quinta-feira, 17 de junho de 2021

"Sem Futuro", Jornaleiro Mais Antigo de São Paulo se Despede da Profissão - Tiago Dias

 





"Sem Futuro", Jornaleiro Mais Antigo de São Paulo se Despede da Profissão - Tiago Dias
Artigo




"Oi, sumido!". Não demora para Salvador ser reconhecido naquela banca de revistas. Ele cumprimenta o cliente com um soquinho de mão e ri por trás da máscara. "Opa! Sumido nada, tô aqui". São 9h de uma terça-feira nublada e úmida de garoa tipicamente paulistana. Durante toda a manhã, a cena se repetiria muitas vezes, como se aquele senhor baixinho, com olhar expressivo e leve sotaque português fosse uma espécie de celebridade.
Para quem mora e trabalha há anos na região central de São Paulo e passa todo dia pelo viaduto Nove de Julho, altura do número 185, Salvador Neves é, de fato, um personagem ilustre. Cris, morador de rua da região, é um dos que param em frente à banca ao avistar a cabeça calva com curtos fios grisalhos na lateral. "Não tem quem não o conheça por aqui. Seu Salvador é o queridão de todo mundo."
As reações afetuosas tinham uma razão especial para existirem naquele dia. O jornaleiro havia desaparecido da banca desde aquela semana de março de 2020, quando a pandemia fez a cidade que nunca dorme entrar em quarentena. O filho Otávio decidiu, no mesmo dia, que o dono e garoto-propaganda do principal negócio da família tinha que ficar numa casa no interior, isolado das pessoas.
Foi a primeira vez que a Banca Estadão, famosa entre os notívagos por ser 24 horas, não abriu suas portas. E a primeira vez, desde 1957, que o jornaleiro mais antigo de São Paulo (como ele se auto-intitula) passou mais de um mês sem trabalhar.
Apesar da ocasião, Salvador está sem o jaleco azul com bolsos fundos para as moedas de troco, item essencial para sua jornada madrugada adentro. "E cadê o chapeuzinho?", pergunta outro cliente que o reconhece. Salvador ri alto e espaçado: "Tá descansando, estava cansado".
A camisa social amarela guarda o RG e o cartão do banco, sinal do que realmente importa em seus 85 anos. "Eu só vim hoje pra provar que eu estou vivo no banco, senão minha aposentadoria não cai", diz. Parece desapegado do negócio de uma vida.
"Saudade?", ele repete a pergunta do repórter. O filho Otávio, do lado de dentro do caixa, olha o pai, também à espera da resposta. Salvador responde, olhando de volta: "Agora é com ele. O que eu tinha que fazer eu já fiz."
Salvador Neves chegou de navio em São Paulo em 1957, vindo de Portugal com o pai, a mãe e sete irmãos. Logo de cara, arranjou emprego no centro da cidade, como jornaleiro. "Fiz minha vida aqui ao redor", ele diz, olhando para os prédios em torno do viaduto, seu local de trabalho há quase 50 anos. "Plantei milho na avenida Consolação, deu cada espigão!", conta.
A família vendeu um caminhão de batata e alguns quilos de feijão para vir ao Brasil em busca de prosperidade. Mas o país hoje, ele diz, lembra muito a situação em Portugal. "O povo estava passando fome. É o que está acontecendo aqui. Nós não temos presidente e os latifundiários estão comandando o país. Vão lá fora, compram arroz e feijão por 5 e vendem por 200 pro povo", explica.
Cinco anos depois, Salvador teve sua própria banca — que, na época, era de madeira e se resumia a dois cavaletes e uma tábua na porta de um bar. Ele mostra uma foto amarelada em que aparece encostado ao lado dos jornais, enquanto um cliente lia as notícias do dia.
Tinha pinta de galã, com o bigodinho na régua, que mantém até hoje. "Eu ficava 14 horas de pé. Trazia no lombo mil exemplares. De manhã era uma fila que se fazia para comprar. Minha banca estava em primeiro lugar nas vendas", diz orgulhoso.
O lugar exato está a alguns metros dali. Salvador dá passos firmes na calçada esburacada e anda curvado em direção à praça Desembargador Mario Píres, onde se encontram a avenida Consolação e a rua Martins Fontes. Naquela manhã, funcionários da prefeitura quebravam o pavimento no cruzamento.
Ao som das britadeiras, ele segue com o dedo em riste em direção ao poste de luz antigo. O chamado "poste da Light", que iluminou São Paulo de uma forma ampla em 1927, é o único elemento da foto que ainda está ali: cheio de adesivo e alguns chicletes ressecados. "Não tinha nenhum desses prédios, era tudo casinha", diz.
Uma mulher de cabelos grisalhos passa e o reconhece. Simpático, logo mostra a foto da época. "Foi exatamente aqui, foi quando eu comecei", aponta.
