O Leite que Condensa o Brasil - Artigo
Artigo
A vontade da doceira Carole Crema era de desistir. Ela já havia tentado de tudo naquela tarde de 2002: manipular a mistura de outra forma, esfriá-la mais rápido, mudar a quantidade dos ingredientes. O desespero que sentia era inversamente proporcional ao fogo baixo com que mexia o doce. Nem o conhecimento adquirido por ela em cursos de culinária em Londres e Milão a ajudava a encontrar o ponto perfeito do brigadeiro, a tempo de entregar a encomenda de duzentos docinhos para o cliente. “A gente aprende com a mãe logo cedo que é só misturar até ver o fundo da panela. Só que, naquela época, às vezes eu via certo, mas às vezes eu via errado. Tinha dia que saía lindo, mas tinha dia que saía todo esborrachado”, recorda Crema.
No momento em que ela fixou o olhar na colher de “raspar a panela” veio a solução para o impasse: propor ao cliente um brigadeiro mole, e não na forma de docinho compacto e redondo. A guloseima iria acompanhada de uma colherzinha, permitindo que as pessoas reproduzissem o jeito despretensioso de degustar brigadeiro em casa. Os consumidores da cantina do Colégio Dante Alighieri, em São Paulo, que havia encomendado os doces, gostaram tanto do resultado que começaram a espalhar notícias da novidade – e o brigadeiro de colher acabou chamando a atenção da imprensa. “Foi um marco para o meu negócio, o que me deu lucro e tornou meu nome conhecido”, diz Crema. Hoje, as sobremesas “de colher”, como o brigadeiro e até ovo de Páscoa, são os carros-chefes da loja que leva o nome dela no bairro Jardim Paulista.
Crema tentou resistir à tentação de fazer doces assim, porque seus planos iniciais como chef não incluíam brigadeiros, muito menos os “de colher”. “Eu tinha acabado de me formar em Londres. Sabe a Marilia Zylbersztajn? Eu queria fazer algo como ela”, afirma, referindo-se a uma das melhores confeiteiras de São Paulo. “Mas, para cada pedacinho de torta de pera com lavanda que eu vendia, alguém comprava um bolo inteiro de brigadeiro.” Crema percebeu então que o seu público era outro: sempre envolvia a memória afetiva na escolha das guloseimas. “Ninguém fala: ‘Minha avó fazia uma torta deliciosa de chocolate amargo e damasco.’ É mais comum dizerem: “Ai, que saudade do pavê com biscoito, Nescau e leite condensado da vovó”, conta a doceira de 48 anos, depois de bebericar um suco de laranja de caixinha e dar outro trago no cigarro.
Como diz o ditado, o que não vai açúcar, adocicado está. Crema usou as memórias de família para investir de vez em quitutes que remetem à infância das pessoas. Colocou de lado a pera, a lavanda e as favas de baunilha e recorreu a um ingrediente banido da alta gastronomia e que costuma dar engulhos nos chefs: o leite condensado. “O brasileiro gosta de doce bem doce. O leite condensado vai em praticamente todas as minhas receitas. Eu sei que o que eu faço não é nem confeitaria, é doçaria. Pode escrever na piauí que eu sou doceira. Adoro.” Para satisfazer a clientela formiguinha, a loja Carole Crema compra todo mês 1,5 mil litros.
O seu caso de amor com esse ingrediente vai além da loja. Quando viaja com familiares ou amigos, ela costuma incluir na bagagem 5 litros do produto, para não perder a oportunidade de fazer um docinho. O lembrete de que a vida pode ser doce está eternizado na canela direita de Crema, onde ela tatuou, em preto e branco, o creme escorrendo de uma lata. “Sou uma das únicas pessoas do mundo que tem coragem e propriedade para ter uma tatuagem de leite condensado.”
Crema é também professora na Escola Wilma Kövesi de Cozinha, em São Paulo, e jurada do reality culinário Que Seja Doce, no canal GNT. Leite condensado é assunto sério para ela, que sempre reclama quando alguém desvaloriza o produto ou o utiliza sem critérios. “Acho péssimo quando juntam leite condensado, Nutella, leite em pó em cima de uma coisa só. É trucagem. O legal é pegar a latinha e falar ‘O que eu posso fazer com isso? Como consigo deixar isso ainda mais gostoso?’, e não sair tacando em tudo.”
O uso indiscriminado se tornou um efeito rebote do alto consumo de leite condensado. O Brasil é o país que mais utiliza o produto no mundo. Segundo dados da empresa de pesquisas de mercado Euromonitor, os brasileiros devoraram 335 milhões de litros dos pouco mais de 3 bilhões consumidos em todo o planeta – ou seja, cerca de 11%. O Painel do Consumidor da Kantar, uma empresa de pesquisa de opinião e consumo, aponta que aproximadamente 90% dos lares no país recorrem ao leite condensado. Em média, cada brasileiro compra 6 litros por ano – cerca de dezenove latas. Também pudera: das cinco receitas de sobremesas mais buscadas pelos brasileiros no Google (bolo, pudim, mousse, pavê e brownie), ao menos três delas utilizam leite condensado como ingrediente-chave.
