sábado, 22 de janeiro de 2022

“Ao Cretino Fundamental, Nem Água” - Artigo


 

“Ao Cretino Fundamental, Nem Água” - Artigo
Artigo


Meu primeiro, único e último encontro com o gênio Nélson Rodrigues (1912-1980) começou com uma dúvida devastadora: por que diabos ele teria marcado nossa entrevista justamente para a hora de um jogo da seleção brasileira? Não é possível, deve ter havido algum engano – eu pensava com meus botões, enquanto caminhava pelas calçadas do Leme, na beira-mar, no Rio de Janeiro, em direção ao apartamento do homem.
Se Nélson Rodrigues escrevia aquelas crônicas geniais sobre futebol no jornal O Globo, é óbvio que ele não iria dar uma entrevista a um forasteiro pernambucano no exato momento em que a seleção brasileira entrava em campo, no Maracanã, com transmissão ao vivo pela TV. Se desse, como é que ele iria escrever sobre o jogo no jornal do dia seguinte? Não, deve ter havido um grande equívoco. É melhor que eu desista. Nélson não iria dar entrevista alguma num momento tão inoportuno. Ou iria?
Mergulhado num poço de constrangimento, aperto a campainha. A entrevista tinha sido marcada por telefone. Uma mulher abre a porta. Ao fundo, vejo a imagem de Nélson Rodrigues esparramado numa poltrona. Os pés estão fora dos sapatos. Não faz frio, mas ele veste um suéter sobre a camisa de mangas curtas. Pende na parede da sala uma foto emoldurada de Nélson Rodrigues em companhia de Sônia Braga e de Neville de Almeida – atriz e diretor da versão cinematográfica de A Dama do Lotação.
Quando a mulher avisa em voz alta que’o repórter de Pernambuco’ estava na porta da sala, Nélson ergue os braços, agita as mãos, saúda o ilustre desconhecido com uma exclamação calorosa, como se reencontrasse um amigo de infância:’Conterrâneo! Conterrâneo!’.
O cumprimento efusivo não afasta o temor de que Nélson tenha cometido um pequeno equívoco: ao marcar a entrevista para aquele horário, ele bem que pode ter se esquecido de que a seleção brasileira iria entrar em campo dentro de instantes. A hipótese pode parecer absurda, mas quem sou eu para menosprezar as possíveis excentricidades de nosso herói?
Tento uma solução alternativa para escapar de um vexame: digo que posso voltar depois para gravar a entrevista; não quero importuná-lo na hora do jogo. Teatral, Nélson Rodrigues repousa a mão direita sobre o peito, como se sugerisse uma pontada no coração. Olha para a televisão, pede à mulher: ‘Tirem o som desse aparelho! Tirem o som desse aparelho! O Brasil me faz mal! O Fluminense me faz mal!’. A mulher e a irmã de Nélson riem da cena teatral. Hiperbólico, épico, exagerado, o homem é uma fábrica de tiradas dramáticas. Desconfio de que acabo de me transformar em solitário e privilegiadíssimo espectador de um espetáculo teatral chamado Nélson Falcão Rodrigues, encenado pelo próprio autor.
A ordem de Nélson – ‘tirem o som desse aparelho!’ – é imediatamente atendida. O aparelho de TV fica mudo. A seleção entra em campo: Leão; Toninho, Oscar, Amaral e Edinho; Batista, Toninho Cerezo e Rivelino; Zé Sérgio, Nunes e Zico. Assim, este forasteiro se vê de repente na condição de coadjuvante de uma cena surrealista: diante de uma TV sem som que transmitia o jogo da seleção brasileira contra o Peru, o autor das mais brilhantes crônicas já escritas sobre o futebol brasileiro simplesmente tira os olhos do vídeo para responder ao interrogatório de um visitante que chegou em hora inconveniente, munido de um gravador e um bloco de anotações. Improvisado como fotógrafo, o também pernambucano Wilson Urquisa vai flagrando, com uma velha Olympus, as poses teatrais de Nélson Rodrigues.
Se houvesse justiça nesta República, uma lei deveria determinar que, depois de Nélson Rodrigues, ninguém deveria escrever sobre futebol no Brasil. Porque é extremamente improvável que um candidato a sucessor consiga igualar o brilho do texto deste pernambucano que passou quase toda a vida exilado no Rio de Janeiro.
A coleção de pérolas rodrigueanas daria para encher uma enciclopédia. Ruy Castro organizou, para a Editora Companhia das Letras, um volume que reúne, sob o título de Flor de Obsessão, as ‘mil melhores frases’ do homem. Se quisesse, reuniria três mil, como estas vinte:
** ‘O brasileiro é um feriado’.
** ‘O Brasil é um elefante geográfico. Falta-lhe, porém, um rajá, isto é, um líder que o monte’.
** ‘Sou a maior velhice da América Latina. Já me confessei uma múmia, com todos os achaques das múmias’.
** ‘Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes, ainda que rezem pelo vampiro de Dusseldorf’.
** ‘O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota’
** ‘Na vida, o importante é fracassar’
** ‘A Europa é uma burrice aparelhada de museus’.
** ‘Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. O repórter mente pouco, mente cada vez menos’.
** ‘Daqui a duzentos anos, os historiadores vão chamar este final de século de’a mais cínica das épocas’. O cinismo escorre por toda parte, como a água das paredes infiltradas’.
