sábado, 8 de outubro de 2022

A Saga do Porta-Aviões que Vaga há Meses no Mar e Nenhum Porto quer Aceitar - Artigo

 


A Saga do Porta-Aviões que Vaga há Meses no Mar e Nenhum Porto quer Aceitar - Artigo
Artigo




Dois meses atrás, nos primeiros dias de agosto, um rebocador holandês de grande porte, o Alp Centre, partiu do porto do Rio de Janeiro, levando a reboque aquele que já foi o maior navio militar brasileiro: o ex-porta-aviões São Paulo, que estava parado havia cinco anos.
Destino: um estaleiro em Aliaga, na Turquia, onde o grande navio, de 266 metros de comprimento, seria desmontado e transformado em sucata, após ter sido comprado pela empresa turca Sok Denizcilikve Tic, através de um leilão promovido pela Marinha do Brasil.
Teria sido o fim de uma novela que se arrastava há anos, desde que a reforma do velho porta-aviões, orçada em cerca de R$ 1 bilhão, fora considerada inviável e substituída pelo leilão.
Mas não.
Desde então, uma sucessão de absurdos transformou o destino do ex-porta-aviões brasileiro em um típico pastelão.
A começar pelo fato de que, agora, dois meses depois - e após ter cruzado duas vezes o oceano Atlântico a reboque, uma na ida, outra na volta -, o porta-aviões voltou para o mesmo país de onde partiu: o próprio Brasil.
A decisão de mandar o comboio dar meia volta e retornar ao Brasil, um mês depois de ter partido do Rio de Janeiro, quando as duas embarcações já estavam prestes a cruzar o Estreito de Gibraltar para chegar à Turquia, foi tomada depois que o governo turco, pressionado por ambientalistas, proibiu a entrada do porta-aviões brasileiro no país, por não se saber ao certo quanto de material tóxico poderia haver dentro do navio - embora um inventário feito ainda no Brasil, antes da partida, com a chancela do Ibama, tivesse atestado a presença de 9,6 toneladas de amianto a bordo, material cancerígeno mundialmente condenado, que, de acordo com a Convenção de Basiléia, da qual o Brasil é signatário, jamais poderia ter sido exportado.
Contudo, desde o princípio, especialistas contestavam essa quantidade de amianto atestada no navio, alegando que seria muito mais, uma vez que uma embarcação idêntica, o porta-aviões francês Clemenceau, desmanchado em 2009, continha nada menos que 650 toneladas desse material nas suas tubulações.
A empresa contratada para fazer o levantamento se defendeu dizendo que a inspeção fora feita por "amostragem", e que, efetivamente, só vistoriou 12% do navio, o que foi aceito pelas autoridades.
Como se não bastasse isso, há suspeitas de que o interior do porta-aviões também possa conter outras substâncias tóxicas, além de componentes radioativos, o que só agravaria o problema, deixando ainda mais clara a negligência no inventário que foi feito do navio, antes da sua partida do país.
Em nota oficial, a Marinha do Brasil afirma que "o atual proprietário do navio é o estaleiro turco Sök Denizcilik Tic Sti", com "termo de transferência e posse de propriedade concedido", e que "todas as ações foram conduzidas em plena consonância com a legislação brasileira e internacional vigente". Também enfatiza que, no edital do leilão, já constavam "exigências que obrigam o atual proprietário do casco a cumprir as normas internacionais", e que cabe ao comprador conduzir o "processo de exportação junto ao órgão ambiental da Turquia e o Ibama, que é a autoridade nacional competente para emitir a autorização para a exportação de resíduos perigosos ou controlados". Por fim, afirma que, na década de 1990, a Marinha Francesa realizou uma "ampla retirada de amianto dos compartimentos do navio", e que a quantidade atualmente existente nele "não oferece riscos à saúde".
Surpreendido com a decisão turca, o Ibama, que havia autorizado a exportação da embarcação (a despeito da Convenção de Basiléia proibir a circulação de amianto, mesmo em pequenas quantidades), voltou atrás e mandou que ele fosse trazido de volta ao Brasil, embora o comboio já estivesse do outro lado do oceano - um fato inédito na história da navegação brasileira.