Tudo começou, em termos industriais, em 1856, quando o inventor norte-americano Gail Borden Jr. (1801-74), incomodado com a velocidade com que o leite estragava e contaminava as crianças, desenvolveu um jeito de conservá-lo. O método de Borden consistia em extrair a água do leite, por evaporação, acrescentando uma grande dose de açúcar, o que impedia o desenvolvimento de bactérias e fungos. Disposto em latas bem lacradas, o produto podia ser armazenado por um longo tempo e consumido tal qual era oferecido, ou então diluído novamente em água. As latas do condensed milk de Borden ganharam fama nos Estados Unidos, chamando a atenção do Exército, que resolveu adotar o produto como um dos suprimentos dos combatentes durante a Guerra Civil Americana (1861-65).
No Brasil, a história começa na década de 1890, quando se iniciou a importação do Milkmaid, o leite condensado feito pela Nestlé. O sucesso entre os brasileiros fez com que a empresa suíça decidisse produzi-lo aqui mesmo. Há exatamente um século, em 1921, a Nestlé comprou a Companhia Ararense de Leiteria, uma fábrica que havia em Araras, no interior paulista, e no mesmo ano lançou o leite condensado made in Brazil, com este nome brejeiro: Moça.
Quatro anos depois, ocorreu a primeira Conferência Nacional do Leite e Laticínios, que reuniu produtores de leite, políticos, entidades governamentais e, claro, a Nestlé. O então presidente da empresa no Brasil, Henri Kuhlman, falou no evento sobre a importância de um “leite puro”, citando o leite condensado como alimento nutritivo para crianças “de países quentes”, uma vez que tinha mais longevidade. “O produto chegou embalado de forma hermética e industrializado num Brasil que queria tirar a ideia de que éramos selvagens e tomávamos leite direto da vaca”, explica a advogada Ekaterine Karageorgiadis, que fez um trabalho de mestrado sobre políticas públicas do leite no Brasil, defendido na Faculdade de Saúde Pública da USP.
O Brasil se urbanizava no início dos anos 1920, e também aumentava o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, o que levou a mudanças na educação – e na alimentação – das crianças. “Havia uma aspiração de que a infância deixasse de ser jeca-tatu, doente, pobre, rural para ser uma infância nutrida e bem cuidada. E uma criança forte era uma criança que se alimentava com produtos industrializados. Essa era a mentalidade da época, endossada por governantes, produtores de leite e, claro, a indústria”, diz Karageorgiadis.
A durabilidade do leite condensado, sua versatilidade e a atrativa concentração de açúcar despertaram o interesse da confeitaria brasileira. “A economia doméstica rapidamente aderiu ao leite condensado por causa da praticidade”, diz a historiadora Débora Santos de Souza Oliveira, autora do livro Dos Cadernos de Receitas às Receitas de Latinha: Indústria e Tradição Culinária no Brasil. “Basta você entrar no YouTube e ver uma receita de sobremesa: as pessoas misturam tudo, absolutamente tudo, com leite condensado. Quem é estrangeiro se assusta, mas eu acho lindo isso da confeitaria brasileira.”
Em seu livro, Souza Oliveira explica como a indústria alimentícia teve papel fundamental nas mudanças culinárias a partir dos anos 1960, quando as mulheres começaram a pendular ainda mais entre as atividades domésticas e o mercado de trabalho, já não dispondo de tanto tempo para cozinhar. “A indústria de alimentos é que acabou ensinando essa geração de mulheres que hoje são avós a cozinhar. Não foi a mãe, que entregava um enxoval com um livro de receitas tradicionais da família”, diz a historiadora. Nesse livro provavelmente não haveria nenhuma receita com leite condensado, mas talvez com o clássico creme de confeiteiro, ou crème pâtissière, usado em diversos doces. “O creme de confeiteiro é mais difícil de fazer e exige um trato delicado. Com o leite condensado é só bater e está pronto.”
Para o sociólogo Carlos Alberto Dória, autor de Formação da Culinária Brasileira, o leite condensado agiu e age como um verdadeiro “acelerador do tempo”, modificando hábitos e receitas. “A noção de tempo da indústria e da classe média norte-americana era completamente diferente da de uma sociedade rural, como a brasileira do início do século XX.” Mesmo assim, pouco a pouco, a cozinha brasileira passou a ser regulada, na expressão de Dória, “pelo relógio da produtividade”, como era a dos Estados Unidos e de outros países do Ocidente.
A nutricionista Débora Fontenelle dedicou 30 de seus 84 anos à Nestlé. “Fui para a empresa em janeiro de 1960 com uma função: vender o Leite Moça”, diz, em seu apartamento na Vila Madalena, em São Paulo. Ela foi contratada no final da década de 1950, depois que um grupo de pediatras paulistas começou a contestar a adoção de leite condensado na alimentação de crianças. Liderados pelo pediatra Pedro de Alcântara Machado, eles questionaram o excesso de açúcar no leite condensado, que era servido aos bebês nas mamadeiras, diluído em água, e em merendas escolares, como geleia. Os pediatras afirmaram que o produto, que é muito açucarado, poderia incentivar a produção de células adiposas, responsáveis por armazenar gordura, condenando assim uma geração inteira à obesidade. “Fico pensando nessas senhoras gordas que não conseguem emagrecer. Não é genético. Não é só fechar a boca”, afirma Fontenelle, aludindo ao fato de que essas senhoras talvez tenham sido alimentadas na primeira infância com leite condensado.
