sexta-feira, 6 de março de 2020

A Dama de Shanghai 1947 - The Lady From Shanghai






























A Dama de Shanghai 1947 - The Lady From Shanghai
Estados Unidos - 87 minutos
Poster do filme


Dramas e suspenses investigativos são os gêneros mais vistos nos filmes noir, e A Dama de Shangai não foge disso, se apoiando numa relação amorosa inquieta que move todos os acontecimentos da trama, que instiga o expectador e levanta seus personagens com suas intenções e objetivos. O uso da narração do protagonista (outra característica do estilo) se mostra envolvente, importante para expor os sentimentos do personagem e suas decisões. A moralidade de todos é questionada de forma singular, e consegue dar ao filme um clima ambíguo, mas eficaz nas sensações causadas na plateia.
Michael O’Hara (Orson Welles) é um marinheiro que vê a bela Elsa Bannister (Rita Hayworth) passeando de charrete no parque. Ele a ajuda quando ela é assaltada por três homens, levando-a até seu carro. No dia seguinte Michael recebe a visita de Arthur Bannister (Everet Sloane), marido de Elsa e um advogado criminalista consagrado, que deseja que ele trabalhe em seu iate durante uma viagem que o casal fará. Inicialmente relutante, Michael aceita o trabalho devido à atração que sente por Elsa. Na viagem também está George Grisby (Glenn Anders), sócio de Arthur, que oferece a Michael US$ 5 mil para que ele o mate, algo que deixa Michael confuso, mas não o suficiente para recusar a proposta.
A partir desse momento, um mistério gigantesco ronda os passos de Michael, que confiante na ideia de George decide não se preocupar. O filme expressa a falsidade das pessoas e como suas relações podem ser baseadas no dinheiro, no romance e na traição. Orson Welles (também diretor e roteirista) interpreta um ótimo protagonista, enquanto Rita Hayworth mais uma vez se mostra uma femme fatale perfeita em todos os sentidos, desde seu ar sedutor até seu olhar dúbio e sua voz vaga. A atriz prova que mesmo depois do filme que marcou sua carreira com o personagem homônimo (Gilda), ainda soube interpretar outras personagens menos sorridentes como a loira Elsa. Os coadjuvantes Sloane e Anders (Arthur e George) agradam quando aparecem, e mantêm a tensão da história sigilosa por trás da narrativa.
Ângulos e movimentos incomuns de câmera se fazem curiosos, e caracterizam a direção de Orson Welles como uma das melhores que o cinema possui, sendo o homem responsável por outros clássicos como Cidadão Kane (1941) e A Marca da Maldade (1958). O roteiro surpreende nos diálogos e no enredo, portanto demandam uma grande atenção do público, que de qualquer forma não conseguirá nem piscar diante do desenrolar dinâmico do terceiro ato. A obra é uma aula de iluminação, pois sabe bem brincar com um jogo de luzes impressionante, que além de ser belo visualmente, conduz as emoções dos personagens.
Injustiça. Outro elemento que move os sentimentos do expectador, que por sua vez passa a torcer pela vida de Michael, embora questione sua moralidade. A busca pelo que é justo deixa-nos a sensação de que somos todos vítimas dos desejos e das armadilhas, e que podemos lutar com todas as forças para que as coisas corram conforme desejamos, mas nem sempre isso se concretiza. A paixão é uma arma poderosa, beneficia o sedutor e prejudica o seduzido, que passa a perder a razão e agir com o coração (isso fica explícito com a fala de Michael logo no começo do filme). Saber elaborar um suspense que cerque o protagonista e force o público a se sentir encurralado junto com o mesmo não é simples, e é preciso valorizar roteiros que alcançam tal proeza.