Começava ali a segunda parte do festival de absurdos no qual se transformou a venda do porta-aviões brasileiro para desmanche na Turquia.
Como estava proibido de seguir em frente, já que havia deixado o Brasil sem a devida inspeção, não restou alternativa ao rebocador a não ser dar meia volta e cruzar novamente o Atlântico, no sentido oposto, arrastando aquele inerte porta-aviões, que fora vendido sem os motores nem condições de navegar por conta própria - uma epopeia de cerca de 7 000 quilômetros para ir, e outro tanto desses para voltar.
No total, entre ida e volta, o massivo comboio passou dois meses zanzando no Atlântico, ao custo estimado de 30 000 dólares, ou cerca de R$ 160 000, por dia de navegação - uma despesa de cerca de quase R$ 10 milhões, mesmo valor que a empresa turca Sok Denizcilikve Tic pagou pelo porta-aviões no leilão, o que, no entanto, para alguns especialistas, teria sido a primeira irregularidade deste caso, já que o navio valeria bem mais que isso.
O festival de irregularidades começou logo após a partida do Rio de Janeiro.
No mesmo dia em que o comboio deixou a cidade, em 4 de agosto, uma liminar da justiça brasileira, expedida em favor de um pedido impetrado pelo advogado Alex Christo Bahov, que representa a empresa Cormack, ex-parceira da Sok Denizcilikve Tic no Brasil (mas que rompeu relações com os turcos logo após o leilão, por divergências comerciais), determinou que o porta-aviões fosse trazido de volta ao porto, "até que o Ministério Público se manifestasse" sobre a presença de substâncias perigosas a bordo, e eventuais malefícios que isso pudesse ter trazido aos operários que participaram da preparação do navio para a sua última viagem.
A ordem, no entanto, foi ignorada pelos responsáveis pelo comboio, e, mais tarde, revogada pela própria justiça, mediante a alegação da Marinha do Brasil de que o porta-aviões já estava fora dos limites do mar territorial brasileiro quando a liminar foi expedida, o que foi veemente contestado pelo impetrante do pedido.
Só um mês depois, quando o governo da Turquia barrou a entrada do comboio no país - e o Ibama voltou atrás na autorização de exportação de um navio com material mundialmente proibido - é que aquela primeira ordem de retorno começou a surtir efeito.
Mesmo assim, não totalmente.
Antes que o velho porta-aviões, temporariamente salvo do desmanche, voltasse a tocar o solo brasileiro, houve um novo capítulo na inacreditável saga que aquele comboio vem desempenhando, há dois meses, no Atlântico: a proibição de regressar ao mesmo porto de onde ele partira, o do Rio de Janeiro.
E por ordem da própria Marinha do Brasil, que vendera o navio aos turcos e o entregara sem a devida averiguação e documentação.
Quando o lento comboio já estava quase chegando de volta ao Rio de Janeiro, uma ordem do órgão máximo da navegação brasileira determinou que ele desse novamente meia volta, e subisse, uma vez mais, a costa brasileira, até o porto de Suape, no litoral de Pernambuco, a mais de 1 500 quilômetros de distância.
O motivo seria uma vistoria, que, conforme determina as leis da navegação marítima, precisa ser feita no navio, após tanto tempo sendo rebocado no mar. Mas não foi explicado por que isso não poderia ser feito no Rio de Janeiro.
E lá se foi o perambulante comboio para mais uma longa jornada, que só terminou na última quarta-feira, quando, por fim, rebocador e porta-aviões chegaram ao porto de Suape, em Pernambuco.
Onde, no entanto, também não pode atracar.
Por recomendação da Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco - CPRH, que teme a contaminação da região pelo que possa haver no interior do navio moribundo, a administração do porto de Suape ainda não deu autorização para que o porta-aviões (que segue sendo rebocado, dando sucessivas voltas ao largo da costa, até porque comboios desse tipo não podem ficar parados nem ancorados), possa, finalmente, parar de ser arrastado pra lá e pra cá no mar, e atracar em algum porto.