Incomodada com o diagnóstico dos médicos, a Nestlé convocou um grupo de pediatras, engenheiros de alimentos e nutricionistas, entre os quais Fontenelle, para dar ao leite condensado uma destinação diferente à de substituto do leite in natura para crianças. A nutricionista da Nestlé resolveu, então, se aprofundar na doçaria brasileira. Atacou em duas frentes: a teórica, consultando livros de receitas e estudos sobre a culinária brasileira de Luís da Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, e a prática, indo para a frente do fogão testar a adaptação das receitas ao leite condensado. “Percebemos que o leite condensado poderia servir como base para muitos doces brasileiros e estrangeiros. Pedi uma cozinha experimental para a Nestlé e fizemos uma série de testes. A primeira receita e a mais rápida foi a de pudim, depois vieram as de mousses e pavês”, relembra. Fotos em preto e branco que Fontenelle ainda guarda mostram o “laboratório culinário” montado de improviso numa sala de escritório, com poucos armários e acessórios, não lembrando em nada as espaçosas cozinhas de alguns lares brasileiros de então.
As receitas da equipe da Nestlé com leite condensado deram certo, mas era preciso convencer as donas de casa a usarem o produto em seus doces, o que ainda era incomum. A empresa disparou publicidades na imprensa, no rádio e na tevê, mas não foi suficiente. A Nestlé decidiu então mandar seus funcionários para fora da fábrica, a fim de demonstrarem as novidades para as brasileiras. “Onde tinha um grupo de mulheres, lá estávamos nós: lojas, portas de escolas, paróquias, associações. Fazíamos cursos, rodas de conversa, entregávamos folhetos com receitas”, diz Fontenelle, mostrando uma receita de pudim num livreto em preto e branco, sem a logomarca da Nestlé.
A ação deu certo, pois veio a calhar com as demandas femininas da época. “Me desculpe o palavrão, mas a mulher das décadas de 1960 e 70 é a mais fodida”, dispara Fontanelle. “Ela foi para a universidade ou foi trabalhar, e não aprendeu a cozinhar. Mas se casou e queria fazer para o marido o pudim que a sogra fazia ou o doce que a mãe fazia. Aí vinha a pressão da mãe, da sogra, do marido, dos filhos, de todos os lados. Eu sei disso porque eu mesma vivi essa situação.”
O leite condensado foi uma das soluções mágicas empregadas por essas mulheres para acabar com as reclamações, adoçando à larga os paladares. Mas o produto facilitou não apenas a vida das cozinheiras apressadas: também possibilitou o acesso das pessoas em geral a algumas receitas que demandavam certo trabalho de connaisseur, como as mousses, os pavês e o crème pâtissière. “O leite condensado de início se posiciona publicitariamente na elite, mas torna-se absolutamente popular na classe média e vira desejo de consumo da classe baixa. Todo mundo pode comprar uma lata”, resume Dória.
Ciente da sedução que o leite condensado produz em quase todos os brasileiros, o então candidato presidencial Jair Bolsonaro apareceu em uma foto, durante a campanha de 2018, lambuzando o pão francês com leite condensado no café da manhã, numa mesa sem toalha nem louça. A mera hipótese de substituir a manteiga ou o queijo por leite condensado no recheio de um pãozinho quente durante o café da manhã pode provocar náuseas em algumas pessoas, mas o risco de Bolsonaro foi calculado, segundo um ex-apoiador do presidente, o deputado federal Alexandre Frota, atualmente no PSDB-SP. “Bolsonaro realmente gosta de leite condensado, mas o café da manhã foi uma invenção do Carlos Bolsonaro. Era um marketing para dar a impressão de que ele come o que o povo come”, conta Frota.
Aliados do governo dizem que a ideia de incluir o leite condensado no café da manhã veio de “um dos meninos da internet” que atuaram na campanha, referindo-se, sem especificar, ao trio formado por Tércio Arnaud Tomaz, José Matheus Sales Gomes (hoje assessores especiais de Bolsonaro) e Mateus Matos Diniz (atualmente diretor de Programa da Secretaria Especial de Comunicação Social do Ministério das Comunicações). “O presidente gosta de leite condensado, mas não pode comer sempre por causa da saúde”, afirmou um integrante do alto escalão do governo, que não quer ser identificado por temer retaliações. “Alguém viu uma mulher comendo leite condensado com pão, outro falou que era comida da Segunda Guerra Mundial, e então acharam uma boa ideia e colocaram na mesa.” A proposta, endossada por Carlos Bolsonaro, deu certo: a procura por “pão com leite condensado” foi um dos picos de busca no Google, segundo um levantamento do Google Trends feito em novembro de 2018, um mês após a foto.