A Dama de Shangai é uma obra valiosa que temos a nossa disposição, seja em mídias físicas ou digitais, mas o relevante é a obrigação que todos possuímos em conferi-la. O filme estimula nosso ceticismo, questiona nosso senso de justiça, e acima de tudo nos mostra como o mundo pode ser corrupto. A cada esquina existem pessoas que podem ser persuasivas, perigosas, com más intenções e de boa aparência. Que saibamos escolher nossos passos com cautela, e que a confiança seja nossa aliada, não inimiga. Finalizo esse texto relembrando da memorável cena dos espelhos em que Michael e Elsa se encontram logo nos últimos minutos do filme. O suspense dessa sequência é tão bem construído que merece jamais ser esquecido por nós cinéfilos, que apreciamos uma boa história de crimes passionais, e também pelos cineastas, que devem sempre se inspirar nas temáticas clássicas e adaptá-las de maneira original para nosso cinema contemporâneo.
Durante uma caminhada noturna, o marinheiro Michael O’Hara (Orson Welles) cruza com a bela Elsa Bannister (Rita Hayworth) e acaba se apaixonando por ela. Ao se despedirem, logo após ser salva de um assalto, Elsa propõe a O’Hara um trabalho na viagem de barco que fará com seu marido, o renomado criminalista Arthur Bannister (Everett Sloane), algo que irrita o marinheiro por descobrir que a jovem já era casada. Mesmo após recusar a proposta inicialmente, o marujo é convencido quando, no dia seguinte, o próprio Arthur vai a seu encontro para convidá-lo pessoalmente. O que não passava por sua cabeça, no entanto, era que acabara de entrar no meio de uma grande intriga de crimes. Essa é a trama de A Dama de Xangai, dirigida pelo brilhante Orson Welles.
Com a construção interessante de um romance proibido, que torna-se tão encantadora por conta do imenso talento de seu realizador, Welles prende o público desde o início, que pode pegar-se torcendo para um final feliz entre os recém apaixonados quase sem perceber. O mais fascinante da obra, porém, fica a cargo das discussões e embate de visões de mundo que o diretor aborda durante boa parte do longa, convidando-nos para um exercício reflexivo pessoal e social.
Welles evoca em Michael alguém que vê pouco ou nenhum sentido na busca desenfreada por bens materiais e poder, quase dono de enorme repulsa a esse estilo de vida seguido pelo casal Bannister e George Grisby (Glenn Anders), amigo do casal e sócio de Arthur Bannister. Além da exposição de ideias contrárias durante os diálogos, detalhes como as profissões, comportamento das personagens e até os locais ajudam a formar essa clara distinção de como levar a vida. Enquanto Michael é um marinheiro calmo, centrado, pouco extravagante e que pode ser encontrado facilmente nas docas com outros marujos, Arthur e George são dois criminalistas bem sucedidos, muito mais excêntricos, abusam do álcool e podem ser encontrados em algum iate particular. Elsa, apesar de aproveitar do dinheiro de seu marido, apresenta uma personalidade mais ambígua, como se influenciada tanto pela paixão que nutre por Michael quanto pela vida que dispõe ao lado de Arthur.
As reflexões continuam quase sempre fomentadas por Michael. Em determinado momento, enquanto conversa com George, ele revela que fez parte da luta contra o ditador espanhol Francisco Franco, o que causa certo incômodo entre ambos, já que seu interlocutor lutou ao lado dos franquistas durante a guerra. O marinheiro também faz uma analogia sobre tubarões quando junta-se aos outros três em um piquenique. Ele compara a situação de matança e morte entre os predadores aquáticos que presenciou enquanto pescava em Fortaleza com o casal Bannister e George (e todos que possuem um estilo de vida semelhante, evidentemente), e finaliza dizendo que nenhum dos tubarões sobreviveu àquela selvageria. A mensagem não poderia ser mais clara: a sede desenfreada por poder levaria todos ao precipício.