As notícias que mudaram a vida das pessoas nesses últimos 50 anos foram matéria-prima para Salvador prosperar. Casou, teve dois filhos e duas bancas. A esposa Teresinha o acompanhou em boa parte dessa trajetória, inclusive no dia em que ele mais vendeu jornal. Foi no incêndio do edifício Joelma, em 1974.
Daquele mesmo viaduto, dava para ver as chamas e os vultos de pessoas que se jogavam do prédio, mas era na banca que todos esperavam a edição da tarde para entender aquilo que viam de longe. "Vendi 100 jornais por minuto. Eu dava os jornais e ela pegava o dinheiro". Teresinha morreu em 2018.
Ele interrompe a história ao ver que uma mulher espera ser atendida na banca: "Pois não, senhora?". "Tem jornal pra cachorro?"
Otávio aponta para a pilha de pacotes de jornais cheios de notícias antigas. São mais procurados e mais caros do que a edição daquele dia. Dois quilos por R$ 17. "Agora a gente recompra para essa nova finalidade", diz.
O filho tem 54 anos e é jornaleiro há 35, quando deixou de trabalhar na área de cobranças do banco Itaú para acompanhar o pai. "Era uma época em que o povo chegava antes aqui para saber o resultado do jogo do bicho, do jogo do campeonato de ontem. Que o pai vinha na sexta comprar gibi para o filho e revista para a mulher. Não tinha internet. Agora ela acabou com tudo", diz, com indignação.
As revistas ainda estão expostas nas prateleiras dos fundos e na parte mais visível da entrada da banca, mas Otávio diz que é por uma questão técnica. "A prefeitura diz que a gente é obrigado a ter 60% de revistas, mas se for só revista a gente fecha". Ele avisa o pai da última novidade: "A 'Época' parou de circular esse mês". "É mesmo? Parou, parou?", pergunta Salvador.
Durante o período de três horas, apenas cinco jornais haviam sido vendidos. Os outros pedidos foram cigarro (solto), chocolate, chiclete e uma recarga de celular (não efetuada). "Caiu o sistema", avisa Otávio para um cliente.
"A pandemia também ceifou muita coisa", ele diz. "Antes, eu vendia 50 [exemplares do jornal] 'Agora', hoje vendo uns 10. Não tem futuro", diz. O fato é que o número de estabelecimentos cadastrados como "banca de jornal" tem caído ano após ano na capital paulista. Entre 2009 e 2019, a queda havia sido de 17%. Otávio faz as contas: na zona leste, onde mora, não há mais banca para comprar jornal. No dia que isso se tornar realidade também no centro, o que ele vai fazer? "Não faço ideia", diz, deixando os óculos pendurados por uma cordinha no pescoço.
"Como é que eu ia imaginar essa situação naquela altura?", analisa Salvador. Entre bolsas, cachecóis, guarda-chuvas e pastas para documento pendurados na banca, ele é pragmático: "Acho que o brasileiro lê menos hoje, e é o que a gente tem que fazer. Tem que vender."
Uma jovem para na banca e pega o jornal "O Amarelinho", publicação que reúne classificados de empregos. Ela conta as moedas, diz que está procurando vagas: "Tem que manter a fé, né?"
Apesar de estar sem o uniforme, Salvador assume a banca enquanto Otávio vai pagar contas na lotérica. Uma mulher logo entra e pergunta por óculos. "O meu quebrou vindo para cá e eu tenho que ir trabalhar", diz, ansiosa. Salvador mostra os modelos. "Quanto é?". Não há nenhuma etiqueta. Ele chuta: "R$ 20". "Eu prefiro vender revista porque eu sei o preço de cor", diz, quando a moça sai. Cada compra naquele momento é registrada à mão num papelzinho. "Não sei mexer nisso", diz olhando para o computador que registra cada venda.
No interior, em Campo Limpo Paulista, vive sem internet ou celular. Mesmo após tomar as duas doses da vacina contra a covid, ele não pretende voltar e enumera com entusiasmo as coisas que manuseia no lugar dos jornais: "Eu trituro café, planto couve, estou fazendo até colorau."
Salvador conta que vislumbrou a aposentadoria na prática em 2017, quando a prefeitura proibiu que a banca continuasse na esquina do viaduto com a Consolação, seu principal ponto desde os anos 1960. Segundo o poder público, a estrutura dificultava a passagem de pedestres, mas Salvador põe a culpa no empreendimento imobiliário que avançou o espaço da calçada. Aos 81, comprou briga no gabinete do prefeito e foi notícia em um dos jornais que mais vendia. Ele vê a foto do governador João Doria pegando sol, estampada na capa da edição do dia. "Culpa dele." Ao relembrar do episódio, repete: "Já ganhei meu dinheiro, dei casa pra todos meus filhos, já deu pra mim."