Antes, porém, o porta-aviões terá que passar por uma vistoria, a ser conduzida pela própria Marinha, que, entre outras coisas, irá averiguar as condições de flutuabilidade do navio, após tanto tempo sendo puxado no mar.
"O correto é que todo o amianto e material tóxico que ainda existe no interior do navio seja retirado, antes de ele voltar a ser entregue ao comprador, porque a convenção mundial diz que esses tipos de substâncias não podem circular no meio ambiente", diz o advogado Christo Bahov, que é especializado em direito internacional marítimo.
"No Brasil, nós temos como fazer isso, seguindo os protocolos da Abrea - Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto. Mas é uma operação delicada, demorada e com riscos de saúde para os operários envolvidos. E quem irá fiscalizar esse processo e pagar a conta da remoção das substâncias, o que pode levar quase um ano?", questiona o advogado, que também foi o principal responsável pela improvável volta do porta-aviões ao Brasil, dois meses após ele ter partido para uma viagem que deveria ter sido sem volta.
"Só duas pessoas acreditavam que o porta-aviões São Paulo retornaria ao Brasil, diante de tantas irregularidades", diz o advogado. "Eu e um certo admirador daquele navio, que sempre quis salvá-lo para transformá-lo em museu flutuante. E que, agora, ganhou uma segunda chance".
O "admirador" em questão é o paulista Emerson Miura, de 51 anos, um ex-soldado da Aeronáutica, que, ao saber da intenção da Marinha de vender o navio para ser transformado em sucata, decidiu criar um instituto, o São Paulo-Foch ("Foch" era o antigo nome do porta aviões São Paulo, antes de ser comprado da França), para tentar transformar o porta-aviões em um museu flutuante, e assim preservá-lo.
Em sua quixotesca cruzada ("Já me chamaram de tudo: romântico, sonhador, maluco. Não me importo. Luto por uma causa, que é a conservação de um bem público e a sua transformação em algo educativo, não em ferro-velho", diz o ex-soldado, que já foi office boy, escriturário, vendedor ambulante de perfumes e hoje ganha vida como massoterapeuta autônomo, atividade que lhe rende pouco mais que um salário mínimo por mês), Miura é estimulado por um motivo de ordem pessoal: a morte de sua esposa, de câncer, no ano passado, quando os dois lutavam juntos pela transformação do navio em um centro cultural.
"Era o sonho dela e, enquanto este navio existir, lutarei por ele, também como uma homenagem à minha mulher. É uma oportunidade única de preservar o maior navio que o Brasil já teve", explica o abnegado paulista, que, embora ainda não tenha feito decolar o seu audacioso projeto, já conseguiu uma vitória difícil de se imaginar: a de ver o avanço do gigantesco porta-aviões rumo ao desmanche retroceder.
"Ganhamos mais tempo para agir", diz Miura, que, junto com o advogado Christo Bahov, comemorou a volta forçada do porta-aviões ao Brasil.
Mas por diferentes motivos.
"O que me move é o sentimento de justiça, e o que a empresa que comprou o navio deve ao meu cliente", diz o advogado, que, diante de tantos contratempos, com idas e vindas no mar, acha que a empresa turca pode desistir do negócio e devolver o navio ao Brasil, para que um novo leilão seja realizado.
"Todo o processo foi errado", avalia o advogado. "Do leilão, que vendeu o porta-aviões por um valor muito abaixo do que ele valia, à autorização de exportação, que não poderia ter sido emitida, já que ainda havia amianto dentro do navio".
"As autoridades brasileiras foram, no mínimo, negligentes, para não dizer outra coisa", diz Christo Bahov, que atuou de forma decisiva para que o porta-aviões voltasse ao país.
O porta-aviões São Paulo foi vendido aos turcos através de um conturbado leilão, que chegou a ser adiado algumas vezes.
Mas, conturbada também foi a própria história daquele porta-aviões no país.
Comprado, usado, da França, no ano de 2000, o São Paulo substituiu o lendário porta-aviões Minas Gerais, primeiro navio-aeródromo que o Brasil teve, mas sua vida útil foi tão curta quanto problemática.
