sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Primeiros Sons do Hino da Independência, Rio de Janeiro, Brasil (Primeiros Sons do Hino da Independência) - Augusto Bracet




Primeiros Sons do Hino da Independência, Rio de Janeiro, Brasil (Primeiros Sons do Hino da Independência) - Augusto Bracet
Rio de Janeiro - RJ
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, Brasil
OST - 250x190 - 1922


Primeiros sons do Hino da Independência, pintado em 1922, foi o quadro elaborado por Augusto Bracet para atender ao edital da seção de belas artes, da Comissão Executiva do Centenário.
Aluno da Escola Nacional de Belas Artes, de 1902 a 1911, Augusto Bracet (1881- 1960) teve como professores Daniel Bérard, Rodolpho Amoedo e Zeferino da Costa. Em 1911, obteve o prêmio de viagem à Europa, que o levou à Académie Julian, em Paris, onde se aperfeiçoou com Louis-François Biloul, Marcel Baschet e Paul-Jean Gervais. Professor da ENBA, de 1926 a 1951, foi diretor interino por sete anos, a partir de 1938, e, diretor efetivo, de 1945 a 1948. Além do prêmio de viagem, recebeu a medalha de ouro no salão de 1920. Em entrevista concedida a Angyone Costa (1927), Bracet apontava as dificuldades em ser artista no Brasil, dada a inexistência ou a escassez de mecenas, a preferência da elite por artistas estrangeiros e se posicionava contra a adoção de técnicas, faturas, que teriam dado distinção a seu criador mas inibia a criatividade dos seguidores visto considerar a arte expressão da individualidade. Os nus femininos Lindoia, apresentado no salão de 1918, e Direito de Asilo, exposto no salão de 1923, pertencentes ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes, são duas de suas obras mais conhecidas.
Retratando uma cena posterior à declaração da independência do Brasil, despido de quaisquer referências heroicas, baseado na memória de Francisco Castro Canto e Mello, que relata os acontecimentos de 7 de setembro de 1822, dentre eles a composição do hino, cujo trecho, reproduzido no catálogo da Exposição de Arte Contemporânea e Arte Retrospectiva do Centenário, assinala:
"Chegando a palácio, fez immediatamente o principe, em papel, um molde da legenda – Independência ou morte – o qual, sendo levado por mim ao ourives Lessa, à rua da Boa Vista, serviu para que, as seis horas d'essa mesma tarde, estivessem promptas ás duas legendas com que o principe e eu nos apresentámos no theatro. Os da guarda de honra e muitos outros traziam no braço laços de fita verde. Neste interim compôz Sua Alteza o hymno da independência, que, na mesma noite, deveria ser, como foi, executado no theatro".
Datada de 16 de dezembro de 1864, a memória de Canto e Mello foi publicada na Revista Commercial de Santos em 29.12.1864, no Coreiro Mercantil de 11 de janeiro de 1865 e no Brasil Histórico de 22 de janeiro do mesmo ano, após 42 anos do transcorrido. No que alude à composição do hino, apenas informa que a obra teria sido composta em 7 de setembro, num palácio.
A tela de Augusto Bracet representa uma cena na qual D. Pedro, diante de um cravo, extrai o hino comemorativo da emancipação política do Brasil ou, o modo como o pintor a imaginara, optando por colocar o protagonista do ato político como criador de um símbolo para seu próprio ato. Convém observar que a citada memória traz outros episódios interessantes para um quadro histórico, como, por exemplo, o momento em que D. Pedro arrancara os laços portugueses de sua veste e proferia a declaração de independência. O artista optou por retratar uma cena íntima na qual D. Pedro usa as botas de cano longo e a jaqueta militar, peças com as quais o príncipe aparece em vários registros pictóricos, porém rodeado por damas e cavalheiros, como seria apropriado a um príncipe, num momento de exibição de seus dotes artísticos.
Na sala elegante e austera, sentado ao cravo, D. Pedro ocupa o centro da composição, tendo à esquerda uma dama sentada que segura um livreto, de costas para o observador; à frente do príncipe, uma outra senhora sentada, retratada de perfil, tem às mãos uma partitura; uma terceira cortesã, em pé, empunhando um leque, completa o grupo que participa da execução do hino. Ao fundo da tela, um senhor sentado, de frente para o observador, tem em oposição uma senhora de perfil, formando uma linha na qual o príncipe está a meia distância dos dois; no lado direito, às costas do príncipe, em pé, mais duas jovens senhoras e um cavalheiro ouvem a execução do hino recém-composto. O vestuário dos personagens é sóbrio, exceto o do próprio D. Pedro e o da dama no primeiro plano: a calça branca com festões dourados do príncipe e o vestido claro da senhora, com motivos florais, contrastam com os tons escuros das roupas dos demais.