** ‘Sexo é para operário’.
** ‘O socialismo ficará como um pesadelo humorístico da História’.
** ‘Subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos’.
** ‘As grandes convivências estão a um milímetro do tédio’.
** ‘Todo tímido é candidato a um crime sexual’.
** ‘Todas as vaias são boas, inclusive as más’.
** ‘O presidente que deixa o poder passa a ser, automaticamente, um chato’
** ‘Não gosto de minha voz. Eu a tenho sob protesto. Há, entre mim e minha voz, uma incompatibilidade irreversível’.
** ‘Sou um suburbano. Acho que a vida é mais profunda depois da praça Saenz Peña. O único lugar onde ainda há o suicídio por amor, onde ainda se morre e se mata por amor, é na Zona Norte’.
** ‘O adulto não existe. O homem é um menino perene’.
Fui testemunha ocular de uma verdade inapelável: Nélson Rodrigues era um cronista tão perfeito que nem precisava ver o jogo. O resultado da partida, as escaramuças dos jogadores, os esquemas táticos, todas essas bobagens não passavam de detalhes secundários aos olhos do gênio. A Nélson Rodrigues, importava a escalação do adjetivo certo na frase certa. Pouco interessava a distribuição de beques ou atacantes no retângulo verde. O relato dessas banalidades é tarefa que cabe aos ‘idiotas da objetividade’ – estes pobres seres que só são capazes de enxergar a rala superfície dos fatos.
A missão que Nélson Rodrigues outorgou a si mesmo era outra: traduzir em palavras a dimensão épica da maior paixão brasileira – o futebol. Para que, então, perder tempo com miudezas? Para que ouvir o narrador descrever o jogo na TV? Para que saber os nomes dos jogadores do Peru? Para que saber se o meio-de-campo do Brasil estava ou não estava inspirado?
– Em futebol , o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner bem ou mal batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural’, ele escreveu uma vez.
Nélson Rodrigues preferia se ocupar de questões metafísicas – como, por exemplo, a inapetência de nossos escritores brasileiros em tratar do futebol. Numa de suas tiradas clássicas, reclamou:
– Nossa literatura ignora o futebol – e repito: nossos escritores não sabem cobrar um reles lateral.
A frase é erradamente citada nove a cada dez vezes em que aparece em textos publicados em nossos jornais. Virou lugar comum dizer que Nélson Rodrigues reclamava de que nossos escritores não sabem nem bater um escanteio. É uma inexatidão. A implicância de Nélson era com literatos incapazes de cobrar um lateral. Mas, a bem da verdade, os que deturpam a queixa de Nélson não estão inteiramente errados: não apareceu ainda um escritor brasileiro capaz de bater um escanteio ou um lateral…
Alheio a esta fraqueza nacional, Nélson parece distante da disputa que se desenrola, ali, diante de nós, no vídeo da TV, entre a seleção brasileira e o escrete peruano. Faz ao repórter uma pergunta incrível:’Quem é o nosso adversário hoje?’ Informo que é o Peru.
Fique registrado para a posteridade que o maior cronista do futebol brasileiro não precisava necessariamente saber quem era nosso adversário.
Quando Zico faz um a zero, aos trinta e quatro minutos do primeiro tempo, Nélson interrompe a entrevista para inaugurar, aos brados, uma nova expressão exclamativa:
– Que coisa beleza! Que coisa beleza!
Depois, pede à família: ‘Pessoal, com licença dos nossos visitantes, vamos fechar essa máquina porque já estou começando a ficar nervoso’. Aos não iniciados nas sutilezas do dialeto rodrigueano, esclareça-se que ‘fechar a máquina’ significa desligar a televisão – o que, aliás, não foi feito. Nélson dispara, então, um julgamento entusiasmado sobre o escrete dirigido por Cláudio Coutinho:
– Mas esses rapazes são uns gênios! Uns gênios!
O repórter seria novamente surpreendido. Nélson já perguntara quem era ‘nosso adversário’. Agora, ao ver o replay do gol recém-marcado, toma um susto: ‘Mas já houve dois gols?’. Digo a ele que não: é apenas a repetição do primeiro gol. O placar é um a zero. O gênio da raça concorda com um ‘ah, sim!’. Teria dois outros motivos para vibrar: o mineiro Reinaldo – que entraria no lugar de Nunes – faria dois gols, aos 20 e aos 40 minutos do segundo tempo, para fechar o placar: Brasil 3 x O Peru.
Corro à banca no dia seguinte para comprar o jornal. O que diabos Nélson Rodrigues teria escrito sobre o jogo que eu não o deixara ver? Eis: – Vejam vocês como o futebol é estranho – às vezes maligno e feroz. Mas não quero ter fantasias esplêndidas. O jogo Brasil x Peru, ontem, no Mário Filho, não assustou a gente. Diz o nosso João Saldanha:’O Brasil fez seu jogo, jogo brasileiro’. Vocês entendem? Não há mistério. O brasileiro é assim. Quando um de nós se esquece da própria identidade, ganha de qualquer um. Outra coisa formidável: na semana passada, um craque nosso veio me dizer:’Nélson, é preciso que você não se esqueça: ao cretino fundamental, nem água’. O jogo foi lindo’.
