domingo, 28 de março de 2021

Mank 2020 - Mank

 
















Mank 2020 - Mank
Estados Unidos - 131 minutos
Poster do filme


Resenha 1:
Apesar de ser mais uma manifestação da obsessão de Hollywood por si própria, Mank também é um envolvente e eloquente drama sobre a vida de um homem que tentou fazer alguma diferença no sistema do qual ele fazia parte. A compreensão das consequências de sua conveniente apatia política sobre a vida de um amigo e sobre a trajetória dos EUA chega tarde demais, e a única coisa que lhe resta é tentar expor o homem que ele via no centro da trama. Como exposição, seu trabalho teve alcance limitado; mas como cinema, seu roteiro daria origem a um dos maiores clássicos da História da sétima arte: Cidadão Kane.
Não fica claro qual resultado o roteirista Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman) esperava de sua obra prima, eternizada em película pelo jovem diretor Orson Welles (Tom Burke) e reverenciada até hoje. Que diferença faria expor a duplicidade e os fracassos pessoais de William Randolph Hearst (Charles Dance)? O magnata da imprensa marrom serviria como inspiração para o idealista Charles Foster Kane, um dos personagens mais conhecidos do cinema, enquanto sua jovem esposa Marion Davies (Amanda Seyfried) inspiraria Susan Alexander, segunda esposa e objeto de obsessão para Kane.
O humor e a metalinguagem (copiando parte da linguagem e do estilo de Cidadão Kane) fazem com que Mank lembre filmes como Oito e Meio, Ave, César! e Era Uma Vez em Hollywood, apesar de ser menos profundo que o primeiro e bem mais profundo que os dois outros. Esse não é um dos trabalhos mais marcantes do diretor David Fincher, mas provavelmente vai impressionar cinéfilos e outros tipos de conhecedores da História da sétima arte. Para espectadores “normais”, talvez o filme não tenha tanto apelo assim.
Há também um certo apelo no aspecto político da produção. Por meio de flashbacks, fica claro que a Hollywood de Mank, durante os anos 1930, já possuía as sementes da Hollywood da Lista Negra. Enquanto os membros da classe artística e os trabalhadores de baixo nível são simpatizantes de ideias de esquerda, os executivos dos estúdios e seus financiadores obviamente tendem a ideias de direita. Com o objetivo de influenciar uma eleição presidencial, eles plantam as sementes da segunda ameaça vermelha recorrendo a mentiras e técnicas de manipulação que hoje seriam chamadas de fake news.
Tudo isso é mostrado em meio a melancólica e irremediável espiral de autodestruição à qual Mank se dedica, uma história que já havia ocorrido inúmeras vezes e que viria a se repetir inúmeras mais em diferente meios, artísticos ou não. Há até uma certa familiaridade com outros recentes sucessos da Netflix, como os dramas sobre enxadrismo O Gambito da Rainha e Partida Fria.
Mas Mank é um roteirista, e ele manifesta sua frustração, seu arrependimento e seu ressentimento por meio de um roteiro que colocaria seu nome na História. Seu relacionamento pessoal e conhecimento sobre Hearst e Davies, que o convidava regularmente para o Castelo de Hearst (que inspirou o Xanadu de Cidadão Kane), o colocavam na posição ideal para expor um influente homem de negócios que estava nas sombras da política dos EUA. A amizade com o casal provavelmente o deu uma visão única sobre a intimidade e as motivações dos dois. Isso era importante porque, ainda que seu objetivo não fosse atingir Davies, não havia como revelar o “funcionamento interno” de Hearst sem envolvê-la na história.
E Mank fez isso já sabendo de seu limitado impacto na história real. O Hearst de Mank deixa claro, por meio da “parábola do macaco do tocador de realejo“, que Mank não é o centro do universo. Mesmo se o roteirista parar de “dançar”, a música continuará tocando; e os negócios continuarão acontecendo, os filmes continuarão sendo feitos e o mundo continuará girando. Portanto, tudo o que Mank realmente podia fazer era contar uma história.
Mank pode não ter os mesmos atrativos que os trabalhos mais “violentos” de Fincher, mas ainda assim o diretor mostra que está em plena forma. O resultado é um filme fácil de assistir para quem se interessa pela História do cinema e razoavelmente suportável para quem não está tão interessado assim. O afiado roteiro e as ótimas atuações de todo o elenco (especialmente a de Oldman) oferecem um show à parte e são o suficiente para segurar a atenção do espectador.
Resenha 2:
A autoria do roteiro de “Cidadão Kane” (1941) é uma das mais longas confusões do cinema. Considerado um dos melhores filmes de todos os tempos, ele “oficialmente” foi escrito pelo diretor Orson Welles e pelo roteirista Herman Mankiewicz, que garante ter escrito o roteiro todo sozinho, sem a presença de Welles, tendo dito isso, inclusive, quando recebeu o Oscar pelo texto.
