Museu da Cidade, Brasília, Distrito Federal, Brasil - Eduardo Soares
Brasília - DF
Artigo
A Praça dos Três Poderes, em Brasília, abriga o Museu da Cidade,
edificação tombada local e nacionalmente. O museu-monumento foi projetado por
Oscar Niemeyer em 1958 e inaugurado em 1960 com a finalidade de ser um Lugar da
Memória. Seu acervo é composto de textos em escrita cuneiforme que apresentam
uma narrativa sobre o processo que originou a cidade e os personagens que a
viabilizaram. Por meio do contato com o seu acervo, o visitante tem acesso a
uma narrativa que influencia a avaliação da sua existência enquanto indivíduo e
integrante da sociedade. Assim, esse registro do passado também contribui na
constituição de uma memória individual e coletiva. Objetivando a avaliação do
acervo do museu – que é indissociável da sua arquitetura – o artigo está estruturado
em três partes: o resgate do percurso de projetação do edifício, a reflexão
sobre conceitos de narrativas e, por fim, a leitura e análise dos textos
gravados nas paredes. Os painéis do Museu privilegiam a identificação do
Presidente Juscelino Kubitschek como o principal nome responsável pela mudança
da Capital e a inserção de Brasília em uma longa cronologia que apresenta a sua
construção como fruto de um anseio da nação.
A inauguração de uma cidade planejada marca o fim de um ciclo de
idealização, planejamento, projeto e construção. Em Brasília, nova capital
inaugurada em 1960, houve extenso registro documental da sua concepção, por
meio de reportagens, livros, fotografias, filmagens. Alguns discursos destacam
o desenvolvimento e empreendedorismo daquele momento, outros as condições
precárias de trabalho e moradia dos trabalhadores pioneiros ou os impactos do
custo de construção para o país. Esses relatos contextualizam, sob diferentes
abordagens, a criação dessa cidade que conseguiu materializar o pensamento da
arquitetura e urbanismo daquela época.
O Relatório do Plano
Piloto elaborado por Lucio Costa (1957, p. 18) inicia com
reticências, para em seguida sintetizar elegantemente os antecedentes da
cidade: "[...] José Bonifácio, em 1823, propõe a transferência da Capital
para Goiás e sugere o nome de BRASÍLIA". Já a publicação Por que construí Brasília, de
Juscelino Kubitschek (2000), registra os antecedentes, a construção, a
inauguração e os desdobramentos do processo de implantação da cidade em
volumosa obra de quase 500 páginas. São visões singulares, pois um foi o autor
do plano urbanístico da cidade e o outro o Presidente da República em cujo
mandato a cidade foi construída. Porém, todos os registros os são. As maneiras
de perceber, vivenciar e relatar fazem-se únicas, originando diversas
narrativas.
Em se tratando da narrativa de um evento ou fato histórico, o conteúdo
nunca será óbvio ou único. Para cada versão apresentada existem outras
infinitas possibilidades, inclusive a de se ocultar determinadas passagens.
Análoga à pequena frase de Lucio Costa que introduz o Relatório do Plano Piloto há
em Brasília um pequeno museu-monumento (Fig. 1) inaugurado por Juscelino Kubitschek
no mesmo dia da transferência da Capital (Fig. 2). O desejo dos governantes em
comunicar e registrar suas conquistas e feitos comumente gera artefatos que
sobrevivem ao tempo. Jacques Le Goff (1990, p. 535) entende que
[...] o que sobrevive não é o conjunto
daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que
operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se
dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores.
Estes materiais da memória podem
apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e
os documentos, escolha do historiador.
Localizado na Praça dos Três Poderes, o Museu da Cidade projetado por
Oscar Niemeyer serve de relicário de uma narrativa dos responsáveis pela
materialização da cidade que em 1987 teve o seu Conjunto Urbanístico inscrito
na Lista do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Nas suas paredes externas e internas
estão esculpidos 19 textos relacionados com a criação de Brasília.