Penso com meus botões que Nélson não precisou esperar pelo início do jogo para escrever a crônica. Com certeza, despachou o texto para o jornal antes da chegada do repórter intruso. Os ‘idiotas da objetividade’ se encarregariam de registrar, nas páginas esportivas, o jogo real. Porque o jogo de Nélson seria lindo de qualquer maneira. E aos cretinos fundamentais? Aos cretinos fundamentais, nem água.
A lista de surpresas nessa tarde no Leme não se esgotaria aí. Quando deu por encerrada a entrevista, Nélson pergunta ao repórter: ‘E então, você me achou muito reacionário?’. Não, claro que não. Em seguida, pega o telefone, liga para a cozinha do Hotel Nacional, identifica-se e faz uma pergunta a um maitre provavelmente atônito:
– Companheiro, aqui é Nélson Rodrigues. Qual é o prato do dia?
Ouve a resposta em silêncio, desliga o telefone. Recolhido ao sossego do lar, no fim de tarde de um feriado, já parcialmente debilitado por doenças que lhe encurtavam o fôlego, Nélson jamais se animaria a ir até o Hotel Nacional para saborear o prato do dia. Mas fez questão de tirar a dúvida com o maitre. Para quê?
As cenas que Nélson Rodrigues protagonizou nesta tarde no Leme já valiam por uma entrevista. Mas o interrogatório ainda iria começar. A fera dispensa ao repórter um tratamento afetuoso: chama-me de ‘meu bem’. Alheio ao eventual cansaço de Nélson, estico a conversa até o limite máximo. Não quero desperdiçar a chance de ouvir de viva voz as tiradas do cronista inigualável. A irmã do gênio é que, delicadamente, interrompe o questionário no instante em que Nélson fez uma pausa para engolir uns comprimidos. Ao autografar o exemplar do livro de crônicas O Reacionário – consultado durante a entrevista – Nélson Rodrigues oferece-me uma dedicatória dúbia: ‘A Geneton, amigo doce e truculento – Nélson Falcão Rodrigues’.
Quase um quarto de século depois (a entrevista foi gravada no dia 1 de maio de 1978) ouço novamente a fita, releio a transcrição da entrevista. Confirmo que Nélson Rodrigues é um caso raríssimo de escritor que falava como escrevia. Só há outro caso: Gilberto Freyre. Transcritas, as entrevistas dos dois em certos momentos se assemelham aos textos que escreviam, o que é uma façanha: a linguagem falada normalmente é mais pobre que a linguagem escrita. Mas a regra – guardadas as naturais diferenças entre o que se fala e o que se escreve – nem sempre valia para os dois.
A entrevista foi embalada por citações ao livro O Reacionário, lançado por Nélson meses antes. Durante toda a entrevista, Nélson fez, repetidas vezes, citações a histórias e personagens descritos em O Reacionário. De vez em quando, entre uma resposta e outra, ele mudava repentinamente de assunto; parecia afogado em divagações. Chegou a reclamar: ‘Eu estou tendo lapsos lamentáveis…’ Assim, frases de O Reacionário complementam, nesta entrevista, as respostas gravadas por Nélson Rodrigues.
Os melhores momentos do diálogo improvável entre Nélson Rodrigues – o gênio que se intitulava ‘a flor da obsessão’ – e o repórter intruso.
***
Quando foi que Nélson Rodrigues descobriu que nascera para escrever?
Nélson Rodrigues – A coisa é a seguinte: escrever para mim, muito mais do que uma decisão profissional, é um destino. Escrever é o meu destino! Não é um caso de opção. Eu só tinha esta opção, uma vez que nasci assim.
O senhor se considera um escritor por vocação?
N.R. – Digo que, no meu caso, eu nem precisava de vocação, porque o negócio era o óbvio – o óbvio ululante! Eu tinha de ser aquilo. Se você chagasse junto de mim e pedisse para eu ter outra profissão, podia até dar dinheiro para que eu tivesse outro destino, não seria absolutamente possível.
O início foi com ficção ou com jornalismo?
N.R. – Eu estava no quarto ano primário na Escola Prudente de Morais. Uma dia, a professora – que mandava a gente desenhar e colorir uma vaca de estampa, para que nós, alunos, fizéssemos em torno da vaca toda uma história – disse: ‘Olhem aqui: Hoje, vocês vão ter de escrever da próprio cabeça. Agora não é mais sobre a vaca pintada’. E então deixou que cada um de nós fizesse o seu drama, o seu projeto dramático.
Duas histórias tiveram o primeiro lugar. A do meu adversário era um a história de um daqueles magnatas que davam passeios. Ele descrevia o passeio de um rajá no seu elefante favorito. E pronto. A minha foi inteiramente diferente. Eu fiz a história de uma moça que era uma fera. Quase uma dama do lotação. Um dia, o marido chega em casa mais cedo e, quando empurra assim (imita o gesto de alguém forçando o trinco de uma porta). Entra em casa, segura o amigo traidor e enfia nele uma faca. Eu tive o primeiro lugar e empatamos. O prêmio ao rajá e ao respectivo elefante era uma concessão ao convencional.