Em 1971, mais de 30 anos depois do lançamento do filme, Pauline Kael publicou um artigo na “New Yorker” chamado “Raising Kane”. O texto confere a autoria de “Cidadão Kane” e Mankiewicz e diz que o roteirista foi apagado dos anais de Hollywood pelos fãs de Orson Welles. Por outro lado, o historiador de cinema Richard Jewell garante que suas pesquisas garantem a contribuição de Welles no filme. Essa história provavelmente nunca será esclarecida, mas o diretor David Fincher (“Garota Exemplar” e “A Rede Social”) fez dela o centro de “Mank”, que chegou nesta sexta (4) à Netflix com grandes aspirações ao Oscar 2021.
Fincher escolhe um lado, o de Pauline Kael, mas não concentra seu filme na questão de quem é o autor ou não do filme. Ao invés disso, o cineasta prefere explorar a criação do clássico e o contexto dessa gênese. No texto de autoria de Jack Fincher, pai de David, Herman Mankiewicz (Gary Oldman) é um roteirista boa praça, falastrão e com alguns problemas com álcool e apostas. UEle circula no alto escalão da indústria cinematográfica, mas se vê cada vez mais como um pária ali dentro.
“Mank” explora bem os bastidores da indústria e o faz com diversas referências a figuras famosas da época. O filme tem início em 1940, quando Orson Welles (Tom Burke), uma estrela em ascensão, recebe carta branca do estúdio para um projeto com Mank - o roteirista, lidando com as sequelas de um acidente automobilístico, teria 60 dias para escrever um roteiro, em teoria, sem álcool. É a partir dali, com flashbacks e uma narrativa não-linear, que vamos entendendo a construção do que viria a ser “Cidadão Kane”, no qual ele, à sua maneira, representava o magnata das comunicações William Randolph Hearts (Charles Dance) e sua esposa, a atria Marion Davies (Amanda Seyfried).
Todo em preto e branco, “Mank” tem uma fotografia espetacular. O diretor de fotografia Erik Messerschmidt, que trabalhou com Fincher na série "Mindhunter", abusa dos contrastes e recria vários frames em homenagem a “Cidadão Kane”. A trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross, também parceiros habituais do cineasta, está presente durante quase toda a projeção e também merece destaque, ajudando na ambientação de época. “Mank”, porém, tem alguns problemas…
O primeiro deles é depender quase totalmente de que seu público não apenas tenha assistido a “Cidadão Kane”, mas também de que ele se lembre de detalhes do filme de 1941. Para essa audiência, “Mank” é um espetáculo, um mergulho nos anos dourados de Hollywood. No entanto, para quem o termo “rosebud” e os nomes Charles Foster Kane e Susan Alexander Kane nada representam o filme tem pouco a oferecer.
Há, sim, outros interesses em cena. O filme mostra como a indústria de cinema e os estúdios manipulavam a opinião pública com notícias falsas para influenciar em eleições - hoje a Califórnia é um Estado de maioria democrata, mas nem sempre foi assim. O texto também mostra uma época de mudanças em Hollywood, que saía da Crise de 29 e começava a formar seus sindicatos (roteiristas, atores, produtores etc.).
Mesmo interpretando um personagem quase 20 anos mais novo, Gary Oldman se sai muito bem e permite que o filme até brinque com isso. O ator encarna o aspecto fanfarrão de Mank, mas também o lado herói trágico, o sujeito que sucumbiu à indústria e ao álcool sem abrir mão de suas convicções. Amanda Seyfried é outra que se destaca com uma atuação precisa. Expressiva, a atriz protagoniza com Oldman os melhores diálogos do filme, aqueles que nos fazem entender um pouco mais as motivações do quase herói, um idealista romântico.
“Mank” funciona como um resgate, mesmo que talvez não fiel aos fatos, mas também como uma homenagem ao idealista herói incompreendido - as citações de “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, não são gratuitas. “Cidadão Kane”, em “Mank”, é quase uma vingança, um grito por liberdade, um ato de guerra, e o filme funciona muito bem se enxergado dessa maneira.
O filme de David Fincher deve agradar os votantes da Academia, que adora uma homenagem à indústria, e provavelmente acabará com méritos no Oscar do ano que vem. Ainda assim, “Mank” carece de emoção. O roteiro até tenta, em duas subtramas, conferir um aspecto mais pessoal ao filme, mas não consegue. Ao fim, “Mank” é um filme para apaixonados e conhecedores de cinema, o que o afasta muito do público que buscar apenas se divertir ou se emocionar com uma obra.



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