Ele confessa que sente saudades de conversar com as pessoas. Quando esse sentimento aperta, pega o carro e vem para a capital. Mas não costuma ficar muito tempo e, antes do anoitecer, já está em casa, onde vive com galinhas, um casal de patos, seis gatos e a nova companheira. "Me divirto mais lá", diz, convicto.
Nota do blog: Uma das matérias mais tristes que já guardei no blog. As bancas de jornais fizeram parte da minha infância, eu adorava ir comprar gibis, revistas, jornais, figurinhas, etc.
Ir na banca ver se as suas revistas preferidas tinham saído, especialmente aos domingos, era uma delícia! Você virava amigo e conversava com o jornaleiro, com as outras pessoas, fazia amizades, dava risadas, comentava as notícias, conhecia outras publicações, etc. Pelo menos, de quatro a seis vezes por mês, eu visitava bancas de jornais.
Me lembro de comprar, na infância, gibis da Disney, do Recruta Zero, a Mad, Chiclete com Banana, etc, não esquecendo dos álbuns de figurinhas, verdadeira febre da criançada...rs. Curiosamente, embora gostasse dos personagens, não comprava nada da Turma da Mônica, achava chato...rs.
Além disso, também era "rato" de bancas de revistas usadas antigas, eu comprava bem mais do que as revistas novas devido a enorme oferta e preço acessível, na época meus parcos cruzeiros rendiam bem mais ali...rs.
Posteriormente, com o passar dos anos, passei a comprar e colecionar várias revistas, sendo as principais: Viagem e Turismo (extinta), Nossa História (extinta), Revista de História (extinta), Quatro Rodas, Duas Rodas, Motoshow (extinta), Classic Show, Playboy (extinta), Sexy, Veja, Aventuras na História, Leituras da História (extinta), História Viva (extinta), Mundo Estranho (extinta), Superinteressante, Flap Internacional, entre outras (eu considero uma revista "extinta" quando ela para de sair no formato físico, entenda "papel", versões "digitais" não servem para mim, penso que não são revistas, são outro tipo de comunicação).
Tinham também as coleções de livros e enciclopédias vendidas em fascículos, eu sempre estava colecionando alguma delas.
Outro fato a relembrar são os jornais, era um prazer imenso ler as notícias durante a semana e, principalmente, aos domingos (que era a principal edição dos jornais). Além de, claro, ver e ficar por dentro dos preços de imóveis, veículos e uma infinidade de outros produtos nos classificados. Meus preferidos eram a Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo, o Notícias Populares (extinto) e A Cidade (extinto). Hoje, infelizmente, efeito da modernidade, os poucos jornais sobreviventes não são nem sombra do que eram no passado, edições minúsculas, caminhando sem trégua ou parada, em direção a extinção no formato físico.
Atualmente, ao ir em bancas de jornais, sinto uma imensa tristeza em ver a pequena quantidade de publicações disponíveis (sem falar na queda de qualidade das reportagens, fruto, especialmente, da baixa receita proporcionada pelas revistas, o que inibe a contratação de bons repórteres e colunistas). Elas se tornaram uma espécie de "venda", onde você encontra de tudo, menos o objeto principal (não as culpo, foi a solução que encontraram para não fechar de vez).
É deprimente constatar que jornais velhos, utilizados para necessidades animais, custam mais caro que os atuais disponíveis em bancas. É até um desrespeito aos profissionais que trabalham nas redações. Antigamente, tirando os ferro-velhos que compravam por quilo para reciclar, ninguém mais comprava jornais velhos, achávamos os mesmos descartados como lixo nas ruas ou ganhávamos de amigos que sabiam que utilizávamos para outros propósitos, como fazer embalagens ou necessidades animais.
De minha parte, das revistas que resistiram, continuo firme na compra das seguintes: Aventuras na História, Quatro Rodas e Classic Show. Continuarei comprando até a extinção (delas ou minha...rs).
Também gostaria de dizer que sinto uma imensa saudade de comprar duas revistas que acabaram extintas, a Viagem e Turismo (Editora Abril) e a Revista de História (Biblioteca Nacional). Comprá-las era um prazer, fazem muita falta, sua extinção foi como perder um amigo ou parente querido.
Finalizando, em um futuro próximo, bancas de jornais e revistas serão apenas memórias. São coisas que não voltam mais. As novas gerações não possuem o hábito da leitura, sendo "ratos" de celular, a maioria se "informando" através do WhatsApp e assemelhados. O progresso, nem sempre, é progresso...

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