Tudo levava a crer que, eleito, Bolsonaro introduziria a novidade nos cafés da manhã do Palácio da Alvorada. Mas não foi bem o que aconteceu. O leite condensado parece proscrito da residência presidencial, se nos fiarmos nas imagens dos desjejuns publicadas no Flickr, um site de hospedagem de fotos. Elas mostram que o cardápio do Alvorada nos cafés oficiais ou extraoficiais segue o padrão dos hotéis, com frutas, pães, geleias, manteiga e frios, além de biscoitinhos artesanais de leite, biju de tapioca e rocambole de chocolate, quitutes que não contam com leite condensado no preparo.
A foto de Bolsonaro também fez as buscas pela iguaria saltarem do mundo virtual para o real. No Rio de Janeiro, a padaria Flor da Tijuca decidiu incluir no cardápio uma homenagem ao presidente: o “pão do capitão”, que consiste em rechear com leite condensado um pão francês passado na chapa. “Foi muito maneiro. Na época, fomos capa de tudo quanto era jornal, e o movimento aumentou bastante. Chegamos a vender mais de trezentos pães do capitão por mês”, diz Fernanda Hipólito, proprietária da padaria.
Mas, com o tempo, o doce amargou. E a receita do pão com leite condensado, como outras mitologias suscitadas por Bolsonaro, começou a perder clientela. “Fui muito criticada nas redes sociais. Falaram em boicotar a padaria”, conta Hipólito. “Fiquei com medo pela padaria, pelos meus funcionários, por mim. Tirei o nome ‘pão do capitão’ e agora está apenas ‘pão com leite condensado’. Não imaginava que poderia ter um efeito contrário, só queria fazer uma homenagem. Com isso percebi que padaria tem que ser apartidária.” A dona da Flor da Tijuca já foi mais otimista com o governo e hoje diz, eufemisticamente, “torcer pelo Brasil, e não por políticos”. Agora, a padaria raramente vende mais que trinta unidades do pão com leite condensado por mês. “Pão com Nutella acaba saindo bem mais. Tenho que aproveitar enquanto isso ainda não tem partido.”
Não foi só na padaria que o leite condensado derramou. Em 2021, o produto esteve no centro de uma polêmica sobre gastos públicos, depois que se espalhou a notícia de que o Palácio da Alvorada havia consumido 15,6 milhões de reais em leite condensado no ano anterior. Não era verdade. Mais tarde, descobriu-se que os gastos diziam respeito a todos os órgãos do governo federal (e não somente à Presidência), sendo que os principais consumidores eram as Forças Armadas, com 14,2 milhões de reais gastos com o produto. No novo capítulo da história do leite condensado com o paladar brasileiro, o ingrediente surgiu adocicando não apenas Bolsonaro, mas os militares em geral.
“A ferramenta na internet que reúne dados de gastos públicos, o Painel de Compras, na versão que havia na época, induzia pesquisadores ao erro de achar que o consumo era exclusivo da Presidência, e não dos órgãos federais em geral, tendo em vista que os valores não estavam associados a um item – como parecia estar – e sim ao conjunto de itens de uma nota fiscal”, explica Gil Castello Branco, economista da Associação Contas Abertas. “A partir desse imbróglio, o governo percebeu que o portal precisava ser aprimorado.” O sistema do Painel de Compras mudou, mas a navegação ainda é dificultosa e até hoje induz ao erro. Na primeira vez que a piauí fez uma busca por gastos com leite condensado pelas Forças Armadas no novo site, apareceu um montante superior a 17 milhões de reais em 2020, sendo 12 milhões de reais apenas para o Comando do Exército. No entanto, a cifra enviada à piauí pela corporação e confirmada nos registros do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) é bem menor: 2 011 374,06 reais gastos em 2020 – quantia também reconhecida pelo Ministério da Economia.
O Ministério da Defesa disse em nota que o leite condensado é um dos itens que compõem a alimentação dos militares devido ao “seu potencial energético”, podendo servir “eventualmente” como substituto para o leite, já que sua conservação e transporte são mais fáceis. Nas Forças Armadas, o leite condensado foi destinado a 370 mil homens e mulheres “em 1,6 mil organizações militares espalhadas por todo o país”, segundo o ministério. “Para fazer uma analogia, o consumo é igual na nossa casa. Nós só usamos leite condensado para comida de rancho, como sobremesa, cobertura de bolo, essas coisas”, diz o coronel Alfredo Machado da Cunha Júnior, chefe do Escalão Logístico do Quartel-General Integrado, que abriga em São Paulo o Comando Militar do Sudeste, o Comando da 2ª Região Militar e o Comando da 2ª Divisão de Exército. Rancho é o jargão militar para o refeitório nos quartéis.
Os militares se alimentam de duas formas: com a comida de rancho e com a ração seca, o alimento preparado pelo próprio militar durante as missões. O saco verde-oliva vem com quatro refeições embaladas a vácuo: café da manhã, almoço, jantar e ceia, além de acessórios como talheres, panela, fogareiro, fósforo e álcool em gel (para higiene e manuseio de fogo). O almoço e o jantar têm arroz, legumes, carne, farinha, suco de laranja em pó e bebida isotônica. A ceia e a sobremesa contam com barra de cereal, bala jujuba, geleia e torrada.