Vale destacar também a utilização das cores das roupas de Michael e Elsa ao longo do filme. Sim, A Dama de Xangai é um filme em preto e branco e é exatamente por essa razão que vejo ainda mais necessidade em destacar esse ponto. Welles tinha à disposição quase que somente o preto e o branco para demonstrar os sentimentos das personagens, no entanto não pareceu problema. Ao longo de toda a metragem podemos notar situações em que o casal proibido veste trajes da mesma cor quando estão em completa sintonia, mas é necessário a troca de uma única peça para que tanto as cores percam sua harmonia quanto a sincronia dos dois deixe de existir. Talvez a cena que melhor exemplifique é quando Michael está controlando o iate e Elsa se aproxima, ambos com trajes inteiramente pretos, e se desagrada com um comentário dele sobre amor. No mesmo instante, ela coloca um sobretudo completamente branco e demonstra sua irritação em suas feições, comprovando a quebra de sintonia.
A Dama de Xangai é uma ótima obra e essencial dentro da filmografia de um dos maiores diretores de todos os tempos. Ao abordar confrontamento de ideias e debates interessantes sem abrir mão de uma narrativa bem construída e amarrada, o filme consegue ser duplamente encantador e prende o espectador até o desfecho da rede de intrigas com uma cena final arrebatadora. Um excelente exemplo da grandiosidade e talento de Welles.
Talvez não devesse ser surpresa, mas “The Lady from Shanghai” foi mais um dos trabalhos de Orson Welles altamente editado, regravado e modificado pelo estúdio antes de seu lançamento. Ao contrário de “Touch of Evil“, vale dizer, o conteúdo cortado não foi encontrado nem as anotações do diretor a respeito de sua visão original. O que se tem é apenas a versão revisada pela Columbia Pictures e Harry Cohn, o produtor. A obra saiu com mais de um ano de atraso no mercado americano e foi inicialmente mal recebida. Mas há motivo para não gostar do que se vê aqui? Apesar de um pouco confuso por vezes, esta é outro trabalho digno de um dos maiores diretores de todos os tempos.
Michael O’Hara (Orson Welles) é um marinheiro sem muitas ambições além de fazer suas caminhadas noturnas e ter dinheiro o bastante para gastar em bebida e cigarro com os amigos. É uma vida simples e sem muita variedade, exceto pelas eventuais viagens a trabalho que o levam para portos em todos os continentes, lugares em que ele adquiriu a tal experiência de vida que o difere de vários outros marinheiros ignorantes. Mas a mesmice muda quando ele cruza o caminho de Elsa (Rita Hayworth) por acaso. Deste ponto em diante, Michael se encontra num emaranhado de mistério e perigo em que nunca esperava entrar.
O assunto facilmente rende conteúdo para preencher um livro inteiro. Não obstante, a carreira de Orson Welles é um exemplo um tanto peculiar entre tantas histórias diferentes que acabam compartilhando alguns elementos; tal como vários atores da Era de Ouro de Hollywood que começaram suas carreiras no Vaudeville ou atores britânicos com origens em companhias de teatro clássico. Welles, por outro lado, começou no topo com “Citizen Kane” e foi descendo de lá ao longo dos anos, como ele mesmo diz em “F for Fake“. “The Lady from Shanghai” teve inspirações fortes no estilo documental de filmagem, que seria traduzido em um filme quase totalmente gravado nos locais idealizados. Mas não, o produtor ficou insatisfeito com essa abordagem e exigiu regravações feitas em estúdio, onde iluminação, som e direção poderiam ser mais firmemente controlados. Isso depois que as cenas já tinham sido gravadas no México e na Califórnia, por exemplo.  Eventualmente, um filme que tinha sido entregue antes do prazo e abaixo do orçamento foi atrasado e teve custos a mais do que os planejados. Quem levou a má fama de gastar mais do que deveria, é claro, foi Welles.
Mas de que tudo isso importa no final das contas? Novamente é possível notar parte dessa influência negativa nas partes mais esquisitas de “The Lady from Shanghai”, se posso chamá-las assim. Em econômicos 87 minutos, a história conta o essencial para que o espectador consiga desvendar o mistério acerca de indivíduos imersos em segundas intenções e ambições invisíveis. É possível ver quem estava contra quem, qual era o plano e onde este deu errado; os ingredientes essenciais para que a experiência faça sentido e deixe o público satisfeito. Sendo justo, a história e suas viradas incríveis não deixam impressões fracas. Mesmo assim, é possível enxergar uma margem para crítica na narrativa, que com certeza não está absolutamente dentro do espectro da clareza e da objetividade. Não seria surpresa ver alguém que se perdeu na metade e sentiu que as soluções não se apresentam de forma totalmente natural. Tenho um forte palpite de que parte do conteúdo cortado e modificado melhoraria um pouco esse quesito.