O Museu da Cidade tem arquitetura singular: um pequeno monumento que
contém um ambiente penetrável em cujos planos de vedação há textos gravados. O
edifício, tombado pelo Governo do Distrito Federal (GDF) em 1982 e pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2007, serve
de suporte de uma narrativa que intercala dados históricos, culturais e
urbanísticos. O mote desta pesquisa é a avaliação do seu acervo museológico: os
textos inscritos em suas paredes, que são indissociáveis da arquitetura do
museu-monumento. Registrar e avaliar essa narrativa pode ampliar o conjunto de
reflexões sobre o período de construção desta cidade que incorpora as
diretrizes da arquitetura e do urbanismo modernos. Identificar novas fontes e
refletir sobre elas subsidia o processo de educação patrimonial, registra a
memória de uma época e contribui para a preservação dos bens culturais. Afinal,
por meio do contato com o seu acervo o visitante tem acesso a uma narrativa
sobre a cidade que influencia a avaliação da sua existência enquanto indivíduo
e integrante da sociedade. Esse registro do passado contribui na constituição
de uma memória individual e coletiva. E “a memória, como propriedade de
conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de
funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou
informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 1990, p.
423).
A metodologia utilizada para análise das narrativas foi a procura de
mensagens e de nomes de personagens recorrentes nos diversos textos com o
objetivo de identificar a lógica da narrativa existente nos painéis. A pesquisa1 está
subdividida em tópicos que abordam (1) a arquitetura do Museu, (2) o conceito
de narrativas e (3) as narrativas presentes no Museu da Cidade.
Monumentos arquitetônicos têm a intenção de perpetuar uma narrativa
acerca de feitos considerados relevantes por seus construtores. Por meio da
materialização – ou da criação – de um Lugar da Memória as conquistas, vitórias
ou sacrifícios são inscritos na cidade e, por consequência, na memória social.
José Guilherme Abreu entende que um Lugar da Memória pode se cristalizar em
objetos, instrumentos ou instituições, sendo que ele começa “onde o mero
registro acaba. Um lugar de memória é então o registro, mais aquilo que o
transcende: o sentido simbólico ou emblemático inscrito no próprio registro”
(ABREU, 2005, p. 219). Desde a antiguidade, obeliscos, esculturas, arcos do
triunfo e monumentos cumprem esse papel.
O equipamento cultural que assume a função de guardião do Lugar da
Memória é o museu. A Lei nº 11.904, de 14/01/1998, que institui o Estatuto de
Museus, em seu Art. 1º considera museus como
[...] as instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam,
comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa,
educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico,
artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas
ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento (BRASIL, 1998, art.
1º).
Para registrar
a construção de Brasília, Oscar Niemeyer criou um museu-monumento localizado na
principal praça da cidade. O projeto do Museu da Cidade data de 1958, mesmo ano
dos projetos do Palácio do Planalto, Congresso Nacional, Supremo Tribunal
Federal, Ministérios (projeto padrão), Capela Nossa Senhora de Fátima, Casas
Geminadas, Catedral e Teatro Nacional. O projeto de Museu já nesse momento
inicial de propostas para a Nova Capital indica a relevância que foi dada à
existência de um local que abrigaria acervo sobre a construção da cidade. Na
grande velocidade de criação de novos edifícios em Brasília, nem todos os
prédios originaram projetos executivos completos. Segundo publicação do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
[...] muitos projetos de edifícios construídos na época da inauguração
de Brasília não existem mais, foram perdidos; muitos edifícios não foram
construídos exatamente como projetados, visto o curto tempo em que foram
edificados; alguns edifícios, os menores, nem possuem projetos, mas apenas
desenhos (como o Museu da Cidade) (IPHAN, 2009, p. 14).
É por textos em periódicos e por imagens fotográficas da época da
construção que é possível resgatar o processo de construção do Museu. Em artigo
na revista Módulo nº 12, são apresentados croquis, texto e imagem da maquete do
então denominado Museu de Brasília. É
relatado que a construção se destinava a preservar trabalhos referentes à
transferência da Nova Capital. Niemeyer afirma que "a forma plástica desse
monumento, exprimindo por seu arrojo as possibilidades do concreto armado,
atende, também, as características procuradas de sobriedade e beleza"
(NIEMEYER, 1959, p. 36).
O edifício é constituído por um par de vigas que forma um bloco
longitudinal de concreto armado com 5,00 m x 35,00 m de dimensões apoiado em um
cubo que abriga a escada. Internamente o vão, situado entre duas vigas apoiadas
em colunas-parede, receberia iluminação adequada devido à abertura no teto. Na
revista Brasília nº 17 (1958) são apresentadas fotografias da maquete, com a
fachada do museu coberta por croquis inspirados na arquitetura da cidade. Essas
imagens (Fig. 3 e Fig. 4) também se encontram no acervo do Arquivo Público do
Distrito Federal (ArPDF).
As obras do Museu da Cidade de Brasília (Fig. 5 e Fig. 6), sob a
responsabilidade da Construtora Rabello S.A., foram realizadas de agosto de
1959 a abril de 1960. Sobre a inauguração do edifício, ocorrida em 21 de abril
de 1960, Kubitschek relata:
À uma hora da tarde, encerrei o programa das solenidades daquela
histórica manhã, inaugurando o marco que assinalava o nascimento de Brasília
como capital da República. Tratava-se de um bloco de concreto, vestido de
mármore, tendo em seu interior um modelo, da cidade, assim como um repositório
de opiniões, emitidas pelas mais diversas personalidades, sobre Brasília. Ao
monumento se incorporou, por iniciativa da generosidade de meus amigos, uma
escultura, em granito, da minha cabeça e, ao lado, foi gravada uma inscrição
(KUBITSCHEK, 2000, p. 383).
O Museu da Cidade foi objeto de reforma em 1986, 1991 e 1997.
O Museu da Cidade foi objeto de reforma em 1986, 1991 e 1997.
O Museu abriga em sua base pequeno depósito e sanitário de acesso
restrito aos funcionários. Estreita escada leva à sala no pavimento superior
onde está o acervo. Diferente da proposta original, a sala de exposições não
conta mais com iluminação zenital. Por meio do decreto nº 6.718 de 28 de abril
de 1982 do Governo do Distrito Federal (1982) foi realizado o tombamento local.
Em 2007, por ocasião do centenário de Niemeyer, ocorreu o início do processo de
tombamento pelo IPHAN do Conjunto da Obra do arquiteto. O Processo 1550-T-07
foi concluído em 2017 e inclui o Museu da Cidade.
O elegante museu-monumento tem estrutura de concreto armado e
revestimento em mármore branco de Cachoeiro do Itapemerim. Seu principal acervo
é a efígie de Juscelino Kubitschek em pedra sabão de autoria de José Alves
Pedrosa, os três textos esculpidos nas fachadas e os 16 esculpidos na sala
interna. Não há registro da autoria da seleção dos textos que compõe a
narrativa do museu. Registra-se que, diferente de versões preliminares (Fig.
3), não foram executados croquis nas paredes do edifício. Na Fachada Leste,
visível do centro da Praça e direcionada para a alvorada há a célebre frase:
Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em
cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o
amanhã do meu país e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável em seu grande
destino.
Sobre a frase, Kubitschek relata que lhe ocorreu em sua primeira visita
ao local de construção da Nova Capital. Na ocasião, em meio à mata do Gama e ao
lado de um olho d’água, “[...] alguém trouxe-me um caderno, pomposamente
denominado Livro de Ouro de Brasília, e me
pediu que deixasse consignada na sua primeira página minha impressão da região”
(KUBITSCHEK, 2000, p. 53). A frase também está gravada no hall de entrada do
Palácio da Alvorada, inaugurado em 30 de junho de 1958.
Em catálogo lançado pela Presidência da República (circa 2006) após a reforma
do edifício em 2006 o texto, também disponível no site da Presidência, é creditado ao
poeta Augusto Frederico Schmidt. Ele teria sido o ponto alto do discurso que
Juscelino Kubitschek proferiu no lançamento da pedra fundamental da Nova
Capital da República em 2 de outubro de 1956. As diferentes versões do episódio
revelam o quanto pode ser difícil verificar a autoria – e o processo de
elaboração – de um acervo como o do Museu da Cidade.
Segundo nota do periódico carioca Última
Hora (16/03/1960), ao ser perguntado por que resolveu repetir a
frase que já constava no Palácio da Alvorada, ao invés de redigir uma nova,
Kubitschek respondeu que “vou repetir a frase porque a que está gravada no
Palácio da Alvorada poderá ser retirada no futuro... Aqui, entretanto, em Praça
Pública, eles não poderão tirar. Porque o povo fiscaliza...". Desejoso de
registrar em um monumento a sua versão da construção de Brasília, entalhada no
mármore branco, Kubitschek revela o motivo da escolha daquele local – uma praça
pública – para abrigar textos que sintetizam o processo de construção da
cidade.
Esses relatos expressam a versão oficial que a Presidência da República
queria passar para a posteridade. Ou seja, constituem narrativas para serem
inseridas na historiografia da cidade e na memória de seus visitantes.
Narrar é uma atividade intrínseca ao ser humano. A troca de informações
por meio de relatos, descrições e reformulações, seja por meio oral,
iconográfico ou escrito, está presente em todos os povos e culturas. Luiz
Gonzaga Motta entende que “construímos nossa biografia e nossa identidade
pessoal narrando. Nossas vidas são acontecimentos narrativos. O acontecer
humano é uma sucessão temporal e casual. Vivemos as nossas relações conosco
mesmos e com os outros narrando” (MOTTA, 2013, p. 17). Essa capacidade humana
de expressão por meio de uma narrativa ou discurso levou à necessidade de
elaboração de uma técnica que transcendesse o imediatismo da comunicação oral.
Segundo Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz, "a escrita é a contrapartida
gráfica do discurso, é a fixação da linguagem falada numa forma permanente ou
semipermanente. [...] O cuneiforme (do latim cuneus 'cunha',
e forma 'forma') é o sistema
mais antigo de escrita até hoje conhecido" (QUEIROZ, 2005, s.p.). Por
volta de 3.500 a.C. essa escrita em pedra era utilizada pelos sumérios. Textos
e desenhos eram encravados em elementos da arquitetura nos povos da
antiguidade, como os assírios e egípcios.
Também data da antiguidade, do século IV a.C., a obra Poética de Aristóteles que
é considerada a precursora no registro de uma sistematização das narrativas de
então: a epopeia, o poema trágico, a comédia, o ditirambo. Para o
desenvolvimento de fábulas, por exemplo, ele recomendava um único personagem
que deve realizar uma ação com início, meio e fim, para que “não sejam os
arranjos como das narrativas históricas, onde necessariamente se mostra, não
uma ação única, senão um espaço de tempo, contando tudo quanto nele ocorreu a
uma ou mais pessoas, ligado cada fato aos demais por um nexo apenas fortuito”
(ARISTÓTELES, 1996 [330 a.C.], p. 54). A construção de um nexo entre uma
simultaneidade de fatos e eventos com desfechos em aberto é, até hoje,
característica de quem escreve uma narrativa histórica. Para Paul Veyne (1998,
p. 18),
a história é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso. Já
que é, de fato, uma narrativa, ela não faz reviver esses eventos, assim como
tampouco o faz o romance; o vivido, tal como ressai das mãos do historiador,
não é o dos atores; é a narração, o que permite evitar alguns falsos problemas.
Como o romance, a história seleciona, simplifica, organiza, faz com que um
século caiba numa página, e essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto a
da nossa memória, quando evocamos os dez últimos anos que vivemos.
Veyne complementa que a narração pode ser realizada em primeira ou
terceira pessoa e que enseja diferentes percepções de valor. Sucesso ou
insucessos, fatos relevantes ou irrelevantes, são escolhas do narrador. Daí
haver espaços para várias narrativas de um mesmo fato – como a explosão de um
vulcão – ou evento – como uma batalha. Ao historiador cabe jogar luz sobre
alguns acontecimentos do passado, interpretá-los e apresentá-los à sociedade
atual e futura. Faz parte do seu ofício destacar alguns fatos considerados
significativos e silenciar sobre tantos outros, relegando-os ao esquecimento. E
também explorar fatos e eventos que, por algum motivo, não receberam atenção
por parte de pesquisadores de outras gerações. Porém, o modo de redigir pode se
assemelhar às obras de ficção.
Paul Ricoeur se dedicou a um percurso filosófico sobre a função
narrativa e a experiência humana tanto na história como na ficção,
analisando-as em separado. Mas também vê convergências nessas duas vertentes.
Para ele, “o frágil rebento oriundo da união da história e da ficção é a
atribuição a um Indivíduo ou a uma comunidade de uma identidade específica que
podemos chamar de Identidade narrativa” (RICOEUR, 1997, p. 424). Ao narrarmos,
elementos da vivência pessoal, da cultura, da história e da ficção naturalmente
se mesclam. Com isso a afinidade de pessoas, grupos ou sociedade podem gerar
narrativas semelhantes.
Na pesquisa histórica, fatos e eventos interessantes são descobertos e
reinterpretados permanentemente. Porém, ao redor desses achados, muitas vezes
há um vazio de informações que, para construção de narrativa coerente, requerem
a criação de uma hipotética contextualização cuja comprovação nem sempre é
possível. Seria então a criação de uma ficção? Avançando um pouco nessa lógica
Ricoeur (1997, p. 428) afirma:
[...] poder-se-ia dizer que, na troca de papéis entre a história e a
ficção, a componente histórica da narrativa sobre si mesmo puxa esta última
para o lado de uma crônica submetida às mesmas verificações documentárias que
qualquer outra narração histórica, ao passo que a componente ficcional a puxa
para os lados das variações imaginativas que desestabilizam a identidade
narrativa. Nesse sentido, a identidade narrativa não cessa de se fazer e de se
desfazer [...].
Imersa em narrativas ficcionais, a humanidade ao narrar seus
acontecimentos assume papéis que na ficção cabem a personagens de diferentes
vertentes. A ficção influencia o modo como cada um se vê e se expressa no
mundo. Sobre as narrativas triviais da literatura, que envolve gêneros como
dramas, tragédias e novelas, Flávio René Kothe entende que “sob a aparência de
milhões de variantes em nível de estrutura e superfície, a narrativa trivial
encena, em sua estrutura profunda, o ritual de eterna vitória do bem sobre o
mal, definidos a priori,
maniqueisticamente, sem maior discussão” (KOTHE, 1994, p. 7). Na comunicação
entre interlocutores – onde cada um se apoia em uma identidade construída sobre
narrativas próprias – a narrativa é uma constante criação e reinterpretação da
realidade. Muitas vezes a percepção do que é baseado em fatos ou em ficção não
é um consenso, pois essa distinção pode não ser tão evidente. Tratando-se da
construção de uma nova cidade no então pouco habitado Centro Oeste brasileiro,
a quantidade de versões sobre as conquistas e infortúnios da transferência foi
grandiosa.
Brasília foi construída sob a empolgação e extenuante trabalho de seus
apoiadores, mas também sob críticas de quem desconfiava de sua exequibilidade.
Naquele fim da década de 1950 havia curiosidade sobre o desbravamento do
cerrado e a materialização de um urbanismo e arquitetura inovadores. A
construção foi amplamente registrada por reportagens, livros, fotografias e
filmagens. Oscar Niemeyer, funcionário da Companhia Urbanizadora da Nova
Capital do Brasil (NOVACAP) e principal arquiteto, além de projetar e
acompanhar as obras também respondia aos questionamentos, vindos principalmente
da então capital, Rio de Janeiro, sobre o partido adotado nos edifícios. Em um
relato do arquiteto publicado 11/03/1960 no periódico carioca Última Hora, intitulado Niemeyer responde às
críticas sobre arquitetura de Brasília, há o seguinte depoimento do arquiteto:
Para uma coisa certas críticas são úteis. Construímos na Praça dos Três
Poderes um monumento que vai documentar todos os obstáculos e incompreensões
surgidos durante a construção de Brasília. Esses obstáculos e incompreensões
ajudam melhor a compreender, na medida precisa, o valor da obra realizada pelo
Presidente Juscelino Kubitschek. Ali, no monumento-museu, essas críticas vão
ser conservadas. E o tempo nos dirá depois se são justas ou se são o que eu
penso delas (ÚLTIMA HORA, 1960).
Ao recordar a
intensa agenda de eventos do dia da inauguração da cidade, Kubitschek cita que
o Museu da Cidade “destinava-se a guardar todos os documentos referentes à
epopeia de Brasília. Tudo quanto se escrevera a favor ou contra a nova capital
já ali estava depositado, aguardando o julgamento frio da História”
(KUBITSCHEK, 2000, p. 388). Alvos de dúvidas sobre a pertinência e capacidade
operacional da mudança da capital, os responsáveis pela criação da cidade
acharam por bem, desde o momento de sua inauguração, registrar uma narrativa
histórica sobre os eventos – e supostas incompreensões – que a cercaram. Esses
relatos estão gravados em pedra no Museu da Cidade.
Os textos que
compõem a narrativa do Museu da Cidade estão esculpidos, em letras de caixa
alta, no mármore branco das fachadas e das paredes internas do edifício. Na
documentação historiográfica não foi localizado o nome do responsável pela
seleção do acervo. A análise dessas narrativas foi realizada a partir da
procura de recorrências nas mensagens dos diversos textos, da identificação da
repetição de nomes de alguns personagens, e da verificação se elas contêm o
registro das oposições e resistências à construção da cidade, como frisaram
Kubitschek e Niemeyer. Com isso foi possível avaliar a mensagem que o conjunto
museológico transmite. O acervo se divide em dois grupos: o da área externa
(Fig. 7) e o da área interna à edificação.
Na área externa, a Fachada Leste está direcionada para a Praça dos Três
Poderes, podendo ser considerada a face principal, pois, inclusive, é nela que
está inserida a efígie de Juscelino Kubitschek. Nesta fachada, junto à
escultura, há texto, creditado aos pioneiros, que homenageia o presidente. Ao
lado há a repetição da frase inscrita no hall de entrada do Palácio da
Alvorada. Na Fachada Oeste, encontra-se uma cronologia indicando seis datas. A
primeira se refere a 1789, citando os Inconfidentes, e a última é sobre o dia
de inauguração de Brasília e do próprio Museu.
A frase em homenagem a Kubitschek, junto à escultura, é de mensagem
dúbia, pois não esclarece se está relacionada à efígie ou ao edifício como um
todo. Pode ser interpretada que a efígie é uma homenagem dos pioneiros ao
Presidente, ou o próprio museu. Esse conjunto com três textos destaca a
importância do então Presidente, cujo nome é repetido cinco vezes. Além dele o
único nome citado é o do Deputado Israel Pinheiro da Silva. A menção à
Inconfidência Mineira situa Brasília como desdobramento do pensamento de
interiorização da capital registrado ainda no Século XVIII. Nas fachadas
externas não há referência aos opositores do projeto de mudança da capital, nem
das dificuldades enfrentadas para a construção de Brasília. As três mensagens
são distintas: homenagem à Kubitschek, frase do Presidente e cronologia.
Na área interna (Fig. 8) do edifício há 16 textos numerados, que
constituem o acervo museológico permanente. Desde a reforma de 1986 também
estão transcritos para braille. Além deles, há somente pequena vitrine
utilizada para a exposição temporária de objetos.
O Texto I inicia com “ANTE O
PERIGO EXTERNO E PARA PRESERVAR A INTEGRIDADE DA CAPITANIA NA UNIDADE DO PAÍS
[...]”. A primeira data mencionada é de 1761, ano em que o Marquês de Pombal
idealiza erguer uma nova capital. O Texto
II trata da Inconfidência Mineira e evoca frase atribuída a
Tiradentes, desejoso de que houvesse a mudança da capital e que nela houvesse
locais para estudos, como em Coimbra. No Texto
III há resgate das notas de José Bonifácio de Andrada e Silva sobre
a interiorização da Capital e de sua primazia de sugerir o nome “Brasília”.
O Texto IV registra o desejo
de mudança do Governo Imperial para um local longe dos portos de mar. No Texto V há a continuação da
cronologia da defesa da interiorização da Capital, que se encerra com a
Constituição Federal de 1946, que “CONSAGRA EM DEFINITIVO A DECISÃO QUE
AGUARDARIA O EXECUTOR”.
A campanha eleitoral à presidência de 1955, quando o então candidato
Kubitschek trava “VIVO DIÁLOGO COM O POVO” é o tema do Texto VI. Nele há o
registro da intenção do candidato em cumprir a Carta Magna integralmente,
inclusive no seu propósito de mudança da Capital. O Texto VII registra a
mensagem do presidente Kubitschek ao Congresso Nacional iniciando os trâmites
legais para a construção da Nova Capital. A constituição da NOVACAP e o Edital
para o Concurso do Plano Piloto da cidade é o tema do Texto VIII.
No Texto IX há trechos do
plano de Lucio Costa, que concebeu uma cidade "NÃO APENAS COMO URBS, MAS
COMO CIVITAS". O Texto
X reproduz mensagem ao povo brasileiro enviada pelo Papa Pio XII.
O Texto XI destaca a lei que
fixa a data de mudança da Capital. No Texto
XII há relato de Niemeyer que cita a luta “CONTRA A OPOSIÇÃO OBSTINADA”.