Já a comida do rancho segue as orientações do Guia Alimentar para a População Brasileira, elaborado pelo Ministério da Saúde. Embora nos refeitórios a disposição dos militares às mesas seja feita conforme a patente (majores, tenentes-coronéis, coronéis e generais sentam numa área; capitães, tenentes, subtenentes e sargentos em outra; cabos e soldados, em uma terceira), todos comem a mesma comida, feita pela mesma equipe.
No Quartel-General Integrado, localizado perto do Parque Ibirapuera, em São Paulo, 29 funcionários cuidam e preparam a alimentação de setecentas pessoas. “O cardápio é pensado seguindo a alimentação do brasileiro. Só que o Brasil é muito grande, então tem que regionalizar esse cardápio, de acordo com a realidade de cada quartel”, explica a tenente Carolina Diniz, adjunta do Escalão Logístico. Segundo ela, o planejamento precisa ser muito rígido, já que o gasto com refeição por militar é de 9 reais para todas as quatro refeições do dia (café da manhã, almoço, jantar e ceia). “Por isso seguimos à risca a política de zero desperdício”, ressalta o coronel Cunha Júnior.
No dia em que a piauí visitou a despensa do quartel havia seis caixas de leite condensado, com 27 pacotinhos Tetra Pak cada, da marca Triângulo Mineiro. O produto é utilizado sobretudo em sobremesas, como pudins e mousses de chocolate. “Calcula assim: eu tenho setecentas pessoas. Preciso fazer pudim para todas elas. Deve dar umas dez, quinze caixas de leite condensado. Também não é para ficar comendo muito doce que faz mal”, diz o coronel. Os militares não passam apenas a doces com leite condensado na sobremesa. As frutas e as gelatinas também têm seu lugar no cardápio da caserna.
Por mais que Bolsonaro tenha sido alvo de caricaturas e memes por gostar de leite condensado, ele não foi o primeiro político a adoçar uma campanha eleitoral com o produto. Em 1946, a doceira Heloísa Nabuco de Oliveira queria levantar fundos para a campanha do brigadeiro Eduardo Gomes, que concorria à Presidência da República pela União Democrática Nacional (UDN). Reconhecida por fazer doces muito elaborados, ela decidiu ousar e misturou o chocolate em pó a um ingrediente pouco comum em suas receitas, o leite condensado. Acrescentou manteiga, misturou tudo e batizou a guloseima de “brigadeiro”, em referência ao seu candidato. O episódio ganhou grande repercussão nas rodas da alta sociedade, pois até então o leite condensado era usado seja como substituto para o leite ou como uma espécie de geleia – o que levanta a hipótese de Bolsonaro ter apenas recorrido a um hábito de meados do século XX. Gomes perdeu a disputa política para o general Eurico Gaspar Dutra, mas ao menos foi imortalizado na história do docinho. (A exceção é o Rio Grande do Sul, onde o doce é conhecido como “negrinho”.)
No Palácio da Alvorada, entretanto, não é de hoje que o leite condensado costuma ser ignorado pelos chefs que cozinham para os presidentes. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, foi praticamente banido. “Dona Ruth Cardoso não gostava de doces, principalmente os muito doces. Gostava mais de frutas, no máximo um doce com fruta”, conta a gaúcha Roberta Sudbrack, que comandou a cozinha do Alvorada durante os dois mandatos de FHC. “O presidente, por sua vez, gosta muito de doce, mas tinha uma dieta controlada. A minha cozinha tem a particularidade de trabalhar com ingredientes muito frescos, então não entrava nunca leite condensado.”
Alguns ex-ministros de FHC ainda lembram que às quartas-feiras era servido picadinho no almoço com pudim de leite de sobremesa, o que fazia com que esse dia da semana fosse bastante concorrido na agenda presidencial. E não ia leite condensado na receita? “Não. Era uma receita da minha avó, em que vai leite, ovos e açúcar”, diz Sudbrack, que hoje prefere ser chamada de cozinheira. “Já fui chef, agora quero ser cozinheira de forno e fogão.” Ela, porém, não menospreza o leite condensado. “Acho que para a larica da madrugada é muito conveniente”, aconselha. Brigadeiro, inclusive, é seu doce favorito. “A glicose acalma. Basta comer uma colherada ou duas, ou mais de duas, se a pessoa estiver muito exausta.”
Quem cuidou das panelas presidenciais no Palácio do Planalto durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, preparando as refeições oficiais, foi o chef pernambucano Caio Henri Santos, atualmente dedicado ao Zen Adega e Restaurante, em Arraial d’Ajuda, na Bahia. Ele relembra rindo que era responsável por mais de 5,6 mil refeições por dia no Planalto. “Minha amiga, eu dormia três horas por noite, no máximo.” Além de toda logística da cozinha, Santos precisava ficar atento às restrições alimentares de cada ministro. “A Marina Silva não podia comer um monte de coisa, a Dilma Rousseff estava numa dieta rigorosa. Aí, quando o Jaques Wagner via o prato da Dilma, queria um igual. E o Lula pedindo rabada, e eu falando que não por causa do colesterol. Era complicado.”