No retrato desenhado por Jean-Baptiste Debret (1836), D. Pedro I usava trajes majestáticos, com os quais eram abertos os trabalhos da Assembleia Legislativa – manto, cetro e coroa – e as botas de cano alto quase sempre, ou sempre, presentes nas representações do primeiro imperador do Brasil. Segundo o artista francês, por volta do final de sua estada no Brasil, D. Pedro I estava se tornando obeso, o que era particularmente notável nas coxas e nas pernas. Tal deformidade, comum aos descendentes da família Bragança, era disfarçada com arte na vestimenta de modo que sua apresentação parecesse nobre e cuidada.
Ao se deparar com D. Pedro I, no portão do Palácio de São Cristóvão, para onde se dirigira com o objetivo de pedir ao imperador que o incorporasse ao exército brasileiro, o jovem alemão Carl Seidler registrou nas memórias de sua estada no Brasil:
"De repente vi um homem de casaca azul, calças brancas, rosto ensombrado por um chapéu de abas largas, da mesma cor, a encaminhar-se do palácio para as cavalariças próximas. (…) Era antes pequeno que grande, sua atitude denunciava o militar, a severa seriedade derramada sobre todos os seus gestos revelava o senhor. Sua cara era levemente marcada por bexigas, a parte inferior do corpo não estava em proporção simétrica com o tronco cheio, os braços eram curtos demais e os dedos demasiado compridos; mas incontestavelmente à primeira vista o homem era bonito".
Embora as descrições de Debret e Seidler sejam dissonantes com relação à altura, ambos reportaram a obesidade do imperador. O imigrante alemão também observara o cavaleiro, sua postura militar e a habilidade do chefe de estado brasileiro em encilhar o cavalo pois, no momento, não havia presente servo que o fizesse. Para um cavaleiro, nada mais natural que usar botas em suas montarias e, no meio latino-americano, as botas imprimiam “caráter vigoroso e dinâmico” a seus grandes líderes, de modo que D. Pedro as incorporou a seu vestuário e, ainda que incompatíveis com ambientes e cerimoniais refinados, eram indissociáveis do ser que as usava. Assim, ao representar o príncipe, em 7 de setembro de 1822, Augusto Bracet não hesitou em representá-lo ao cravo, usando as indefectíveis botas.
A tela de Augusto Bracet, de assunto histórico, exposta no Salão do Centenário, apresenta cores sóbrias, desenho bem definido e ilusão de profundidade, como convém a um quadro de fatura acadêmica. Tal fato não causa surpresa visto que a obra de Bracet é caracterizada por composições onde o nu feminino e os temas literários são predominantes. Nesse sentido, Primeiros sons do Hino da Independência exibe os requisitos de um quadro de pintura histórica não fosse o tema desenvolvido como uma pintura de gênero cujo principal personagem promoveu a emancipação política do Brasil.
Surpreendente, no entanto, é o futuro imperador do Brasil estar à frente de um instrumento musical a extrair a melodia de um possível hino, situação que contrasta com a representação de cavaleiro militarizado, até então, reproduzida nas composições em que D. Pedro é o principal personagem. O Retrato de Alberto Nepomuceno, de Eliseu Visconti; Schubert ao piano, de Gustav Klimt; Concerto privado, de Jean Béraud, são exemplos de cenas que representam músicos em atividade e poderiam servir de referência a Bracet: a tela de Visconti, de 1895, por ser um retrato, traz somente a figura do maestro cearense; na obra de Klimt, pintada em 1899, além do músico, três mulheres em pé compõem a plateia do compositor; no concerto de Béraud, a plateia ocupa o primeiro plano, enquanto o pianista, de costas, ao fundo, é apenas um personagem anônimo, sem rosto, possivelmente indicando que, em 1911, o artista se tornara empregado da burguesia, a cuja benesse se submetera para sobreviver. Não se percebem inovações na fatura do quadro, exceto pelo tema escolhido como alusivo ao rompimento dos laços coloniais entre Brasil e Portugal, que se cristaliza numa sessão de criação musical.
Exposto na Exposição de Arte Contemporânea do Centenário, o quadro de Bracet aparece inscrito com o número 25 no catálogo da citada mostra e foi escolhido pela comissão encarregada para selecionar os quadros de assunto histórico a serem comprados pelo governo federal para compor o acervo da Escola Nacional de Belas Artes, conforme o edital da Secção de Belas Artes da Comissão Executiva do Centenário, publicado no Diário Oficial de 3 de julho de 1921. A tela foi reproduzida em Primores da Pintura no Brasil (1941), de Francisco Acquarone e A. de Queirós Vieira, segundo o Dicionário das Artes Plásticas no Brasil. Atualmente, encontra-se à mostra na exposição permanente "A construção da Nação", do Museu Histórico Nacional, instalado no antigo Arsenal de Guerra e Casa do Trem (de artilharia), que, na Exposição do Centenário, acolheu o Pavilhão das Grandes Indústrias.