Isto foi a primeira vez em que eu era ficcionista. Todo o meu futuro está aí. Era a história de uma pobre adúltera que morreu de maneira tão melancólica. O traidor morreu também de maneira melancólica: direi, a bem da verdade, que a minha história causou um horror deliciado. Eu era, para todos os efeitos, um pequeno monstro.
Eu comecei com treze anos a trabalhar como jornalista profissional e repórter: esse é o caso. Não teria jeito: eu teria de meter uma bala na cabeça…
Para o senhor – que é considerado um mestre nesse ofício – o que é necessário para retratar, num texto teatral, o mundo desses personagens suburbanos das nossas cidades?
N.R. – Em primeiro lugar, o sujeito tem de ser ficcionista. Precisa ser inteiramente sensível ao primeiro chamamento da profissão. Não basta apenas o gosto. Não é apenas uma facilidade, mas um destino (pronuncia em tom dramático esta palavra).
A inspiração é uma entidade que existe para o senhor?
N.R. – O negócio da inspiração é o seguinte: eu considero a inspiração, ao contrário de Valèrie, que só via a máquina individual do ficcionista. Aquilo é uma coisa que o ficcionista apura com o tempo, desenvolve com a experiência.
Dentre as peças que escreveu, qual a que o senhor considera como definitiva, como a obra acabada do dramaturgo Nélson Rodrigues?
N.R. – O mais importante para mim, até o momento, é o dramaturgo. Volta e meia, me sinto muito perplexo diante de certas manifestações que me induzem ao teatro, embora o teatro tenha um defeito: tenho de vez em quando vontade de fazer certas experiências não teatrais dentro da área de literatura, mas sem ter nada de dramático.
Dentre as peças já escritas, qual é a predileta?
N.R. – Tenho várias prediletas. Eu diria mesmo que são todas as prediletas. Não tenho prediletas (ri). Todas são favoritas. Já pensei muito em querer discriminar qual a minha melhor peça, mas não sei.
Que autores brasileiros de hoje o senhor considera como verdadeiros artistas do teatro?
N.R. – Vou pular esta, porque tenho autores que são inimigos meus. Pior do que o inimigo é o amigo. Um autor que é um amigo tem todos os defeitos…
O senhor diz sempre que ‘a admiração corrompe’. É o caso?
N.R. – É isso, é o caso. A admiração corrompe. O amigo que é o nosso maior torcedor não é o maior coisa nenhuma, porque, ele próprio, não consegue se prender. Então, começa a fazer insinuações e etc…Como eu sinto, evidentemente, o nosso amigo, o inimigo, com a maior facilidade, então eu prefiro o inimigo (ri).
Se o senhor fosse levado a fazer uma hipotética opção entre o teatro e o jornalismo, qual dos dois preferiria?
N.R. – O teatro! E não é um problema de qualidade intelectual não’.
O jornalismo brasileiro continua padecendo de objetividade? – que o senhor considera uma ‘doença grave’?
N.R. – O idiota da objetividade é o jornalista que tem grande fama, todo mundo, quando fala dele, muda de flexão. Mas eu acho o idiota da objetividade um fracasso. Isso num julgamento absoluto. O idiota da objetividade é também um cretino fundamental.
Quais foram as causas da ocorrência desse culto à objetividade que, no conceito do senhor, corresponde à falta de emoção?
N.R. – Pois é, é esse o negócio (ri de novo). É a falta de complexidade do sujeito que diz só a coisa certa ou aparentemente certa e não vê que todo fato tem uma aura. A verdade é que o fato só, em si mesmo, é uma boa droga. Olhe aí (e mostra a crônica ‘A desumanização da manchete’). O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção da população. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy. Na velha imprensa, as manchetes choravam com o leitor. A partir do copydesk, sumiu a emoção de títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do Jornal do Brasil. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver, ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto na manchete. Havia um abismo entre o’Jornal do Brasil’ e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete.
A ausência de um ponto de exclamação numa manchete faz falta ao leitor comum?
N.R. – Faz. Eu digo o seguinte: na minha infância, havia primeiro o’Correio da Manhã’, um jornalaço. E havia A Noite – que vendia muito mais. E era um jornal muito mais amado pelo leitor. A Noite era um jornal amado (acentua a voz, ergue os braços). O sujeito comprava A Noite disposto a ler ou disposto a não ler. Não fazia mal isto. Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismo permitia, por exemplo, que você fosse fazer a cobertura de um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro, uma gaiola e metesse a gaiola com um pássaro lá num certo ponto da casa em chamas. E aí o repórter que não era idiota da objetividade dizia que o nosso querido fotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminava dizendo: ‘Morreu cantando’ (a essa altura, Nélson Rodrigues concede uma entonação teatral a esta frase). O repórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repórter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar para morrer.