As sobremesas que mais saíam da cozinha de Santos eram a torta holandesa, o quindim e os pudins. “Lula era danado, viu? Tinha que ficar de olho porque ele gosta de doce. Principalmente sorvete de açaí com pudim de tapioca.” O chef raramente usava leite condensado. “Prefiro ingredientes naturais”, explica. O produto só entrava mesmo quando os netos de Lula estavam na área. “No Palácio da Alvorada, quando a dona Marisa Letícia entrava na cozinha, eu saía. Aí a cozinha era dela”, recorda. “Ela era muito simpática e cozinhava muito bem. Fumávamos escondido juntos.” Santos conta que Maria Letícia “adorava fazer o macarrãozinho dela” e principalmente cozinhar com os netos. “Ela fazia o que uma avó normal faz: bolo e brigadeiro. Então usava leite condensado à vontade.”
O primeiro alimento que recebemos é o leite. A gente cria uma memória afetiva de conforto. Leite misturado com açúcar é sinônimo de acolhimento, de família. O leite condensado junta essas duas coisas”, diz a historiadora Débora Santos de Souza Oliveira. Não foi à toa, portanto, que, durante a pandemia, quando as famílias tiveram que se distanciar umas das outras, as vendas de leite condensado dispararam – um aumento de 20,9% nas vendas nos supermercados de varejo, de maio de 2020 a maio de 2021, segundo a consultoria Nielsen. Entre os supermercados atacadistas a porcentagem dobrou: 39,8% no mesmo período.
No segundo semestre de 2021, o desemprego no Brasil atingiu a taxa recorde de 14,7% da população, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Muitas pessoas tiveram que buscar alternativas para complementar a renda. Foi o caso de Juliana Oliveira, de 24 anos. Seu marido, Cristian Ferreira, trabalha como montador de brinquedos de grande porte, como os que há em praças e bufês infantis, mas com a pandemia o trabalho minguou, e ele ficou meses sem receber. O casal, que tem três filhos, se virou nesse período com o dinheiro do auxílio emergencial dado pelo governo e as vendas da Ju Doces e Salgados.
O negócio começou em 2018, após Juliana Oliveira abandonar a rotina extenuante de dois empregos: atendente de telemarketing e funcionária do McDonald’s. Hoje, as vendas dos doces e salgados são feitas tanto por meio das redes sociais quanto à porta da própria casa de Oliveira, na Cidade Líder, bairro da Zona Leste de São Paulo. Na Ju Doces e Salgados, o consumo de leite condensado é de 26 latas por semana. “Nós, doceiras, temos que comprar o leite certo senão não dá ponto. Tá uma facada o preço. Mas nem todo mundo quer pagar o valor que vale o nosso trabalho”, diz a quituteira.
O preço do leite se reflete no do leite condensado, que, segundo a Nielsen, subiu 21% entre maio de 2020 e maio deste ano. “Produzir leite ficou mais caro por causa do aumento do preço das rações dos animais, como soja e milho. E houve um aumento do consumo de leite, que também é utilizado em outros itens da indústria alimentícia, como manteiga, margarina etc.”, diz Joelson Sampaio, coordenador da Escola de Economia de São Paulo (EESP) da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo. Por causa da escassez de leite no último ano, muitas fábricas de leite condensado recorreram a outras matérias-primas para não repassarem ainda mais o preço aos clientes. “Os ingredientes obrigatórios do leite condensado são leite e sacarose, mas o produto também pode conter, no lugar do leite, creme de leite, gordura anidra de leite, lactose, leite em pó e manteiga”, enumera a professora Mirna Gigante, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade de Campinas (Unicamp). O leite em pó foi o produto mais usado para produzir o leite condensado nas fábricas.
Para driblar o custo elevado, a dona da Ju Doces e Salgados dividiu seus docinhos em duas categorias: normal e gourmet. Os primeiros utilizam “marcas normais”, como ela descreve, e são vendidos a 25 reais o cento. Já o cento dos doces gourmet custa 40 reais, porque são feitos com “marcas gourmets, como Leite Moça e chocolate Harald”.
Durante o auge da pandemia, de março de 2020 a junho de 2021, as buscas no Google por “leite condensado” cresceram 30% no Brasil, segundo um levantamento do Google Trends. É mais vantajoso comprar o leite condensado pronto que fazê-lo em casa. Apesar disso, o mesmo levantamento indicou que a pergunta com relação ao produto feita com mais frequência no site de busca entre março de 2020 e junho de 2021 foi esta: “Como fazer leite condensado?”