Primeiros sons do Hino da Independência recebeu elogiosos comentários na Revista da Semana, em O Jornal, e na crítica de Ercole Cremona para a revista Illustração Brasileira. A Revista da Semana (1923) assinala a pesquisa feita pelo artista no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e no Arquivo Nacional; o articulista de O Jornal (23 nov. 1922) acentua a excelência pelas figuras bem resolvidas mas aponta excesso de pessoas e móveis na composição; na Illustração Brasileira (1923), o crítico ressalta que pequenos defeitos não comprometem as qualidades do quadro. Já Fléxa Ribeiro (11 dez. 1922), em artigo para O Paiz, observa o caráter pessoal da pintura de Bracet, identificando problemas no movimento, na coloração, na perspectiva, no volume das figuras. Cumpre lembrar que Fléxa Ribeiro endossou o parecer do juri incumbido de selecionar as telas de assunto histórico a serem adquiridas para o acervo da Escola Nacional de Belas Artes, lido por ele, na reunião da congregação, de acordo com a ata lavrada no dia 2 de janeiro de 1923 (ENBA).
No Brasil, o mecenato exercido durante o período monárquico não encontraria paralelo na república que se instalara em 1889: isto o autor de Primeiros sons do Hino da Independência reclamava ao entrevistador, Angyone Costa, queixando-se das dificuldades do artista para sobreviver, dada a ausência de encomendas oficiais, como também, a preferência das elites por artistas estrangeiros. 
Ao retratar D. Pedro como um artista, Bracet reverenciara a monarquia enquanto incentivadora do fazer artístico no país e homenageava o homem que, efetivamente, decretou o início dos cursos de belas artes no país que, embora instituídos por D. João VI, somente no reinado de D. Pedro I seriam implementados. As dificuldades do artista com a burocracia estatal fica evidente na aquisição do quadro Lindoia que, exposto no Salão de 1918, demandou um prolongado processo, iniciado em novembro de 1918 e concluído em setembro de 1924, quando, por fim, um ofício do diretor da Escola Nacional de Belas Artes comunicava ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores o pagamento da tela ao pintor. A preocupação de Bracet com a sobrevivência, enfatizada durante a entrevista a Angyone Costa talvez justifique a opção por uma carreira de professor em detrimento do exercício de artista, conforme observado por Quirino Campofiorito ao se referir à modesta produção do pintor carioca.
Comparando o quadro de Bracet ao de Georgina, Ana Paula Simioni vê ali uma homologia inversa em termos de gênero:
"Um paralelo entre as duas telas realizadas por ocasião das comemorações do centenário, hoje dispostas lado a lado no Museu Histórico Nacional, sugere o quanto a de Georgina masculiniza a figura da Imperatriz, ao passo que a de Bracet, ironicamente, feminiliza a imagem de D. Pedro I. Enquanto Leopoldina é retratada em meio a um conjunto de homens de Estado, em um ambiente oficial, embora alegremente colorido, seu consorte está disposto em meio a um grupo predominantemente feminino dentro de um salão particular. Mas o ponto mais significativo diz respeito, sem dúvida, às relevâncias das ações exercidas por um e outro: Leopoldina é figurada como arquiteta intelectual do movimento que conduz à emancipação política do país, sua audiência, composta por ministros, a escuta com atenção, tendo em vista a urgência e relevância do momento histórico por ela narrado. Também D. Pedro I é ouvido atentamente pelo seu público, todavia o que a tela sugere é que sua contribuição para o processo de independência a ser celebrada foi a composição do hino nacional, que ele estaria executando, nesse instante registrado, em um piano, instrumento à época visto como essencialmente feminino".
Nas críticas do período, não se encontraram referências à inversão de papéis proposta por Simioni. 
Por outro lado, pode-se considerar que o exercício da criatividade, do fazer artístico, embora não fosse, totalmente, vedado à mulher, ainda estava restrito a raras manifestações; D. Pedro, ao cravo, está compondo um símbolo nacional e não apenas executando uma partitura musical, na época, uma atividade de natureza quase exclusiva do gênero feminino. Há ainda a observar que, em janeiro de 1921, entre solenidades cívicas e cerimônias religiosas, os restos mortais de D. Pedro II e de D. Tereza Cristina foram repatriados, revogando-se, definitivamente, o banimento da família real de modo a sugerir uma revisão do período monárquico, como transparece em edital de O Paiz (8 jan. 1921), que sob o título Bem vindos sejam, enaltecia a qualidades do imperador enquanto governante, embora defendesse a república como uma aspiração do povo brasileiro e uma necessidade imposta pelo mundo contemporâneo. Assim, numa outra leitura possível da tela de Bracet, D. Pedro assume o papel de um demiurgo que oferece à plateia os acordes de um hino a embalar a marcha de um povo livre, à busca de seu destino.

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