Série Vaga-Lume / Os 50 Anos da Coleção que Estimulou o Prazer da Leitura em Milhões de Jovens - Artigo
Artigo
São Paulo, novembro de 1976. Marcos Rey (1925-1999) estava em um supermercado, acompanhado da mulher, Palma, quando, na hora de pagar as compras, flagrou trechos de uma conversa no caixa ao lado.
“O que você está achando dessa novela que acabou de estrear?”, perguntou uma moça, referindo-se à história do trambiqueiro que se passava por milionário para dar um golpe.
O autor de Tchan, a Grande Sacada, embora estivesse de costas, conseguiu ouvir a resposta da balconista: “É boa. Mas é muito lenta!”.
Ao chegar em casa, o autor da tal novela “boa, mas muito lenta” começou a mexer nos capítulos já escritos. Cortou uma cena aqui, mudou um diálogo ali. Quinze dias depois, o telefone de sua casa tocou.
Era Roberto Talma (1949-2015), diretor de teledramaturgia da Tupi. “Pô, Marcos, o que é que houve? Que melhorada você deu na novela!”, elogiou. “A crítica daquela balconista salvou meu emprego!”, brincou o autor em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo de 4 de setembro de 1983.
Nascido Edmundo Donato, Marcos Rey ficou famoso como escritor de livros adultos, como O Enterro da Cafetina (1967) e Memórias de Um Gigolô (1968), e roteirista de novelas e seriados de TV, como A Moreninha (1975) e O Sítio do Picapau Amarelo (1977).
Mas, no começo dos anos 1980, recebeu um convite que mudaria sua carreira: escrever romances infantojuvenis para a Vaga-Lume.
“Houve muita resistência por parte dele”, conta a editora Carmen Lúcia Campos, que trabalhou por mais de 20 anos na Ática, entre a década de 1980 e o início dos anos 2000.
“Nunca tinha escrito para o público juvenil e seus temas adultos eram proibidos para menores”.
Seu primeiro livro na coleção foi O Mistério do Cinco Estrelas (1981). Em apenas 15 dias, esgotou a tiragem de 200 mil exemplares. Logo, vieram outros: O Rapto do Garoto Dourado (1982), Um Cadáver Ouve Rádio (1983), Sozinha no Mundo (1984)...
Não por acaso, é o recordista em títulos da Vaga-Lume: 16, sendo um deles, O Menino que Adivinhava (2000), pela Vaga-Lume Júnior, selo derivado surgido em 1999. Só O Mistério do Cinco Estrelas, segundo estimativa do editor Jiro Takahashi, teria vendido entre dois e três milhões de exemplares.
“O autor precisava cativar seu público até a página sete”, explica ele, um dos idealizadores do projeto. “Se a história demorasse a decolar, as chances de o leitor se cansar dela eram grandes”.
Marcos Rey foi o primeiro autor especialmente convidado para escrever para a coleção. Até então, a Vaga-Lume só publicava títulos que já tinham sido lançados por outras editoras.
É o caso de O Escaravelho do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida (1910-2005). Um dos best-sellers da coleção, foi publicado originalmente pela revista O Cruzeiro, entre 10 de outubro e 26 de dezembro de 1953, e adaptado para o cinema em 2016.
“A Vaga-Lume seguia uma fórmula imbatível de sucesso: livros escritos para o leitor jovem, com personagens jovens, se deparando com questões típicas da juventude. Textos leves, com muita aventura, mistério e humor”, sintetiza Carmen Campos.
“A coleção fez gerações de jovens descobrirem o prazer da leitura.”
O título que inaugurou a Vaga-Lume, há 50 anos, foi A Ilha Perdida (1973), de Maria José Dupré (1898-1984). Publicada pela Brasiliense em 1944, é a recordista da coleção: 5 milhões de exemplares.
Na pesquisa que fez para seu doutorado, À Sombra da Vaga-Lume (2007), com mais de 200 alunos do Curso de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Cátia Toledo Mendonça constatou que A Ilha Perdida é o título mais amado — ou lembrado — da coleção.
“Os textos da Vaga-Lume encantam gerações há 50 anos. Mesmo assim, não eram estudados pela academia. Há preconceito em relação à literatura de entretenimento”, admite a doutora em Letras.
“Vários entrevistados declararam ter começado a gostar de ler por causa da Vaga-Lume”.
No mesmo ano de A Ilha Perdida, a Ática lançou mais três volumes: Cabra das Rocas, de Homero Homem (1921-1991); Coração de Onça, de Ofélia (1902-1986) e Narbal Fontes (1899-1960); e Éramos Seis, também de Maria José Dupré.
Alguns livros, como Éramos Seis, e O Feijão e O Sonho (1981), de Orígenes Lessa (1903-1986), fizeram tanto sucesso que ganharam adaptações para a TV.
Só Éramos Seis já foi adaptada cinco vezes: em 1958, pela Record; em 1967 e 1977, pela Tupi; em 1994, pelo SBT; e em 2019, pela TV Globo.
Cada volume tinha em torno de 120 páginas e trazia um suplemento de trabalho com proposta lúdica. Em geral, a Ática lançava quatro títulos por ano.
Mas houve época em que, dependendo da demanda, foram lançados só dois ou até cinco. O nome do mascote da coleção, Luminoso, foi escolhido através de concurso. O vencedor foi um funcionário da editora que trabalhava no Rio de Janeiro.
Editor da Vaga-Lume entre 1973 e 1984, Takahashi pedia aos autores uma sinopse de três páginas sobre a história que gostariam de contar.
Em seguida, enviava aquele resumo, sem mencionar o nome do autor, para 3.000 alunos das redes pública e particular do Rio, São Paulo e Minas. Sob a orientação de professores, os estudantes avaliavam desde a trama até os personagens. Em alguns casos, davam notas. Em outros, sugeriam ajustes.
Foi assim, conta Takahashi, que Marcos Rey incluiu um personagem cadeirante em O Mistério do Cinco Estrelas e mudou o gênero da protagonista de Sozinha no Mundo. “Se os alunos liam rápido demais a sinopse, era sinal de que o livro era bom. Se demoravam, hummm… algo estava errado”, raciocina Takahashi.
“Um livro é bom quando termina a aula, começa o recreio e os alunos não param de falar dele.”
Ao todo, a Vaga-Lume é composta de 106 livros. O mais recente é Os Marcianos (2021), de Luiz Antônio Aguiar.
“Como a coleção é voltada para o público jovem, as histórias têm que ter muita aventura”, ensina Aguiar, que já tinha escrito Operação Nova York (2000) para a série. “Mas tem que ser aventura mesmo, com boas histórias, daquelas que seduzem o leitor, e bons personagens”.
No auge da coleção, ou seja, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, cada título vendia, em média, 120 mil exemplares. Na pior das hipóteses, emplacava 40 mil.
“Os livros vendiam muito porque o preço era baixo. E os preços eram baixos porque os livros vendiam muito”, explica Takahashi. À época, cada livro da coleção não podia custar mais do que um exemplar de uma revista semanal, como Veja ou IstoÉ.
Com o sucesso de vendas, a Ática lançou, em 1976, outra coleção infantojuvenil: a Para Gostar de Ler, que reunia cronistas como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Rubem Braga (1913-1990), Paulo Mendes Campos (1922-1991) e Fernando Sabino (1923-2004). E, em 1999, o selo Vaga-Lume Júnior, com 25 títulos.
Aos poucos, novos autores foram convidados a integrar a coleção. Mineiro de Guaxupé, Luiz Puntel foi um deles. Quando morava em Ribeirão Preto (SP), se comunicava, por carta, com Marcos Rey, na capital paulista.
“Apesar da deformação nos dedos, era um furacão para escrever”, afirma Puntel, referindo-se à hanseníase que o colega contraíra aos 10 anos de idade. “Escrevia maravilhosamente bem. Morria de inveja dele”, ri.
Para a Vaga-Lume, Puntel escreveu sete livros, de Deus me Livre! (1984) a O Grito do Hip-Hop (2005). Desses sete, considera dois imbatíveis: Açúcar Amargo (1986), sobre boias-frias, e Meninos Sem Pátria (1988), sobre exilados políticos. “Nunca sofri censura da Ática. Sofri do Santo Agostinho, no Rio”, lamenta Puntel.
Em 2018, a direção suspendeu a leitura de Meninos Sem Pátria a pedido dos pais de alguns alunos do sexto ano. Ao colégio, alegaram que o livro “doutrina crianças com ideologia comunista”. A história foi livremente inspirada na vida do jornalista mineiro José Maria Rabelo (1928-2021). Depois da repercussão, a direção da escola evitou comentou o assunto.
“Escrevia meus livros como se fossem roteiros de filmes de ação, com capítulos curtos e diálogos ágeis.”
Logo, colégios do Brasil inteiro começaram a convidar os autores da Vaga-Lume para participar de debates com seus alunos.
Um dos mais requisitados foi Raul Drewnick, autor de oito títulos: de Um Inimigo em Cada Esquina (1994) a A Noite dos Quatro Furacões (2005). Só Marcos Rey publicou mais livros pela Vaga-Lume do que ele.
Os dois, aliás, trabalharam juntos na revista Veja. Foi Marcos Rey que, em 1992, indicou o nome de Drewnick aos editores Carmen Lúcia Campos e Fernando Paixão.
“De dez em dez páginas, nos reuníamos e íamos tocando o projeto, discutindo forma e conteúdo”, recorda o autor.
A princípio, Drewnick recusava todo e qualquer convite para visitar escolas. “Dizia não ter jeito com criança”, entrega Carmen Campos. Até que, um dia, se rendeu e não parou mais.
Não bastasse ter inspiração para novos livros, ainda aprendia o linguajar dos jovens. Num dos colégios, ouviu de um aluno: “O senhor é celebridade?”. Rindo, respondeu que não, de forma alguma.
Mas outro aluno rebateu: “É claro que é! Tem até jatinho”. “Um típico caso em que a imaginação do leitor é muito mais rica que a do mais criativo dos escritores”, ele cai na risada.
Noutra ocasião, Marcos Rey conheceu um aluno do Colégio Magno que se apresentou como filho do editor da Global, Luiz Alves Júnior. Anos depois, os dois voltaram a se encontrar na sede da editora, em São Paulo.
“Não gostava de apertar a mão das pessoas porque tinha os dedos comprometidos. Apesar disso, escrevia muito rápido. Geralmente, à noite e, quase sempre, acompanhado de um copo de uísque”, relata Richard Alves, diretor geral da Global, que relançou 14 dos 16 títulos publicados por Marcos Rey na Vaga-Lume.
A Ática não recebia apenas convites para seus autores visitarem escolas. Recebia também cartas. Centenas delas.
“Sempre fiz questão de responder uma por uma”, garante Sersi Bardari, autor de A Maldição do Faraó (1991), Ameaça nas Trilhas do Tarô (1992) e O Segredo dos Sinais Mágicos (1993).
“Era um tempo sem internet, e-mail e redes sociais. Dava prazer receber e responder a essas cartas. Levá-las ao correio era um dos meus programas favoritos”.
Muitos alunos cresceram e viraram escritores. E hoje se orgulham de fazer parte da coleção que despertou neles o prazer da leitura. É o caso do jornalista e escritor Marcelo Duarte, muito conehcido pela série Guia dos Curiosos.
Autor de cinco títulos, de Jogo Sujo (1997) a Meu Outro Eu (2003), tinha 11 anos quando leu O Caso da Borboleta Atíria (1975), de Lúcia Machado de Almeida. Gostou tanto do livro — “O desfecho é maravilhoso!” — que emendou outros suspenses da autora.
“Eram razoavelmente baratos e fáceis de ler”, elogia. “Li uns para a escola e outros por pura diversão”.
Quando a Ática lançou O Mistério do Cinco Estrelas, Duarte ficou encantado. Decidiu que, quando crescesse, queria escrever igual ao Marcos Rey.
“Tinha um sonho, quase uma obsessão, de, um dia, lançar algo pela coleção que tanta importância teve na minha vida”, explica.
Mas, quando entregou a sinopse de Jogo Sujo, recebeu um tsunami de críticas de alunos e docentes. Alguns reclamaram de personagens mal construídos. Outros, de tramas mal amarradas.
“Fiquei chateado. Achei que não fosse conseguir. Mas reescrevi a história e deu certo”, orgulha-se.
Assim que Jogo Sujo saiu da gráfica, Carmen Lúcia mandou um exemplar para Marcos Rey. Em retribuição, o veterano enviou um exemplar autografado de Gincana da Morte (1997) e parabenizou o novato por ingressar no time da Vaga-Lume.
“Muitos tentaram, mas poucos conseguiram”, dizia a dedicatória. “Nunca fiquei tão emocionado. Guardo esse livro até hoje como troféu”, emociona-se Duarte.
Quem também fala com carinho da Vaga-Lume é Marçal Aquino, autor de quatro títulos, entre eles A Turma da Rua Quinze (1989) a O Primeiro Amor e Outros Perigos (1996).
No finalzinho da década de 1980, ele trabalhava como redator do Jornal da Tarde de São Paulo quando seu chefe, o também escritor Fernando Portela, perguntou se ele não estaria interessado em escrever um livro infantojuvenil para a coleção.
Na Ática, Aquino deu de cara com dois problemas: a sinopse (“Sempre gostei de escrever sem saber muito sobre o livro. É o prazer maior da coisa”) e o prazo (“Um colega estava enfrentando um ‘bloqueio criativo’ e eu teria três meses para entregar o livro”). Mesmo assim, topou o desafio e entregou o manuscrito no tempo estipulado.
Dos quatro livros que escreveu, seu preferido é O Jogo do Camaleão (1992). Como a trama fazia menção ao tráfico e ao consumo de drogas, sofreu restrições.
“Não vi problema em dar uma ‘amansada’ no texto porque não tirava em nada o impacto da narrativa”, avalia. “É a melhor trama que criei para a Vaga-Lume, com direito a um plot-twist radical que nenhum leitor consegue desvendar”, orgulha-se.
O escritor, desenhista e roteirista Rubens Francisco Lucchetti, o R. F. Lucchetti, também precisou fazer ajustes no único texto que lançou pela Vaga-Lume: O Fantasma do Tio William (1994).
Antes de ser lançado pela Ática, o livro foi publicado pela Cedibra, em 1974, e relançado pela Melhoramentos, em 1982.
“Quando foi lançada, a história se passava na Inglaterra e se destinava ao público adulto. Depois, tive que adaptá-la para o Brasil. E, mais adiante, torná-la mais infantil”, relata o autor de 93 anos.
“De todas, prefiro a versão adulta”. Uma curiosidade: Lucchetti criou a história, por volta de 1945, para distrair uma de suas irmãs, Célia, que estava doente, com câncer.
A Vaga-Lume prosseguiu até 2008, quando foi lançado O Mestre dos Games, de Afonso Machado. Doze anos depois, a Somos Educação retomou a coleção, com o lançamento de Ponha-se no Seu Lugar (2020), de Ana Pacheco.
“Quando enviei os originais para a editora, não imaginava que meu livro seria lançado pela Vaga-Lume. Soube depois que aceitaram e fiquei feliz da vida”, confessa a autora.
Baseado no conto O Nariz (1836), de Nikolai Gogol (1809-1852), conta a história de um estudante de classe alta que, certa manhã, acorda sem nariz.
“O mote é absurdo, mas as consequências são reais. Dá oportunidade para alunos e professores debaterem temas atuais, como padrão de beleza, classe social e cirurgia plástica.”
A Somos Educação disponibiliza 68 títulos em seu catálogo, sendo 13 da Vaga-Lume Júnior. E não deve parar por aí.
“Futuramente, pretendemos lançar novos títulos. Queremos manter a coleção viva e dar espaço a mais autores”, adianta Laura Vecchioli do Prado, coordenadora da Somos Educação.
Jiro Takahashi não cabe em si de orgulho por ter ajudado a criar uma série editorial tão longeva e bem-sucedida. Mas lamenta o fato de não ter pensado lá atrás no licenciamento de produtos, como o boneco do Luminoso, o mascote da coleção, por exemplo.
Ou, ainda, na adaptação de filmes, peças e jogos baseados nos livros da série. “Hoje em dia, você encontra de tudo: de álbum de figurinha do D.P.A. (Detetives do Prédio Azul) a parque temático do Harry Potter!”, espanta-se.
“Muitos adultos vêm falar comigo. Uns dizem: ‘Ó, meu vaga-lume favorito é O Escaravelho do Diabo’. É uma coleção que ajudou a formar leitores.”
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