A história desse canário fez um sucesso tremendo. Um sujeito queria uma vala especial para o canário, o nosso querido canário cantor. Era lindo. O jornalismo de antigamente era mais ou menos assim. Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da objetividade. A geração criadora de passarinhos parou em Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem sobre o incêndio. Eis o drama: o passarinho foi substituído pela veracidade que, como se sabe, canta muito menos. Daí porque a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira.
Que fatos ou situações brasileiras o senhor contemplaria com um ponto de exclamação numa manchete de jornal?
N.R. – (pensativo, com olhar distante) Deixe-me ver… O negócio é o seguinte: houve num desastre uma coisa atroz que foi uma explosão. Morreram seiscentos sujeitos, segundo as manchetes da ocasião. Todo mundo fazia coro… E outro caso de repórter que não era idiota da objetividade: o sujeito foi fazer a cobertura de um desastre de trem. Geralmente, em desastre de trem, morria gente pra burro. Agora, morre muito menos, não sei por que.
Mas qual é o fato? Deixe-me ver… Ah, o suicídio de Getúlio Vargas foi de uma brutalidade incrível. Uma coisa bonita é que foi uma coisa misteriosa, aí é que não entrou objetividade nenhuma. Morreu, então o cara passa a ser um deus. O que é que você pode fazer contra o cara? Deu um tiro no peito, ia ser deposto. E só porque ia ser deposto ele se mata.
Veja só: no princípio da minha infância havia o pacto de morte. Havia sujeitos que se amavam tanto que já não suportavam mais o próprio amor. Então, o que fazia ele? Propunha à pequena o suicídio, um pacto suicida. Rara era a pequena que duvidava. O lindo era a vontade, o encanto com que esse par de amorosos se matava e cumpria o seu destino. Esse é que é o caso.
Quer dizer então que na história recente do Brasil o suicídio de Getúlio Vargas seria o último grande fato que mereceria um ponto de exclamação do senhor numa manchete de jornal?
N.R. – Olhe: quando eu digo merecer a manchete de jornal… (interrompe, olha para a televisão, comenta a iminência de um gol da seleção brasileira, distrai-se, retoma a conversa de um ponto anterior). Você compreendeu como é o caso? Antes de certo tempo aí, achavam que era uma coisa gravíssima o sujeito se matar, era uma covardia. E nem ele nem a menina acreditavam que isso fosse um defeito, o defeito de se matar: alguém ter o direito de destruir o próprio amor e o amor do outro. Mas os dois se destruíram. O sujeito achava que era uma maneira de coroar o próprio amor.
Agora, a nossa realidade está realmente muito pobre, muito vazia, sem um certo apelo dramático. Ninguém hoje quer morrer, ninguém quer se suicidar!. Ali o sujeito só queria destruir o amor. E aí a sogra ia cuspir na morte do sujeito que lhe matara a filha.
O senhor lê a chamada imprensa alternativa?
N.R. – Alternativa o quê?
A imprensa alternativa, esses novos jornais que têm surgido, o senhor lê?
N.R. – Eu leio de vez em quando mas não faço questão, porque jornal é uma coisa inquietante. O jornal não é o jornal do dia, é o jornal da véspera. Há anos não leio um jornal que não seja rigorosamente o jornal da véspera. Só sai o jornal da véspera e nunca o jornal do próprio dia. São fatos da véspera , figuras da véspera. O fato do dia não existe e ou só existe para rádio e as TVs. No passado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atropelado acabava de estrebuchar na página do jornal. E assim o marido que matava a mulher e a mulher que matava o marido. Tudo tinha a tensão, a magia, o dramatismo da própria vida. Mas, como hoje só há jornal da véspera, cria-se uma distância entre nós e a notícia, entre nós e o fato, entre nós e a calamidade pública ou privada. Servem-nos a informação envelhecida. Nós, jornalistas, é que estamos mais obsoletos, mais fora de moda do que charleston, do que o tango.
Não há nenhum fato do dia…
N.R. – Pelo menos a gente tem essa impressão. O que nós chamávamos antigamente de furo não existe mais. Todos hoje acham que podem viver sem o furo, ao passo que, no meu tempo, quando eu era garoto, um furo de reportagem era tudo. Era o grande momento da carreira.
Agora, para falar de manchete, outro fato formidável foi o seguinte: antigamente, o Largo do São Francisco era o local próprio para o sujeito se manifestar. E quando havia muitos interessados em se manifestar, havia o diabo, o diabo! Um dia, fizeram uma coisa qualquer com o chefe de polícia. E o chefe de polícia – que era um santo – assinou uma portaria proibindo os estudantes não sei de quê nem ninguém sabe. Tudo que houve foi por conta da falta de bossa, da falta de inteligência dos nossos queridos estudantes. E então os estudantes resolveram fazer um ‘enterro’ do chefe de polícia – que era um velho general, sujeito que acreditava em honra, num tempo em que ninguém sabia o que era honra. O general era um santo homem e então achou que aquilo era brincadeira de estudante. E lá foi ele dizendo aos queridos investigadores que não queria machucar ninguém. Nada de bala, nada de punhal, dizia o nosso general. E no dia do ‘enterro’, os estudantes carregavam o caixão, todos levando uma vela acesa. Era uma coisa só, com mil vozes cantando a marcha fúnebre, dando vivas à morte. Dois ou três homens de polícia, furiosos com a questão, simplesmente acharam de matar três estudantes. Aí foi aquela coisa tremenda. Houve então uma manchete, a manchete mortal da imprensa brasileira. Um jornal descobriu uma manchete fantástica (muda a flexão de voz, entusiasmado). A manchete quase derruba a presidência da República, a vice-presidência, o chefe de polícia imediatamente se demitiu, foi embora, não quis mais nada, achando-se culpado. Inventaram uma manchete que até hoje eu gosto de ouvir…
Qual foi?