Se for para economizar na conta, nem sempre dá certo. A piauí testou três receitas exibidas no grupo “Confeiteira Iniciante”, que reunia em outubro passado 661,6 mil membros no Facebook. O denominador comum entre as receitas consiste em fazer evaporar a água do leite até que a lactose condense com o açúcar. Uma delas mandava ferver o leite na panela, outra bater no liquidificador água fervente com leite em pó, manteiga e açúcar. A terceira, muito similar à segunda, apenas não citava a manteiga como ingrediente. Para obter 500 gramas do produto – cerca de 100 gramas a mais do que contém em geral uma lata –, o gasto para a produção caseira do leite condensado ultrapassa a média de valor de uma lata (entre 4 e 7 reais, dependendo da marca). Além disso, leva mais de um dia para ficar pronto, contando o tempo de refrigeração. Como o preço de um litro de leite está bem elevado (entre 4 e 5 reais), sem falar no do gás e da energia elétrica em tarja vermelha, o melhor conselho é mesmo apelar para o leite condensado que vem pronto da indústria.
A Nestlé realiza 26,2% das vendas de leite condensado no país, seguida pela Italac, um grupo alimentício goiano, com 23,2%, e pela Piracanjuba, também de Goiás, com 13,5%, segundo a consultoria Euromonitor. Várias outras indústrias também se dedicam ao produto, como a Mococa, fábrica de laticínios fundada em 1919 na cidade paulista do mesmo nome. “Quando eu falo que trabalho na Mococa as pessoas perguntam: ‘Que marca é essa? É aquela da vaquinha?’”, diz Airton Donizeti da Silva, coordenador de pesquisa e desenvolvimento da fábrica, onde entrou três décadas atrás, quando tinha 27 anos. Hoje uma das suas funções é ser uma espécie de sommelier de leite condensado. “Tenho que provar no mínimo três vezes por semana”, conta. Essas provas são feitas em parceria com confeiteiras e donas de casa que confeccionam quitutes na cidade de Mococa, que tem cerca de 70 mil habitantes.
Silva é do tipo que leva trabalho para casa, inclusive aos fins de semana. “Eu gosto de doce. Quando estou num restaurante e provo um pudim, sempre pergunto qual leite condensado usaram. Se estou numa festa e como brigadeiro, também pergunto. Estou sempre atrás de leite condensado”, afirma, enquanto acaricia um saco plástico com 5 litros de leite condensado que fica em cima da mesa de seu escritório. Para manter a saúde em dia, Silva tem uma rotina de triatleta: faz caminhada todos os dias, natação três vezes por semana e pedalada aos sábados e domingos. Também caminha dentro da área de 10 mil m2 da fábrica.
A Piauí visitou o local onde a Mococa produz o seu leite condensado, vendido numa embalagem feérica, em que o busto de uma vaquinha emerge em meio a raios de luz amarelos e brancos, acima do nome da marca, da data de fundação da empresa e de um suculento pudim. (A Nestlé recusou os pedidos da revista para conhecer a fábrica onde produz seu leite condensado na cidade mineira de Montes Claros.)
A Mococa é anterior à chegada da Nestlé no Brasil. Sua origem remonta a 1919, quando a família Figueiredo Barretto começou a fazer laticínios artesanalmente. O negócio se expandiu, com vários produtos, mas o leite condensado só passou a ser comercializado em 1977. Em 1999, a empresa foi adquirida por um grupo neerlandês Royal Numico, que em 2003 passou o negócio para o grupo goiano Kremon, de capital inteiramente brasileiro. A Mococa chama atenção por estar situada num arborizado bairro residencial. Do pátio, pode-se ver as pessoas em pequenas ações domésticas, estendendo roupa ou lavando o quintal.
No interior da fábrica, o leite corre apressado por numerosos tubos de metal para se fazer condensado, sem que as pessoas vejam passar uma gota sequer do apetitoso líquido, que vai direto para as embalagens. “Para você ter uma noção, se pegar só os canos de apenas um setor tem mais de 13 km de extensão”, explica com empolgação o coordenador de garantia de qualidade da Mococa, Tiago Vilela.
A produção começa com a evaporação do leite num tanque de metal de cerca de 12 metros de altura. De lá, o leite é transferido através de tubos para outro tanque de metal, tão alto quanto, para que seja acrescentado o açúcar. A mistura, sempre invisível aos olhos dos técnicos e visitantes, é transportada por outro tubo até um concentrador/evaporador para que o produto seja aquecido e ocorra a evaporação da água. Depois, outro tubo – e ocorre a aplicação de uma dose extra de lactose, para que o produto final fique homogêneo e não “cristalize”.
A mistura então segue do concentrador/evaporador para outro tanque, onde técnicos tiram, numa espécie de torneira, uma pequena amostra para que seja feita a checagem em laboratório. Esse é o único momento em que é possível ver o produto. Três técnicos verificam desde a coloração e textura até algum tipo de contaminação. Eles também conferem os outros produtos da Mococa, como a manteiga e o creme de leite. A preocupação com uma possível contaminação de toneladas e toneladas de produto é grande: pode resultar num prejuízo de milhares de reais.
Assim que os técnicos dão seu sinal positivo, o produto segue para o envase, e a embalagem é rapidamente lacrada. Como a sala do envase é fechada por paredes de vidro, a reportagem da piauí observou do lado de fora – e com água na boca – o epílogo da produção da guloseima.
