A República (A República) - Manoel Lopes Rodrigues
Museu de Arte da Bahia Salvador
OST - 228x118 - 1896
Como observou José Murilo de Carvalho, o instrumento clássico de legitimação de regimes políticos no mundo moderno é, naturalmente, a ideologia, a justificação racional da organização do poder. Se por um lado, como discurso ideológico, a República permaneceu inscrita no polígono das elites no Brasil, por outro lado, seus partidários encontraram na construção de uma imagética republicana, um eficaz instrumento de manipulação de todo um imaginário social.
A partir deste ponto, este texto tem como objetivo analisar a obra Alegoria da República, pintada por Manoel Lopes Rodrigues (1861-1917) em 1896, como um dos elementos de construção de um imaginário e uma visualidade que correspondesse aos ideais do regime iniciado em 1889.
Murilo de Carvalho destacou também a existência de diversos modelos de república à disposição dos republicanos brasileiros esforçando-se para substituir o governo e construir uma nação. Uma luta pelo poder representada por uma equação complexa de pelo menos três variáveis beligerantes entre si: uma República Militar, articulada em torno de Deodoro da Fonseca (1827-1892) e seus partidários; uma República Sociocrática, representada por Benjamin Constant (1836-1861) a partir de sólidas bases positivistas e uma República Liberal, representada por Quintino Bocaiuva (1836-1912). À esta equação, somavam-se não como atenuantes, as atuações do “jacobinismo’ civil frutificado em torno de Floriano Peixoto (1839-1895) e do ativismo de Antonio da Silva Jardim (1860-1891).
Desde antes 1889, as imagens da República eram abundantemente difundidas nos diversos jornais e revistas da época. Dentre estas, destacavam-se a Revista Illustrada, O Mequetrefe (1885) e o Besouro (1878). Destes periódicos, a Revista Illustrada era, de longe, a que mais dava espaço às imagens da República e foi nela a sua primeira representação personificada na figura feminina, publicada no dia seguinte à Proclamação.
Antes de 1889, a figura da Marianne já aparecia na Illustrada, como por exemplo na charge de Angelo Agostini - “Senhores de escravos pedem indenização à República” - publicada em 09 de junho de 1888. Depois de 1889, a figura da Marianne praticamente não sairia mais das páginas das revistas: alimentada pelos acontecimentos do cotidiano, as representações da República podem ser entendidas como uma espécie de crônica visual, ao menos no sentido que lhe atribui Antônio Cândido (1992).
Além de evidenciar a associação com a imagética revolucionária francesa, a Marianne brasileira cabia representar o cotidiano de um regime que esforçava-se para se fazer ver: dentre várias atividades como representante da Pátria, apareceu vencedora das urnas da Assembleia Constituinte; foi mostrada ao povo como criança em roupas de batismo nas mãos Deodoro nas comemorações do primeiro aniversário do regime; recebeu das mãos de Deodoro, acompanhado de Rui Barbosa, a Constituição de 1890; como amiga - e após um “longo período de desconfiança” - recebeu fraternalmente a República Argentina; foi guiada e amparada pela República Francesa por um caminho florido e coube a ela enfrentar a horda do Conselheiro e de seu séquito de “bufões” em 1896.
Na pintura, suas atribuições não foram menores. Como podemos ver por exemplo, no quadro alusivo à Proclamação da República pintado por um pintor popular baiano : em primeiro plano ela recebe das mãos de Deodoro a bandeira nacional enquanto ao fundo o Imperador Pedro II acenava em despedida ao povo presente na sacada, o Conde d'Eu conduzia as crianças à lancha do Arsenal de Guerra ao lado da chorosa Princesa Isabel que os levaria ao cruzador Parnaíba, depois ao Alagoas e ao exílio. A composição do quadro é totalmente alegórica e não tem nenhum compromisso com a temporalidade dos fatos: importa o que ele representa e não a veracidade dos acontecimentos. À nossa analise, interessa observar a distância que separa a representação da República das demais de seu tempo: uma expressão severa, uma figura não tão jovem, o manto vermelho (uma alusão à França?) no lugar do usualmente verde, e o barrete frígio branco (geralmente vermelho) colocado sobre sua cabeça pela mão da Providência saindo da copa de uma palmeira. No contexto das representações da época, a imagem da República aparece como uma obra de exceção, talvez uma licença poética numa obra de encomenda da qual não dispomos de dados suficientes para avaliar.
Mas o quadro feito da Bahia é notável pelo fato de demonstrar como a imagem da República extravasou, ou tentou extravasar, o círculo estreito dos dirigentes republicanos: o imaginário de uma figura identitária que representasse o novo regime não ficou restrito ao Rio de Janeiro. Como a circulação de periódicos estava limitada às principais províncias, e as obras de arte laudatórias do novo regime ficavam restritas nos ambientes governamentais, a figura da República encontrou um meio de difusão mediante a moeda corrente, conforme podemos identificar no anverso da moeda de 500 Réis por exemplo. A República estava, ao menos em suas exterioridades formais, consolidada.
E é precisamente neste cenário de consolidação formal que inscrevemos a Alegoria de Manoel L. Rodrigues. Encomendada no governo de Prudente de Morais (1841-1902) a obra foi executada em Paris, chegando ao Brasil em 1896 com o pintor que retornava à Salvador.
Aluno do Liceu de Arte e Ofícios da Bahia e discípulo de Miguel Navarro y Canysares (?-1913), Manoel ganhou bolsa de estudo na Europa : entre 1886 e 1895, onde teve a oportunidade de estudar com pintores acadêmicos consagrados, como por exemplo Rafael Collin (1850-1916), León Bonnat (1833-1922) e Jules Lefebvre (1836-1911). Em relação à Alegoria da República, a influência de Lefebvre parece ter sido considerável, principalmente no formato verticalizado da composição e na disposição dos planejamentos.
Evidentemente composta a partir de um modelo vivo, o artista não escapou das representações arquetípicas da época, notadamente as produzidas na Segunda República francesa, que em 1848 promoveu nova ênfase às representações republicanas, principalmente as de Marianne. Para Manoel Rodrigues, imerso no círculo artístico parisiense, estas discussões não passaram desapercebidas.
Apesar disto, a escolha da composição, sugere uma referência a um modelo mais antigo: A República (1794) de Joseph Chinard (1756-1813). A pequena estátua havia sido reproduzida em massa no final do século XVIII para os partidários da Revolução e mostra o ideal clássico, com o boné frígio e segurando as tábuas com a inscrição dos “Direitos do Homem”: além da legitimidade de ser portadora das tábuas da lei, a imagem procurava representar força, segurança e estabilidade. Estas foram as mesmas referências que moveram o pintor baiano à composição da Alegoria. Neste sentido, pouco importava que o pintor estivesse na Europa, na Bahia ou no Rio de Janeiro. A natureza da pintura alegórica teve mais peso nesta composição que o local geográfico da execução.
A República de Manoel Rodrigues foi representada sentada num trono, como Chinard.
A roupa branca significando a paz da qual ela é portadora; mas o braço direito está apoiado numa espada, sinal evidente de que pode usar a força caso necessário, ao mesmo tempo que evoca as lutas à sua implantação. O barrete frígio laureado com ramos de café representa, ao mesmo tempo, seu vínculo com a matriz francesa e a nacionalidade. Aos seus pés as palmas, símbolo da vitória e da consagração e como fundo, uma parede estampada com as insígnias da República e a data da Proclamação. Uma imagem que a afastava de composições como a República de Décio Villares (1851-1931), simplesmente uma Marianne vestida de verde.
Na Alegoria de Manoel Rodrigues, dois elementos no quadro fazem referência com o recente passado imperial: o manto e o trono. O manto concebido por Manoel Rodrigues não é de veludo, o que o afasta da representação imperial. Já o trono remete à insígnia exclusiva da realeza, e no caso, a figura da serpe, um dos elementos que representavam a dinastia dos Bragança. Vista desta maneira, a República estaria sentada no trono ocupado pela monarquia, assumindo seu lugar de direito e seu lugar de prestígio.
Se a imagem da República de Manoel Rodrigues foi concebida para transmitir as sensações de estabilidade, serenidade e força perene, esta imagem não correspondia em nada ao período do governo de Prudente de Morais, que não pode ser descrito como pacífico. Como o primeiro presidente civil, a eleição de Prudente de Morais representou a ascensão de oligarquias agrícolas ao plano nacional, sobretudo as cafeicultoras paulistas e seu governo enfrentou enormes dificuldades: além da feroz oposição dos partidários de Floriano Peixoto e da reorganização do Partido Monarquista, o governo de Prudente de Morais lutava contra as pressões inflacionárias e as sucessivas quedas no preço do café no mercado internacional. Enquanto o ministro da Fazenda Rodrigues Alves procurava equacionar os problemas financeiros decorrentes da forte depressão econômica resultante do “encilhamento” de 1890, o governo enfrentava difíceis questões nacionais e internacionais: tentava pacificar o Rio Grande do Sul, ainda conturbado pela Revolução federalista, resolveu a questão dos limites com a Argentina e reatou as relações diplomáticas com Portugal rompidas em 1984, enfrentou as graves divergências internas no Partido Republicano Federal (PRF) e a sangrenta Guerra de Canudos, iniciada em outubro de 1896 e somente terminada em 5 de outubro do ano seguinte com grande desgaste para o governo. Num quadro conturbado como este, qualquer pretensão de representação do regime republicano deveria certamente assumir uma posição oposta: se o panorama era de fragilidade e tumulto, incertezas e turbulências, a propaganda institucional devia representá-la como a tradução da estabilidade, da firmeza e da inabalável serenidade. Representar não como o governo republicano se encontrava naquele momento, e sim como deveria ser: ao menos enquanto imagem oficial, a República deveria sair do cotidiano acidentado da política para ocupar a eternidade do Panteão.
Manoel Rodrigues, como profissional ao aceitar uma obra desta natureza, estava consciente de que nas artes visuais, a representação de determinadas ideias envolve necessariamente o vínculo a um imaginário que une o artista e o observador. Um discurso que é absolutamente comprometido: local onde as lutas pela afirmação da representação tem tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio, como o entendido por Chartier.
A força e a importância da representação como veiculadora do simbólico - carregando sentidos que, construídos social e historicamente, passam a fazer parte do senso comum e do imaginário coletivo - já encontram-se suficientemente discutidos e creio ser absolutamente desnecessário retomá-las. Colocamo-nos ao lado de Pesavento que, ao resumir estas questões, observa que: A força da representação se dá pela sua capacidade de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade social. As representações se inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade. Decorre daí, portanto, a assertiva de Pierre Bourdieu, ao definir o real como um campo de forças para definir o real. As representações apresentam múltiplas configurações, e pode-se dizer que o mundo é construído de forma contraditória e variada, pelos diferentes grupos do social. Aquele que tem o poder de dizer e fazer crer sobre o mundo tem o controle da vida social e expressa a supremacia conquistada em uma relação histórica de forças. Implica que esse grupo vai impor a sua maneira de dar a ver o mundo, de estabelecer classificações e divisões, de propor valores e normas, que orientam o gosto e a percepção, que definem limites que autorizam os comportamentos e os papéis sociais.
Como representação oficial, a Alegoria da República de Manoel Rodrigues não está inscrita em nenhuma finalidade didática, nem joga com plurissignificações do sensível e evita qualquer ambiguidade de sentido. Nisto reside a força de sua representação. Como obra de arte e, portanto, como objeto exclusivamente estético, o quadro não é destituído de mérito: trata-se de uma imagem que o regime republicano de 1895 produziu para si mesmo, uma espécie de autorretrato de suas aspirações. A este respeito o artista parece ter acertado os objetivos da encomenda e não deve ser destituído de mérito. Apesar disto, a imagem não teve o alcance esperado de uma obra de arte de destinação pública, não produzindo nem reconhecimento nem legitimidade social: ao menos enquanto visibilidade social, não pode ser comparada com obras como o Monumento a Benjamin Constant de Décio Villares, o Monumento a Floriano Peixoto de Eduardo de Sá, ambos no Rio de Janeiro e o Monumento a Júlio de Castilhos de Décio Villares em Porto Alegre. À exceção do seu uso estampado na moeda corrente, seu efeito sobre o imaginário coletivo foi nulo.
Para José Murilo de Carvalho, os obstáculos ao uso alegóricos da figura feminina eram intransponíveis, falhando dos dois lados da mensagem: no plano do significado a representação não correspondia aos idealizadores do regime, no plano do significante, não correspondia à nenhuma mulher cívica envolvida com a República. Nas palavras do autor: A alegoria se dissolvia na falta de uma comunidade de imaginação. Ou se fragmentava em sentidos contraditórios e invertidos. Exemplo de dissolução surgiu em 1902 num episódio da praia do Flamengo, relatado em O Paiz. Uma jovem bonita apareceu na praia em roupa de banho usando um barrete frígio. Sua beleza e o inusitado do barrete provocaram grande ajuntamento do povo. A moça foi aplaudida. Deram-se vivas à República. O sentido dos vivas ficou claro quando um rapaz observou que se a República fosse assim não haveria monarquistas. Outro curioso, referindo-se sem dúvida à conhecida fase de desapontamento dos republicanos da propaganda, suspirou: “essa é a República dos meus sonhos”. Não havia relação possível, nem alegórica entre a moça e a República. A República não era bela, não era desejável, não era a liberdade, a nação. Da parte da moça, o barrete era apenas uma peça de vestimenta, moda, não muito diferente do traje de banho que usava. E os curiosos certamente se perguntavam ao olhá-la: será ela de família (privada) ou pública, Maria ou cocotte? Marianne não era.
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