N.R. – Era assim: ‘Primavera de Sangue’ (pronuncia cada uma das sílabas devagar, como se saboreasse as palavras). A manchete quase derruba o presidente da República, o ministro da Guerra, um negócio terrível. E tudo isso pela beleza que se atribui à manchete. Quero dizer que, se você quiser, com uma frase bem trabalhada, você resolve o caso.
De quando foi essa manchete?
N.R. – Eu era garoto, tenho agora sessenta e cinco anos. E foi na altura dos meus dez anos. Agora, eu sei disso tudo pelas informações do pessoal. O cara que fez esta manchete ganhou uma fortuna, quinhentos mil réis. Só o Rockfeller tinha esse dinheiro na ocasião (ri).
O senhor se interessa por política partidária?
N.R. – Eu não sou ninguém para dizer certas coisas, mas o bom no brasileiro é que ele, sem saber de nada, diz coisas horrendas.
Quais são os políticos brasileiros que o fascinaram ou fascinam hoje? Existe algum nome que o senhor queira citar?
N.R. – (Pausa de alguns minutos, ele está pensando) Num desses momentos, quem é o sujeito? Já começo a ficar amargurado, porque para achar um sujeito, poder dizer um político interessante… Eu acho que só Napoleão Bonaparte! (ri).
O senhor já disse que um dos traços do caráter nacional é o fato de que o brasileiro adere a qualquer passeata. Quais seriam os principais traços do nosso caráter nacional?
N.R. – O brasileiro é um tipo gozadíssimo. O diabo é que o brasileiro não pode se esforçar muito porque, senão, cai na chanchada trágica. O brasileiro é um sujeito que gosta de fazer farra, é um desses que, em pleno velório, põe a mão na viúva. E a viúva é também um caso sério porque este negócio de viúva vocacional é um fato. Há realmente um repertório sensacional de casos. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro. Houve um tempo em que nem o Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil sabia quem era o brasileiro. Mas se um sujeito se apresentava como brasileiro, as pessoas de bem respondiam: ‘Não te conheço!’. E muitos duvidavam que o Pão de Açúcar ou o poente do Leblon fossem brasileiros.
Olhe: houve tempo em que a mulher mais séria do mundo, mais digna, mais respeitável se deixava envolver por um poeta, se abandonava por um soneto. Era outra vida. De repente eu fico olhando: era outra vida, outro homem. E havia a figura do bêbado. Hoje, o bêbado é um sujeito que a psicanálise cura depois de quinze anos de tratamento, quando, aliás, a cura já não adianta mais nada. Eu tinha um tio que se enamorou da minha tia Yayá. E se você perguntar ‘Qual foi o maior homem que você viu no mundo?’, eu acho que esse tio está no segundo ou terceiro lugar, porque o desgraçado, ele amava a minha tia Yayá. Ele já não precisava mais beber para estar bêbado, de alto a baixo. E, com isso, fazia uma considerável economia de dinheiro… Em minha família houve um bêbado indubitável, foi este meu tio Chico. Como sujeito que bebe muito, ele durou pra burro. Morreu com oitenta e tantos anos, sempre bêbado, rigorosamente. Vem desse tio antigo o meu horror ao bêbado. Mas ele me ensinou também uma série de coisas lindas. Por exemplo: o amor. Meu tio Chico me ensinou a amar. Embriagou-se em cada minuto da lua-de-mel. Bebeu antes, durante e depois. Yayá costurava para o casal não morrer de fome. Mas eu, menino, queria amar e ser amado como esse alcoólatra enlouquecido. Era um amor que hoje não existiria. A minha tia Yayá deu graças a Deus que ele tivesse se apagado. Agora ninguém ama mais, eis o que comecei a descobrir desde os treze anos de batalha. Você ponha aí: o meu tio Chico e sua bem amada Yayá. Era um negócio impressionante.
Por que é que o senhor diz, desse jeito, que hoje ninguém ama mais?
N.R. – Meu bem, se a evidência objetiva e espetacular vale alguma coisa, o homem não ama mais. E não ama mais porque o nosso cenário se povoa de sujeitos que são débeis mentais absolutos. O sujeito já não acredita em amor, pra começo de conversa. Não acredita em amor. O sujeito acha que todo mundo é a mesma coisa, e apesar disto, se diz marxista. É uma coisa esterilizante que há na vida brasileira, sobretudo carioca. O carioca é esse sujeito fascinante só na base dos defeitos que tem. Arranja logo casamento e é uma besta. E todo mundo diz: ‘Oh, que coisa, que amor!’.
