Minha Terra, Brasil (Minha Terra) - Hélios Seelinger
Brasil
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, Brasil
Tríptico OST - 300x600 - 1921
Minha terra foi a obra exposta por Hélios Seelinger no Salão do Centenário e selecionada pela comissão encarregada de adquirir os quadros de assunto histórico para integrar o acervo da Escola Nacional de Belas Artes. No conjunto de 600 X 300 cm, o artista se valeu de imagens representativas das navegações portuguesas, as caravelas identificadas pela cruz de malta estampada nas velas, para aludir ao descobrimento; uma festa dionisíaca, grilhões rompidos e, talvez, a alegoria da monarquia para indicar o rompimento dos laços entre Brasil e Portugal como também o futuro étnico do país; cavalaria e bandeiras para simbolizar o advento da república.
Bizarro, na acepção de estranho, excêntrico, extravagante, era o adjetivo frequentemente utilizado pela imprensa ao se referir a Hélios Aristides Seelinger (1878-1965):
“Foi hontem à tarde, o “vernissage” do distincto e bizzaro pintor patricio Helios Seelinger”, informava a Gazeta de Notícias, na edição de 10 de agosto de 1912. O mesmo jornal, em 1 de novembro de 1914, publicava um artigo intitulado “Helios Seelinger – um artista bizarro e paradoxal”, no qual o articulista, M. Nogueira da Silva, utiliza o termo sem qualquer parcimônia – sete vezes, em dezesseis parágrafos – para elogiar o caráter singular da arte do pintor. O crítico de arte Gonzaga Duque, citado por Roberto Pontual, assinalou em Contemporâneos (pintores e esculptores):
Hélios não se contenta com o natural, não é em rigor um naturalista; o que o toca no centro emotivo, o que o comove e o leva da ideia à imagem, é esse natural depurado na sua imaginativa. E essa se nos desvenda nos bizarrismos de uma superexcitação; de um estado hipernervoso que determina fases gerais da psicopatia.
Aluno da Escola Nacional de Belas Artes entre 1892 e 1896, completou seus estudos em Munique com Franz Stuck; retornou à Europa em 1903, como pensionista da ENBA, frequentando a Académie Julian, sob orientação de Jean Paul Laurens. Nos salões, foi posteriormente premiado, em 1912, com a grande medalha de prata; em 1920, com a pequena medalha de ouro; com a medalha de honra, em 1951; e, com o prêmio de viagem ao país, em 1955. Em 1911, Seelinger realizou trabalhos decorativos para a sede do Clube Naval do Rio de Janeiro no qual emprega figuras mitológicas, que são constantes em suas composições. Expôs individualmente na redação de O Malho, em 1902; no Museu Comercial do Rio de Janeiro, em 1908; o Museu Nacional de Belas Artes lhe dedicou exposição comemorativa de seu cinquentenário artístico, em 1943, incluindo-o também na mostra Um Século de Pintura Brasileira (1952). A Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu Histórico Nacional e o Museu Nacional de Belas Artes possuem obras de Seelinger em seu acervo.
O tríptico Minha terra apresenta uma sinopse da história do Brasil, com alusão ao descobrimento, à independência e à república. Em primeiro plano, no primeiro segmento, um vagalhão mostra o mar revolto, tormentoso, e gaivotas flanando na atmosfera tempestuosa sugerem a existência de terra próxima; uma caravela se equilibra nas águas turbulentas, que lhe açoitam o casco, enquanto as velas, enfunadas por fortes ventos, quase se desprendem dos mastros; uma outra caravela, mais ao fundo, enfrenta as mesmas condições adversas. No Salão do Centenário, Seelinger também expôs as telas Caravelas, Em procura de novas terras, Navio fantástico e Fantasma do Mar, como pode se verificar no Catálogo da Exposição de Arte Contemporânea e de Arte Retrospectiva da Exposição Commemorativa do Centenário da Independência (1922). Em entrevista a Angyone Costa, o pintor revelara o êxito obtido com a pintura de tais embarcações visto que “não houve sala, de portuguez, intelligente e patriota, que não tivesse ao menos um desses navios, pendurado na parede”.
No segmento central, no plano inferior, corpos nus, como que saídos do mar, se enlaçam, como se participassem de um culto dionisíaco, formando uma base que sustenta dois corpos masculinos, um branco e um negro em confronto, de onde emerge um ser branco de braços abertos, expressão de horror no rosto, ostentando uma corrente partida que unia os grilhões ainda presos nos pulsos. Ao fundo, uma figura feminina flutua no céu, com os olhos cerrados, os braços estendidos ao longo do corpo, envolta em palmeiras, a cabeça coberta por uma guirlanda e espalha raios de luz.
No terceiro segmento, soldados em cavalgada empunham tremulantes bandeiras cuja cor predominante é o verde, que preenche o retângulo externo e encerra um losango amarelo que, por sua vez, aloja em seu interior um círculo azul cravejado de pontos luminosos com uma faixa branca pouco definida: é a república que irrompe num movimento liderado por militares, sob a bandeira do positivismo.