Com uma intermitente série de problemas mecânicos (entre eles, o trágico rompimento de um duto de vapor, em 2004, que resultou na morte de três tripulantes), o São Paulo nunca conseguiu navegar por muito tempo, sem exigir reparos.
Ao longo dos 17 anos que passou na Marinha do Brasil, navegou pouco mais de 200 dias, o que o tornou um incômodo na frota e acelerou seu processo de descomissionamento.
Surgiu, então, outro problema: o que fazer com ele?
A solução foi vendê-lo como sucata em um leilão internacional, vencido pela empresa Sok Denizcilikve Tic, que, entanto, não só não conseguiu receber o navio para desmanche no seu país, como ficou com uma batata quente nas mãos, que, agora, aparentemente, não sabe como descascar.
Diante do atual impasse, uma das suspeitas é que o comprador do navio esteja tentando ganhar tempo para encontrar uma brecha nas regras da Convenção de Basiléia que permita, em caráter excepcional, que o porta-aviões seja transportado de volta à Turquia uma vez mais (seria a terceira travessia do comboio pelo Atlântico, possivelmente um recorde do gênero), já que do jeito que está não pode ficar, e em algum lugar, o navio, afinal, terá que parar.
O argumento para isso seria um apelo quase humanitário: o rebocador que vem arrastando o porta-aviões pra lá e pra cá há mais de dois meses no mar, já estaria enfrentando carência de combustível e até de suprimentos para os seus tripulantes - embora isso pudesse ser feito aqui mesmo no Brasil, sem que o comboio tivesse sequer que parar em algum porto, o que, neste momento, seria difícil de conseguir.
"Eles vão apelar para os sentimentos, ou para a legislação, alegando que os tripulantes já estariam com poucos suprimentos, mas é pura manobra", diz o advogado Christo Bahov, que também acredita que os turcos possam tentar vender o navio, do jeito que está, para o desmanche em outro país, como forma de se livrar do problema.
Neste momento, ninguém sabe exatamente o que será feito dele.
Nem mesmo onde irá atracar, a fim de parar de ficar zanzando pra lá e pra cá no mar.
A novela do ex-porta-aviões brasileiro que não tem onde parar, ainda não terminou.
O porta-aviões São Paulo foi o quinto navio da história da Marinha do Brasil a ser batizado com o nome do estado mais desenvolvido do país.
Mas, ironicamente, o seu homônimo antecessor, o encouraçado São Paulo, também teve um final de vida problemático - e trágico -, justamente quando era igualmente rebocado para o desmanche, no meio do Atlântico, em outubro de 1951, que resultou na morte de oito tripulantes que seguiam a bordo, e, mesmo assim, ninguém nunca foi punido.
Se a venda do único porta-aviões que o Brasil possuía vier a ser cancelada, um novo leilão não for realizado e o utópico projeto de transformação do navio em museu flutuante por fim avançar (o que, no entanto, é pouco provável, dado o volume de dinheiro necessário, embora o advogado Christo Bahov garanta que já há empresas interessadas), não será a primeira vez que um velho porta-aviões ganha outro destino que não o desmanche.
Ao contrário, diversos deles já viraram atrações do gênero.
Um dos mais famosos foi o lendário porta-aviões russo Minsk, que atuou fortemente na época da União Soviética e da Guerra Fria, que, ao ser aposentado, foi transformado em parque temático de diversões, na China.
Mas o negócio não deu tão certo quanto os compradores chineses imaginavam e, após um tempo, ele foi vendido para outro empresário, que, na falta de melhor lugar para atracar o imenso navio (mesmo problema do porta-aviões brasileiro, que ninguém sabe dizer onde ficará guardado, até que seu futuro seja decidido), o enfiou dentro de uma patética lagoa, no interior da China, à espera de nova serventia.
Desde então, há anos, ele permanece ali, de onde nunca mais poderá sair, nem mesmo para ser desmontado.
"As pessoas vivem me dizendo que transformar o porta-aviões São Paulo em atração cultural é uma missão impossível", diz o determinado protetor do navio, Emerson Miura.
"Mas, trazê-lo de volta ao Brasil, depois de já ter partido, também era algo que ninguém imaginava que pudesse acontecer".
E não é que aconteceu?

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