Em 2015, a chef Lisandra Amaral teve que empreender uma verdadeira caça ao tesouro no Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, quando resolveu obter uma receita do pudim “genuíno e tradicional”, sem leite condensado. “Tive que conversar com pessoas mais antigas e que vivem nas roças para descobrir como faziam, porque não achei nada nos livros e cadernos, que só tinham recortes com receitas de revista feminina e folhetos da indústria alimentícia”, conta Amaral.
Encontrar a receita foi apenas a primeira etapa da difícil tarefa de fazer o pudim de leite sem leite condensado. Depois que se quebra os ovos, são necessárias até doze horas para conseguir levar o doce pronto à mesa. “O pudim é um pouco chato de fazer, por isso eu entendo como chegaram na loucura do leite condensado”, diz, ao explicar a fascinação que o produto exerce nos brasileiros. Na receita reelaborada pela chef, além de paciência, por causa do longo tempo de preparo, é necessária boa habilidade na cozinha. A infusão de leite, açúcar e cumaru (fruto que recebeu a alcunha de “baunilha amazônica”) precisa ser mexida em fogo baixo até engrossar e levantar fervura. Depois, coloca-se para resfriar. Enquanto isso, a chef bate alguns ovos inteiros e algumas claras extras com meia xícara de açúcar. Quando a infusão chega a uma temperatura amena, pode ser misturada aos ovos. “Não pode ficar nem muito frio, para não comprometer a textura, nem muito quente, para não cozinhar o ovo. Tem que ser uma temperatura exata, tipo mamadeira. E deve-se bater tudo sempre à mão, com fouet, para não aerar”, orienta.
Uma vez achado o ponto, adiciona-se um pouco mais de leite, misturando novamente. O líquido é coado em uma peneira e colocado numa fôrma. “Ah, antes de despejar a mistura, precisa colocar o caramelo”, lembra. O caramelo nada mais é que uma fervura do açúcar na panela, onde a chef vai colocando pacientemente água fervente enquanto mexe com uma colher de madeira com cabo longo. A paciência é outro fator importante nessa etapa, pois é necessário cozinhar em fogo baixo já que o fogo alto pode queimar a calda. Essa etapa também precisa ser feita com antecedência, considerando que o calor da calda pode “estragar” a mistura anterior. “A calda precisa estar fria, senão mistura no leite e vira uma bagunça.” A forma é coberta com papel-alumínio e colocada em banho-maria no forno a 175 graus por cerca de três horas. Feito isso, ainda é preciso deixar na geladeira por, no mínimo, sete horas para só então desenformar.
No Maria Farinha Cozinha, o restaurante de Amaral em São Paulo, o pudim de leite é a única sobremesa que tem um fogão exclusivo para o seu preparo, um modelo doméstico convencional, que destoa do resto da cozinha – toda ela industrial. “É o melhor fogão para fazer pudim”, justifica. Tanto zelo faz com que o carro-chefe do restaurante tenha destaque no cardápio, com um intertítulo: “Pudim de leite da casa – Não leva leite condensado: leve, lisinho e pouco doce.”
Embora a maior parte do retorno dos clientes seja positiva, é comum ouvir que a sobremesa “não é igual à da vó”. Quando isso ocorre, a resposta de Amaral é categórica: “Nunca vai ser igual à da sua avó porque eu não posso voltar no tempo dela. Além disso, temos dificuldade de apreciar doces sem leite condensado porque somos uma geração formada pela indústria, programada para gostar de leite condensado.”
Em seu livro Açúcar: Uma Sociologia do Doce com Receitas de Bolos e Doces do Nordeste do Brasil, Gilberto Freyre escreveu que o açúcar, por ser o primeiro produto de exportação do país, ainda nos tempos da colônia, “passou a dar renome ao chamado Brasil. Mais do que nome: renome.” O açúcar pode ter agradado os estrangeiros, mas a birra deles com a doçaria nacional é antiga – e justamente por causa do seu uso exagerado nas receitas.
O artista francês Jean-Baptiste Debret, que viveu no Brasil no século XIX, deixou registrada em suas cartas a estranheza que lhe causava a quantidade do produto nas sobremesas no país. O naturalista Auguste de Saint-Hilaire, também francês, dizia que o excesso de açúcar aplicado nas compotas de frutas “estragavam” o sabor delas.
A reclamação dos estrangeiros continua até hoje, e o vilão-mor parece ser agora o leite condensado. “O Brasil usa muito leite condensado. Usa para tudo. Sobremesa aqui é muito doce, muito doce. Às vezes é incomível de tão doce”, implica o chef francês Érick Jacquin, jurado do programa MasterChef Brasil, na Rede Bandeirantes.
Deve haver uma explicação – histórica, antropológica ou até psicanalítica – para o gosto dos brasileiros pelo excesso de açúcar e sua predileção pelo leite condensado. Enquanto não se encontra a chave do mistério, basta ficar, nesses tempos difíceis, com a acertada máxima do padre português Antônio Delicado, em seus Adágios Portuguezes Reduzidos a Lugares Comuns, de 1651: “Amargo, basta a vida.” Texto de J. Faddul.
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