terça-feira, 24 de novembro de 2020

Virado à Paulista, São Paulo, Brasil



Virado à Paulista, São Paulo, Brasil
Fotografia



Os paulistas comem virado à paulista no segundo dia da semana. O fato até suscita uma brincadeira. É comida de segunda... Nada a ver, porém, com a sua qualidade, por sinal altíssima. É que, no cardápio semanal em São Paulo, adotado pelas casas senhoriais do século 19 e 20, transferido para os restaurantes da cidade nos séculos 20 e 21, oferece-se virado à paulista na segunda-feira. Vantagem prática: na sua elaboração, aproveita-se as sobras do fim de semana. A terça é dia de dobradinha, quarta de feijoada, quinta de rabada, sexta de peixe e no sábado há novamente feijoada. Já se estimou em 500 mil o número de virados preparados semanalmente só na cidade de São Paulo.
Trata-se da mais antiga receita puro-sangue da cozinha paulista. Difícil estabelecer seu paralelo com outros pratos. O virado à paulista surgiu no Brasil Colônia. “Estudei-o bastante”, diz o escritor gastronômico português Virgílio Nogueiro Gomes, autor do livro “Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas da Cozinha Nacional” (Marcador Editora, Lisboa, 2013). “O virado à paulista deve ter influência portuguesa, mas não encontrei receita lusitana que se pareça com ele. Lembra vagamente nosso bife com ovo a cavalo, porém este surgiu mais recentemente, nos cafés de Lisboa.”
A receita atual do virado à paulista manda refogar o feijão cozido em cebola, alho e gordura; acrescentar sal e um pouco do próprio caldo do feijão ou de água; mexer com farinha de milho ou de mandioca; servir acompanhado de bisteca ou costeleta suína frita; linguiça frita; banana empanada e frita; ovo estrelado, de preferência com a gema mole; couve cortada em tiras e refogada na gordura; torresmo feito na hora, ruidosamente crocante; e arroz. Na prática, resulta em uma refeição completa.
O virado à paulista surgiu espontaneamente, para alimentar os bandeirantes. Em suas expedições, eles carregavam junto com lanças, terçados, alfanjes, arcabuzes e bacamartes, farnéis repletos de feijão cozido, geralmente sem sal, para não endurecer, farinha de milho (a de mandioca só começou a ser produzida em escala apreciável, em São Paulo, no século 18), carne-seca e toucinho. Com o chacoalhar da andança, os ingredientes ficavam virados ou revirados (daí o virado). Comiam frio ou aquecido.
O cronista e escritor enogastronômico Sérgio de Paula Santos, no livro “Memórias de Adega e Cozinha” (Editora Senac São Paulo, SP, 2007), lembra que a mais antigo documento sobre o virado data de 1602, quando Nicolau Barreto realizou a famosa expedição aos atuais territórios do Paraguai, Bolívia e Peru. Não faltam informações históricas. O explorador Francisco José de Lacerda e Almeida, em seu “Diário da Viagem Pelas Capitânias…” (Typographia de Costa Silveira, São Paulo, 1841), saboreou o prato em 1788 e o chamou de guisado, qualificando-o de “o melhor do mundo”.
A folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro, em “Na Trilha da Independência” (Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro, 1972), conta que d. Pedro I, na viagem do Rio de Janeiro a São Paulo e vice-versa, durante a qual o futuro imperador deu o Grito do Ipiranga, comeu virado a 17 de agosto de l822 na Fazenda Pau d’Alho, de São José do Barreiro, Vale do Paraíba.
Os bandeirantes levaram o virado para Minas Gerais. Ali o prato se transformou no tutu à mineira. Minas Gerais ainda era uma região a desbravar quando isso aconteceu. Portanto, a receita mineira tem ascendência paulista. Mas há uma diferença entre as duas receitas. “O uso mineiro mais frequente do tutu é com feijão moído, não em grãos, como o virado”, observa o escritor gastronômico paulista Ricardo Maranhão. Ele sustenta que não foi a única influência culinária paulista. O lombo de porco com tutu também seria de origem paulista. Quem duvida?

 

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