segunda-feira, 29 de março de 2021

Deus e o Diabo na Terra do Sol 1964 - Deus e o Diabo na Terra do Sol





 

Deus e o Diabo na Terra do Sol 1964 - Deus e o Diabo na Terra do Sol
Brasil - 120 minutos 
Poster do filme

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) é o segundo longa-metragem de Glauber Rocha (1939-1981). Ao lado de Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos (1928), e Os Fuzis (1963), de Ruy Guerra (1931), completa o tríptico central da primeira fase do cinema novo. É a obra que amplia a crítica social de Glauber em relação à exploração de sertanejos e à pobreza no sertão nordestino.
Por causa da repercussão nacional e internacional do filme, Glauber Rocha é consagrado como liderança desse movimento. No filme, coloca em prática os princípios da “estética da fome” – o drama rural é marcado pela violência simbólica de um cinema revolucionário, feito a partir da precariedade de condições materiais. Segundo o diretor, essa escolha formal expressa a necessidade de violência contra o colonialismo, baseada no pensamento do teórico argelino Franz Fanon (1925-1961), autor de Os Condenados da Terra (1961).
Deus e o Diabo na Terra do Sol narra a trajetória de Rosa [Yoná Magalhães (1935-2015)] e seu marido, o vaqueiro Manuel [Geraldo del Rey (1930-1993)], que assassina o patrão explorador.
O casal busca refúgio em uma comunidade messiânica de Monte Santo, Bahia, formada por seguidores do Beato Sebastião [Lídio Silva]. A pregação de Sebastião, personagem que encarna o messianismo nordestino, anuncia a transformação do mundo e o fim do sofrimento dos pobres. O movimento preocupa os fazendeiros e a Igreja. Para eliminar a ameaça, é contratado o matador de aluguel Antônio das Mortes [Maurício do Vale (1928-1994)], personagem contraditório, torturado pelo sofrimento popular, mas a soldo dos poderosos.
Manuel torna-se o braço armado do líder religioso. Apesar dos apelos contrários de Rosa, o marido envereda pelo fanatismo religioso sem limites: em um ritual de purificação, Sebastião sacrifica um bebê.
O assassinato provoca nova ruptura: Rosa se revolta e mata o líder religioso. Na sequência, Antônio das Mortes ataca a comunidade e assassina todos os fiéis, exceto Manuel e Rosa. A cena ganha feições de mito: ao dizimar o grupo de fiéis, a figura do matador multiplica-se na tela.
Mais uma vez jogado no mundo pela ação violenta, o casal vaga pela caatinga, guiado por Cego Júlio, narrador da epopeia. Ele conduz os dois personagens ao encontro de Corisco [Othon Bastos (1933)], sobrevivente do massacre do grupo de cangaceiros de Lampião. Esta é a última etapa da jornada. Corisco e seu bando sabem que estão com os dias contados e, nesse clima de desespero, Manuel e Rosa juntam-se a eles.
Versão profana do messianismo de Sebastião, Corisco prenuncia o fim de seu mundo e promove os próprios rituais de sacrifício: o bando invade uma fazenda e imola seu dono. A espiral autodestrutiva coloca todos em uma espécie de transe. Cabe a Rosa clamar outra vez pelo retorno à terra. Dessa vez, ela o faz pela união sexual com Corisco. Nessa alegoria, a mulher do povo é fecundada pela face violenta da revolta popular.
A ruptura final vem pelas armas de Antônio das Mortes. Em conversa com Cego Júlio, o matador, que encarna a necessidade de superação histórica do messianismo e do cangaço, afirma que uma guerra maior se aproxima, sem a cegueira de Deus e do Diabo. Para que essa batalha aconteça, ele, que matou Sebastião, deve matar Corisco e “depois morrer de vez”. No duelo mítico com o último cangaceiro, Corisco, ao morrer, grita sua célebre divisa: “Mais forte são os poderes do povo”.
Na última sequência do filme, Manuel e Rosa correm pelo sertão e o mar invade a tela, substituindo a terra seca e selando a profecia repetida pelo Beato e por Corisco: o sertão vai virar mar.
Deus e o Diabo na Terra do Sol não obedece à convenção realista: a teatralidade da cena busca representação sintética da experiência histórica que, nos termos do filme, se faz pelas sucessivas rupturas com formas de consciência popular – messianismo e cangaço – que prefiguram a libertação revolucionária.
O esquema narrativo do filme combina formas eruditas e populares, de modo tenso e criativo: associa filosofia dialética da História – em que movimento e ação dos homens ultrapassam a consciência imediata – e literatura de cordel.
Com poucos recursos de produção, Glauber constrói um estilo agressivo e pulsante. A narração avança aos saltos, e a mise-en-scène oscila entre momentos de acúmulo de tensão e explosões de violência, temática e formal.
A sequência do massacre da comunidade de Monte Santo ilustra o estilo do cineasta. No ápice da histeria messiânica, Sebastião e Manuel comandam o ritual de sacrifício de um bebê. Dentro da pequena capela, os planos são longos, escuros e recortados por focos contrastados de luz. Os gestos de Sebastião são solenes. Manuel consome-se em desespero contido, que explode com um grito filmado em violento e abrupto plongée. A cena prossegue com o ataque fatal de Rosa ao beato. Tudo é teatralizado, com lentidão de movimentos de atores e câmera. A lentidão da cena se rompe com um veloz travelling acompanhando a fuga de Rosa, ainda com o punhal ensanguentado nas mãos.
Na sequência, tiros e gritos da multidão. Sucedem-se planos de desespero: pés, rostos, mãos erguidas, corpos correm e tombam mortos. Segue-se uma sucessão de planos em faux raccord do mítico Antônio das Mortes, que vale por um exército de extermínio.
No livro Brasil em Tempo de Cinema, Jean-Claude Bernardet (1936) destaca este filme como ponto de máxima densidade do cinema novo e considera Antônio das Mortes a figura mais emblemática da filmografia do período. Segundo o autor, o matador de aluguel é expressão da classe média brasileira: ambígua, dividida entre povo e oligarquias, opressora, mas com esperança de transformação.
Deus e o Diabo na Terra do Sol é referência obrigatória no estudo do cinema brasileiro moderno, no Brasil ou no exterior, e fomenta análises formais de imagem, som e narrativa, fixando o lugar da "estética da fome" na história cultural brasileira.

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