E eu me lembro de uma menina grã-fina mesmo… Aliás, diga-se de passagem que eu não acredito na existência da grã-fina nem do grã-fino. Dou-lhes este nome. Mas é incrível esse negócio da mulher moderna (fala com a voz arrastada, como se entoasse um lamento). Nunca ela foi tão infeliz e tão pouco feminina. Eu tive um cachorro, o nosso querido Boogie-Woogie, que ficava diante da minha casa amando sua querida cachorra. Ela ficava lá, digníssima, empinada, recebendo as homenagens. Os carros passavam e achavam o cachorro louco. E esse nosso amigo, o cachorro, era muito mais humano que a mulher dos nossos tempos. Elas se meteram a bestas.
O brasileiro continua sendo um ‘Narciso às avessas que cospe na própria imagem’, como o senhor dizia?
N.R. – Continua, continua!
Qual é o remédio para isso?
N.R. – O remédio para isso? Nunca. Para isso não há remédio. Veja que o Brasil ganhou três vezes o campeonato mundial. Se ganhou três vezes, e se o brasileiro não fosse o otário que é, estava tudo salvo, tudo salvo. Ganhou três vezes no futebol, feito como esse ninguém teve e não se conhece isso.
O brasileiro tem virtudes. É bom fazer uma ressalva nesses defeitos que digo. Isso o torna extremamente simpático. Aquela volubilidade… O sujeito ora ama aqui, ora ama ali… Vai lá pra chegada do trem elétrico, vai arranjando os seus amores que, aliás, duram geralmente vinte e um dias, quando duram. Há pessoas que casam e lá na sacristia estão os convidados fazendo apostas sobre a duração daquele casamento. E você pode ficar sossegado porque aquele casamento está inteiramente liquidado antes do começo. Há amores, entendeu, que o sujeito traz consigo e realmente são sinceros. Mas evidentemente, não existe este amor, porque o nosso querido Brasil…
Olhe: em 1958, quando o nosso querido Brasil voltou campeão da Copa, foi o maior futebol que jamais se viu…
Diga-se de passagem que eu considero o brasileiro o maior sujeito do mundo. O europeu já está esgotado. O europeu tem na casa dele pires de mil anos. Escadas de mil anos. Tudo é velho pra burro. Já com o brasileiro é inteiramente diferente. É como se ele estivesse sempre há quinze minutos do fato. Um negócio genial.
(Nélson tinha mudado de assunto; volta ao futebol) Basta o sujeito passar quinze minutos assistindo a um jogo importante desses camaradas. Esses rapazes são uns gênios. Mas o sujeito pensa que isso não é importante e sai, nem liga. Mas quando o negócio vai se transmitir em forma de gorjeta, aí então o brasileiro é um feroz…
O senhor diz também que a paisagem dos países desenvolvidos é triste sem imaginação…
N.R. – É. Como se não bastasse a padronização de caras, corpos, costumes, usos, idéias, valores, há também a estandardização da paisagem. Tudo prodigiosamente igual. É trágica a falta de imaginação da paisagem no país desenvolvido. O desenvolvimento é burro, ao passo que o subdesenvolvimento pode tentar um livre, desesperado, exclusivo projeto de vida.
O diabo é que o Burle Marx, no Brasil, faz o que nem o europeu faria lá. O nosso Burle Marx retira a flor da paisagem. Dizem que o Amazonas é a coisa mais gigantesca do mundo. O nosso Burle Marx só usa uma cor, a verde, e danem-se as outras cores. Fiz esta anotação e ele me disse numa entrevista dele que o teatrólogo Nélson Rodrigues, com certeza, não estava olhando para a paisagem, não viu outra cor, se não a verde. Fui espiar lá e, realmente, o único paisagista do Aterro do Flamengo é o Exército, porque acrescentou, ao Monumento dos Pracinhas, algumas flores, umas dezessete flores. O paisagista foi o ministro da Guerra. O nosso querido Burle Marx, a quem muito admiro, não pôs flores no Aterro, e com a maior tranqüilidade do mundo. Não precisa prestar atenção… O negócio das cores… (Nesta altura da conversa, ele ri e confessa: ‘Eu estou tendo lapsos lamentáveis…’).
Você sabe o que é o sujeito fazer uma bobagem e negar a verdade? Se ele aceitar o erro, está bem. Agora, quando o sujeito fica impune… A impunidade faz de um São Francisco de Assis um canalha. Ele comete um ato e ninguém o prende, ninguém o ameaça, sequer.
É este o caso de Burle Marx. Como ele está faturando cada vez mais, não liga por ter feito um jardim onde só existe uma cor e onde não tem uma violeta. Ele está cada vez faturando mais, e mais fiel aos seus erros, porque descobriu que o erro está muito mais perto do êxito. Já falei pra burro, agora você está satisfeito, não é? E vai querer continuar…
Agora, uma explicação para as causas do rancor e da ironia feroz que o senhor cultiva diante de seus personagens, como por exemplo, ‘as verdadeiras grã-finas’…
N.R. – O que eu acho é que a gente diz ‘grã-finas’ sem achar que elas tenham obrigação de agir como grã-finas. E elas não agem como deviam ser. Maria Antonieta podia dizer: ‘Ah, eu sou grã-fina…’. Por isso, certa vez, o povo estava urrando de fome de fora do palácio e ela disse: ‘Se não tem pão, comam brioche’. Então, a Maria Antonieta é que poderia bradar: ‘E, portanto, eu posso dizer que sou grã-fina’. Ela derrubou um erro, derrubou um regime horrendo. A única grã-fina do mundo é a Maria Antonieta. De então para cá nunca mais vi uma grã-fina. E muito menos uma grã-fina paulista que é gorducha, porque tem dinheiro à beça para comer. E come. Mas não existe. A nossa querida grã-fina precisa de dinheiro. Como precisa de dinheiro, e está furiosa porque não tem, então assume diversas atitudes, como, por exemplo, dizer numa mesa: ‘Na minha casa, só as criadas vêem televisão’. As grã-finas não existem. A única descoberta que eu fiz com as grã-finas foi esta: elas não existem.
E as ‘estagiárias de calcanhar sujo’?
N.R. – Já as estagiárias têm uma existência feroz… (ri, acentua o tom de voz). Sobre nossa querida estagiária, eu vou te dizer o seguinte: é incrível. Meninas que não serviriam para babá nem poderiam entrar num cinema para ver filme francês ou meu próprio filme, a A Dama do Lotação, fazem atitudes que os bocós consideram geniais.
O que assombra na estagiária não é a sua graça pessoal, mais discutível, menos discutível, segundo cada caso. O que me assombra são as suas perguntas e repito: são as perguntas que tornam a estagiária um ser tão misterioso e absurdo como certas imagens de aquário. Uma dessas meninas irreais de redação é bem capaz de atropelar um presidente, um rajá, um gangster ou um santo ou, simplesmente, uma dessas velhas internacionais que embarcam em todos os aeroportos. E perguntar: ‘Que me diz o senhor, ou a senhora, de Jesus Cristo do Nada Absoluto, do Todo Universal ou da pílula?’
Você veja: uma delas foi incumbida de entrevistar um milionário. Ligou para a casa do milionário, disse: ‘Eu queria falar com o Dr. Fulano’. Do outro lado, uma voz responde: ‘Dr. Fulano não está passando bem’. E a menina insiste: ‘Então, pergunta a ele se…’. Desligam e a estagiária disca novamente, não com o dedo, mas com o lápis: ‘Eu queria falar com o Dr. Fulano’. A pessoa diz, desatinada: ‘Minha senhora, o Dr. Fulano acaba de ter um enfarte. Enfarte, minha senhora, enfarte. A senhora quer que eu diga mais do que estou dizendo?’. E a estagiária: ‘Vai lá e pergunta a ele o que é que ele acha da pílula. Eu espero’.
A família do enfartado toda se descabelando… o que, aliás, é raro, porque, no nosso tempo, a família chora muito pouco. O inimigo da morte – que é o clínico – dá logo um furioso calmante.
A estagiária então liga novamente. Dá sinal de ocupado. Continuou, com uma obstinação fatalista. E sempre ocupado. Uma hora depois, atendem. Era uma mulher que ou estava gripada ou chorando. A estagiária diz: ‘Por obséquio, eu queria falar com o Dr. Fulano’. Responde a voz feminina: ‘O Dr. Fulano acaba de falecer’. E a estagiária: ‘A senhora diz a ele que é só uma perguntinha’… e etc.
Agora, há um dado que me parece essencial. As entrevistas das estagiárias têm uma virtude rara: nunca saem. Falo por experiência própria. Quase todos os dias, uma estagiária me caça pelo telefone. E eu falo sobre todos os temas e personalidades. Opinei sobre os Kennedy, João XXIII, o Kaiser, Gandhi. No dia seguinte, abro o jornal e vejo que não saiu uma linha. Mas uma coisa curiosa: não só as estagiárias. Profissionais da melhor qualidade estão seguindo a mesma linha. Posso dizer que a nossa imprensa criou o novo gênero de entrevistas que não serão publicadas nem a tiro.
O que é que o Recife significa para o senhor hoje?
N.R. – Eu gosto do Recife pra burro. Vim de lá aos cinco anos de idade. Fiquei lá até o ano de 1929. Você veja: me dá pena estar pensando no Recife e nunca ir lá. Tenho, em minha memória profunda, um apelo de pernambucano pelo Recife.
O senhor não pensa em voltar?
N.R. – De vez em quando eu faço evocações…(Um dos textos de O Reacionário traz lembranças da cidade) Toda a minha infância tem gosto de pitanga e de caju. Pitanga brava e caju de praia. Ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou arrebatado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais. E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambuco. Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso foi a minha primeira relação com o universo. Ali eu começava a existir.
O senhor não volta ao Recife porque tem medo de avião?
N.R. – Acho chato viajar de avião, não quero voar, a não ser caso de vida ou morte. Tenho horror às viagens. A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil.
Qual foi a última vez que o senhor esteve no Recife?
N.R. – Em 1929. Tenho um sadio horror de avião.
Texto de Geneton Moraes Neto.

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