O emprego de figuras mitológicas, como faunos, ninfas, tritões, ondinas, aliada à técnica original e livre, faz das obras de Seelinger composições ímpares, observa Quirino Campofiorito. No tríptico, embora tais figuras não se apresentem explicitamente, a agitação do mar tem algo de sobrenatural, o que pode ser creditado aos tritões ou às ondinas; os corpos em embate se assemelham a faunos – seja pela ferocidade com que se atracam, seja pelo formato das pernas, tanto ou quanto caprinas; a parte superior do corpo dos soldados parecem integrados aos corpos dos cavalos, que se apoiam nas patas traseiras, tal como os centauros da mitologia grega, metade homens, metade cavalos.
São claras as referências à obra de Franz Stuck com quem estudou durante sua primeira estada na Europa: compara-se o segmento central do tríptico e Sísifo, de 1920, cujos corpos nus e tensos, em tons terrosos, são citados na obra de Seelinger.
A figura feminina ao fundo, na porção central do quadro, remete à representação da monarquia, tal como descrita por Cesare Ripa: uma mulher jovem, com olhar arrogante, os raios solares à sua volta denotando sua posição superior em relação a seus súditos, um leão no lado esquerdo e uma serpente a seus pés, enquanto do lado direito prisioneiros coroados, acorrentados e prostrados, embora Seelinger não tenha explicitado em sua obra, todos os elementos do ícone associado à monarquia. A fatura é reconhecível nas obras as Dançarinas, de 1896, e Primavera, de 1909, ambas de Franz Stuck.
Uma outra possibilidade é reconhecer nessa imagem a representação visual da liberdade, como dos versos de Evaristo da Veiga, musicados por D. Pedro e que resultou no Hino da Independência: “Já podeis da pátria filhos / Ver contente a mãe gentil / Já raiou a liberdade / No horizonte do Brasil”.
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, Brasil
Tríptico OST - 300x600 - 1921
Minha terra foi a obra exposta por Hélios Seelinger no Salão do Centenário e selecionada pela comissão encarregada de adquirir os quadros de assunto histórico para integrar o acervo da Escola Nacional de Belas Artes. No conjunto de 600 X 300 cm, o artista se valeu de imagens representativas das navegações portuguesas, as caravelas identificadas pela cruz de malta estampada nas velas, para aludir ao descobrimento; uma festa dionisíaca, grilhões rompidos e, talvez, a alegoria da monarquia para indicar o rompimento dos laços entre Brasil e Portugal como também o futuro étnico do país; cavalaria e bandeiras para simbolizar o advento da república.
Bizarro, na acepção de estranho, excêntrico, extravagante, era o adjetivo frequentemente utilizado pela imprensa ao se referir a Hélios Aristides Seelinger (1878-1965):
“Foi hontem à tarde, o “vernissage” do distincto e bizzaro pintor patricio Helios Seelinger”, informava a Gazeta de Notícias, na edição de 10 de agosto de 1912. O mesmo jornal, em 1 de novembro de 1914, publicava um artigo intitulado “Helios Seelinger – um artista bizarro e paradoxal”, no qual o articulista, M. Nogueira da Silva, utiliza o termo sem qualquer parcimônia – sete vezes, em dezesseis parágrafos – para elogiar o caráter singular da arte do pintor. O crítico de arte Gonzaga Duque, citado por Roberto Pontual, assinalou em Contemporâneos (pintores e esculptores):
Hélios não se contenta com o natural, não é em rigor um naturalista; o que o toca no centro emotivo, o que o comove e o leva da ideia à imagem, é esse natural depurado na sua imaginativa. E essa se nos desvenda nos bizarrismos de uma superexcitação; de um estado hipernervoso que determina fases gerais da psicopatia.
Aluno da Escola Nacional de Belas Artes entre 1892 e 1896, completou seus estudos em Munique com Franz Stuck; retornou à Europa em 1903, como pensionista da ENBA, frequentando a Académie Julian, sob orientação de Jean Paul Laurens. Nos salões, foi posteriormente premiado, em 1912, com a grande medalha de prata; em 1920, com a pequena medalha de ouro; com a medalha de honra, em 1951; e, com o prêmio de viagem ao país, em 1955. Em 1911, Seelinger realizou trabalhos decorativos para a sede do Clube Naval do Rio de Janeiro no qual emprega figuras mitológicas, que são constantes em suas composições. Expôs individualmente na redação de O Malho, em 1902; no Museu Comercial do Rio de Janeiro, em 1908; o Museu Nacional de Belas Artes lhe dedicou exposição comemorativa de seu cinquentenário artístico, em 1943, incluindo-o também na mostra Um Século de Pintura Brasileira (1952). A Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu Histórico Nacional e o Museu Nacional de Belas Artes possuem obras de Seelinger em seu acervo.
O tríptico Minha terra apresenta uma sinopse da história do Brasil, com alusão ao descobrimento, à independência e à república. Em primeiro plano, no primeiro segmento, um vagalhão mostra o mar revolto, tormentoso, e gaivotas flanando na atmosfera tempestuosa sugerem a existência de terra próxima; uma caravela se equilibra nas águas turbulentas, que lhe açoitam o casco, enquanto as velas, enfunadas por fortes ventos, quase se desprendem dos mastros; uma outra caravela, mais ao fundo, enfrenta as mesmas condições adversas. No Salão do Centenário, Seelinger também expôs as telas Caravelas, Em procura de novas terras, