R. – Já as estagiárias têm uma existência feroz… (ri, acentua o tom de voz). Sobre nossa querida estagiária, eu vou te dizer o seguinte: é incrível. Meninas que não serviriam para babá nem poderiam entrar num cinema para ver filme francês ou meu próprio filme, a A Dama do Lotação, fazem atitudes que os bocós consideram geniais.
O que assombra na estagiária não é a sua graça pessoal, mais discutível, menos discutível, segundo cada caso. O que me assombra são as suas perguntas e repito: são as perguntas que tornam a estagiária um ser tão misterioso e absurdo como certas imagens de aquário. Uma dessas meninas irreais de redação é bem capaz de atropelar um presidente, um rajá, um gangster ou um santo ou, simplesmente, uma dessas velhas internacionais que embarcam em todos os aeroportos. E perguntar: ‘Que me diz o senhor, ou a senhora, de Jesus Cristo do Nada Absoluto, do Todo Universal ou da pílula?’
Você veja: uma delas foi incumbida de entrevistar um milionário. Ligou para a casa do milionário, disse: ‘Eu queria falar com o Dr. Fulano’. Do outro lado, uma voz responde: ‘Dr. Fulano não está passando bem’. E a menina insiste: ‘Então, pergunta a ele se…’. Desligam e a estagiária disca novamente, não com o dedo, mas com o lápis: ‘Eu queria falar com o Dr. Fulano’. A pessoa diz, desatinada: ‘Minha senhora, o Dr. Fulano acaba de ter um enfarte. Enfarte, minha senhora, enfarte. A senhora quer que eu diga mais do que estou dizendo?’. E a estagiária: ‘Vai lá e pergunta a ele o que é que ele acha da pílula. Eu espero’.
A família do enfartado toda se descabelando… o que, aliás, é raro, porque, no nosso tempo, a família chora muito pouco. O inimigo da morte – que é o clínico – dá logo um furioso calmante.
A estagiária então liga novamente. Dá sinal de ocupado. Continuou, com uma obstinação fatalista. E sempre ocupado. Uma hora depois, atendem. Era uma mulher que ou estava gripada ou chorando. A estagiária diz: ‘Por obséquio, eu queria falar com o Dr. Fulano’. Responde a voz feminina: ‘O Dr. Fulano acaba de falecer’. E a estagiária: ‘A senhora diz a ele que é só uma perguntinha’… e etc.
Agora, há um dado que me parece essencial. As entrevistas das estagiárias têm uma virtude rara: nunca saem. Falo por experiência própria. Quase todos os dias, uma estagiária me caça pelo telefone. E eu falo sobre todos os temas e personalidades. Opinei sobre os Kennedy, João XXIII, o Kaiser, Gandhi. No dia seguinte, abro o jornal e vejo que não saiu uma linha. Mas uma coisa curiosa: não só as estagiárias. Profissionais da melhor qualidade estão seguindo a mesma linha. Posso dizer que a nossa imprensa criou o novo gênero de entrevistas que não serão publicadas nem a tiro.
O que é que o Recife significa para o senhor hoje?
N.R. – Eu gosto do Recife pra burro. Vim de lá aos cinco anos de idade. Fiquei lá até o ano de 1929. Você veja: me dá pena estar pensando no Recife e nunca ir lá. Tenho, em minha memória profunda, um apelo de pernambucano pelo Recife.
O senhor não pensa em voltar?
N.R. – De vez em quando eu faço evocações…(Um dos textos de O Reacionário traz lembranças da cidade) Toda a minha infância tem gosto de pitanga e de caju. Pitanga brava e caju de praia. Ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou arrebatado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais. E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambuco. Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso foi a minha primeira relação com o universo. Ali eu começava a existir.
O senhor não volta ao Recife porque tem medo de avião?
N.R. – Acho chato viajar de avião, não quero voar, a não ser caso de vida ou morte. Tenho horror às viagens. A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil.
Qual foi a última vez que o senhor esteve no Recife?
N.R. – Em 1929. Tenho um sadio horror de avião.
Texto de Geneton Moraes Neto.

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Nelson Rodrigues Fala no Telefone Astral - Arnaldo Jabor


 

Nelson Rodrigues Fala no Telefone Astral - Arnaldo Jabor
Crônica




- Alô?
- Rapaz, você atendendo ao próprio telefone, como um contínuo de si mesmo? (Era o Nelson Rodrigues. De vez em quando, ele me telefona do céu pelo seu velho telefone preto de ebonite)
- Que posso fazer, Nelson, não sou rico como você...
- Rico nada, rapaz, se você vir um sujeito tocando acordeom na rua do Ouvidor, pode dar esmola que sou eu...
(Todos nossos telefonemas começavam assim, quando ele era vivo. Continuamos com a tradição)
- E aí, Nelson, como está aí em cima?...
-Estou caprichando...caprichando...
- Que que você está achando do Brasil?
- Rapaz, "o" Brasil não existe", "o" Brasil é uma ilusão... Que Brasil?
- Sei lá, o governo...
- Acho que o Fernando Henrique tem um perfil de medalha. Ele nasceu para ser a cara da coroa da moeda. Mas, acho que ele está em fremente lua de mel consigo mesmo...
- Como assim?
- Feito o Guimarães Rosa. Quando eu encontrava ele na rua, satisfeitíssimo consigo mesmo, eu dizia: "João, não seja tão Guimarães Rosa... O Fernando Henrique está acreditando demais no próprio sorriso. Ele tem de inspirar medo também. Consciência política de brasileiro é medo da polícia. Você acha que o Euler Ribeiro tem medo de quê? Só dos eleitores e do Amazonini... Eles estão adorando chantagear o Fernando Henrique porque ele é intelectual. Eles têm uma inveja danada dele. Fernando tem de fazer como o Luís Eduardo Magalhães: mais severidade. Aliás, estou gostando deste rapaz. Achava que era filhinho do papai, mas não; é um homem. Sabe tratar com os pequenos canalhas. Se bem que há poesia nos pequenos canalhas e nos cretinos fundamentais. São brasileiros como o Saci-Pererê. Mas, com eles, só o medo funciona. São muito piores que os "inimigos" estrangeiros. O pequeno canalha é o cupim do Brasil.
- E o teatro, que você está achando do teatro?
- Rapaz, não há mais dramaturgos no Brasil. Eles estão sendo exterminados a pauladas feito ratazanas grávidas. Se o sujeito diz que é dramaturgo, chamam logo o "rapa". Só existem os diretores. O diretor pode tudo. O dramaturgo vive amarrado ao pé da mesa, bebendo água na cuia de queijo Palmira. Já o diretor, anda de penacho e esporas de dragão da independência. Outro dia eu vi uma peça minha em que as pessoas ganiam, rolavam no chão com arranques de cachorro atropelado. Que acontece? As novas gerações pensam que eu sou ou um pornógrafo ou uma besta. O teatro virou uma missa leiga, em que o padre equilibra bolas no nariz como uma foca profissional. Hoje, só tem pecinha para caçar níqueis ou coisas "eruditas" demais, feitas por diretores que têm uma profundidade que a formiga atravessa com água pelas canelas. É um caso sério.
- E a esquerda, Nelson?
- Estou com uma nostalgia brutal pela esquerda antiga. Que saudades do meu amigo Vianinha, que era um Byron da cabeça aos sapatos... Mesmo você, que participava de passeatas contra a fome chupando Chicabon. Tenho saudades do d. Helder, apesar dos pés de bode que a batina roxa escondia. Ele era muito melhor que este Von Helder que chutou a santa. A esquerda está no tempo do Olavo Bilac. Adoro o PC do B. Parece uma igreja. O PC do B está iluminado de fé. É lindo, me lembra uma tenda espírita, em que o Stálin baixa às vezes com a vozinha fina de caboclo infantil. Mas, gosto muito do João Amazonas; parece um santo de vitral varado de luz. Gosto também da coisa dramática e desengonçada da Jandira Feghalli; ela daria uma boa atriz para "A Falecida". Já o PT... tenho pena do Lula... tão inteligente, prisioneiro dos cretinos fundamentais. Você sabe que hoje em dia, se um cretino fundamental sobe num caixote de querosene Jacaré, na mesma hora aparecem milhares de cretinos para ouvi-lo. Antigamente, o cretino se escondia pelos cantos. Hoje, andam de fronte alta.
- E os sem-terra?
- Taí. Gosto dos sem-terra. Tem canalhas no meio, mas eles são tão bonitos... Parecem camponeses do "Angelus de Millet", devem ter alguma razão.
Mas, rapaz, estou triste é com o Rio. Outro dia fui tomar um cafezinho bem carioquinha ali perto na rua de Santana, e vi que o Rio perdeu o cafajeste poético. Nossos vagabundos, nossos malandros perderam o halo de luz. Estão tristes. O carioca lírico desapareceu... O Rio era um feriado. O Rio era um sábado. Hoje, todo mundo correndo de medo...
- E o futebol?
- Entro em cava depressão quando vejo o nome da Hyundai, rapaz, marca de carro coreano no peito dos jogadores do Fluminense. Não me conformo com estas camisas sagradas sendo usadas para propaganda: Kalunga, Lubrax, que coisa triste... O futebol não é reclame. Tenho vontade de sentar no meio fio e chorar lágrimas de esguicho... Mas, pelo menos, há uma beleza nos jovens jogadores da seleção. A bola os segue como uma cachorrinha fiel segue o dono.
- E a literatura, Nelson?
- Rapaz, o que estraga a literatura brasileira é que nenhum escritor sabe bater um escanteio. É isso. Todo mundo quer ser genial. O único livro genial que eu li ultimamente aí foi "Os Desvalidos" do Francisco Dantas, um sergipano. É um Rosa sem máscara, um Graciliano afetivo. Ninguém fala nele. O José Lino Grunewald devia ler.
- E a pós-modernidade...?
- Que é isso?
- É... sei lá... é o fim das utopias... a falta de esperança...
- Ihh... rapaz... o mundo sempre foi pós-moderno. Este negócio de esperança é uma invenção de intelectual francês. Tudo sempre foi ilusão. Nunca houve esperança. Vocês deviam se abaixar e beber na sarjeta da pós-modernidade... A desesperança é a salvação dos intelectuais. Você veja o Marx. Ele era genial onde ninguém achava. Marx dava uma importância danada aos botequins e aos bifes da Alemanha. E quiseram fazer dele o deus da esperança. Que nada, Marx sempre foi pós-moderno...
- Poxa, Nelson, você está muito deprimido... nem aí no céu...
- Que nada, rapaz. Estou achando o Brasil ótimo, justamente porque perdeu as ilusões. Agora é que vai ficar bom. O brasileiro estava precisando perder a pose. Nos últimos anos, caiu nossa máscara. Mas, agora está na hora de gostar de si mesmo de novo. O brasileiro odeia a própria imagem como um narciso às avessas. Ele quer ser americano, húngaro, o diabo. O brasileiro só se moderniza se assumir a própria miséria, a própria cara. Se o brasileiro assumir a própria cara ele vira um rei, de coroa e cetro tropeçando no manto de arminho.
É isso aí...
- Você telefona quando, Nelson?
- Sempre que você começar a escrever coisas metidas a profundas, eu telefono. Assuma sua ignorância, sua cretinice de brasileiro. Não seja inteligente, rapaz; seja burro, seja burro. É a sua salvação!
- Obrigado, Nelson.