O Texto XIII apresenta uma
exaltação de Kubitschek aos candangos – os trabalhadores imigrantes que
construíram a capital. O Texto
XIV, também com a assinatura do Presidente, registra trecho do discurso
de inauguração de Brasília. Nos Textos
XV e XVI, por
fim, há mensagem enaltecendo Kubitschek “PORQUE SUPEROU COM VIGOR INDOMÁVEL
TODAS AS CRÍTICAS ICONOCLASTAS”. O conjunto dos textos finda com o apelo que
seja explicado aos filhos o motivo da existência dessa “[...] CIDADE SÍNTESE,
PRENÚNCIO DE UMA REVOLUÇÃO FECUNDA EM PROSPERIDADE. ELES É QUE NOS HÃO DE
JULGAR AMANHÔ.
O conjunto dos 16 textos da parte interna do Museu da Cidade repete o
nome de Kubitschek cinco vezes. Além dele, são nomeados mais 19 personagens,
sendo que dentre eles somente o de Niemeyer é repetido duas vezes.
Classificando os textos por conteúdo verifica-se que seis citam realizações e
discursos do Presidente, cinco relatam os antecedentes da Nova Capital, e dois
são de homenagens à Kubitschek. Completa o conjunto a apresentação de trecho do
plano piloto de Lucio Costa, a síntese da experiência em Brasília por Oscar
Niemeyer e a mensagem do Papa Pio XII.
Considerando todo o conjunto dos 19 textos, localizados nas fachadas e
paredes do interior do Museu, percebe-se que a categoria que reúne maior número
de textos é a que enaltece e registra os êxitos do Presidente Juscelino
Kubitschek. A segunda categoria, em termos quantitativos, é a que reúne o
registro dos antecedentes de Brasília. Somente em dois trechos há referências
às dificuldades impostas pela oposição política à realização da mudança da
Capital.
Como é característico nos relatos históricos, os textos – tantos
internos quantos externos – inscritos no Museu da Cidade resumem um longo
trecho da história de Brasília, e do Brasil, em uma narrativa criada a partir
de quem o concebeu: no caso a Presidência da República. Os textos do Museu
privilegiam a identificação de Kubitschek como o principal nome responsável
pela mudança da Capital e a inserção de Brasília em uma longa cronologia,
respaldada por várias Constituições, que trata a sua construção como fruto de
um anseio da nação.
Depois da inauguração da cidade vários presidentes ocuparam o Palácio do
Planalto, uns com mais, outros com menos cumplicidade com o povo. Os
descendentes da geração que testemunhou o surgimento da cidade contam com
inúmeras versões, em diferentes formatos, para a construção de Brasília. Porém
a narrativa que permanece acessível a quem visita a Praça dos Três Poderes é a
do Museu da Cidade. Afinal, como afirma Aleida Assmann, locais desse tipo podem
“tornar-se sujeitos, portadores de recordação e possivelmente dotados de uma
memória que ultrapassa amplamente a memória dos seres humanos” (ASSMANN, 2011,
p. 317). Com isso, conforme pretendia Kubitschek, essa narrativa vai
sobrevivendo ao esquecimento.
O Museu da Cidade tem a característica peculiar de ser um
museu-monumento – tipo de edificação escassa na contemporaneidade. Os artigos
em periódicos e os registros iconográficos gerados no momento de sua projetação
e construção foram imprescindíveis para a criação de um conjunto documental que
possibilita o resgate do seu processo de criação e contribui para a transmissão
da memória sobre os primórdios da cidade.
A elaboração do projeto do Museu no mesmo ano que outros edifícios-chave
da cidade revela a preocupação dos construtores de Brasília em criar um Lugar
da Memória que registrasse o processo de mudança da Capital. É interessante
observar que a opção pelo modo de apresentação de seu acervo museológico siga o
modo mais antigo de escrita: a cuneiforme. Esses textos esculpidos em suas
paredes, como nos monumentos e obeliscos milenares, registram a grande saga que
foi a construção de Brasília na praça que é ponto de encontro e de
manifestações da metrópole e também local de maior simbolismo político do país.
Narrativa – à vista do povo – sobre a criação de uma cidade que é Urbs, Civitas e Patrimônio
Mundial da Humanidade.









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