Só não posso dizer que concordo com aqueles que classificam a trama como complexa e confusa, tratando-a como um dos problemas de “The Lady from Shanghai”. Por mais que não se gaste muito tempo com uma exposição calma dos fatos, ao menos sua execução compensa. Caso contrário, daria para dizer que o resultado atingido é como o de “The Postman Always Rings Twice“, que ttem suas similaridades e não consegue ser tão convincente quanto aqui. Aliás, esta é uma comparação interessante porque “The Lady from Shanghai” aborda temas parecidos no desenrolar de sua história e acerta melhor neles. Ambos começam com um homem completamente comum que se apaixona por uma mulher comprometida, passa a conviver perto dela e começa sua onda de problemas a partir daí, eventualmente esbarrando em toques de um drama de tribunal no caminho. A diferença está no modo como tudo isso é trabalhado, especialmente porque uma duração com 26 minutos a mais não faz diferença para o filme de Tay Garnett.
Nem de longe daria para dizer que o envolvimento entre Michael e Elsa existe apenas pelo fato de Orson Welles e Rita Hayworth estarem casados durante a produção deste filme, pois ainda em 1947 os dois fecharam seu divórcio. A principal diferença encontra-se principalmente na escrita das cenas entre os dois principais e na atuação de Welles e Hayworth. Enquanto o primeiro estabelece situações mais funcionais para um envolvimento intenso, o último faz as cenas entre uma esposa-troféu e um marinheiro vivido serem poderosas e transbordarem a paixão proibida tão necessária para o sucesso. “The Postman Always Rings Twice”  introduz seu romance abruptamente em seus primeiros momentos e passa o resto do tempo tentando compensar isso, apenas indo moderadamente bem. “The Lady from Shanghai”, por sua vez, faz um trabalho significativamente superior ao também colocar o primeiro encontro nos primeiros minutos e depois trilhar um caminho bem mais longo até que a atração se manifeste de forma mais evidente.
Além de um planejamento adequado por parte do roteiro, que trata a interação como um processo ao invés de um fato, toda a relação funciona em grande parte pela atuação de Orson Welles como o personagem principal. Sim, seu curioso sotaque irlandês chama a atenção e gera um pouco de simpatia pelo rapaz por conta do charme sobre cada palavra, mas é sua personalidade que realmente faz tudo funcionar. Michael O’Hara é um homem teimoso e desconfiado. Nunca negou sua atração pela garota, como sua narração inicial faz questão de indicar, ao mesmo tempo que tenta não se envolver muito, ficar quieto em seu canto até que as circunstâncias forcem alguma atitude. Essa eterna resistência de atos nunca cometidos com absoluta certeza torna não só seu envolvimento inicial com Elsa mais suave como também abre possibilidades dentro da trama. Ser de poucas palavras não impede de que ele guarde as certas conforme cada situação.
Potencialmente, “The Lady from Shanghai” poderia ter sido tantas coisas inimagináveis que dificilmente serão conhecidas, pois o estúdio provavelmente destruiu as gravações não usadas. Alguns pontos denotam abertura para maior exploração, como cenas adicionais entre a sequência de eventos que levam o mistério para frente, mas não posso dizer que encontrei aqui a falta de alguma coisa. Ao menos em termos de história, soa mais certo qualificá-la como objetiva e enxuta ao contrário de simplista, rasa ou incompleta. Muito menos pode-se acusá-la de ir longe demais em sua ambição, como o outro noir citado anteriormente. Este é mais um excelente filme de um dos mestres do Cinema, com o único elo fraco sendo Glenn Anders e uma atuação desnecessariamente forçada e desconexa com todo o resto. Seu personagem se encaixaria muito melhor num faroeste, que costuma ter indivíduos desequilibrados e meio pirados em seu elenco.

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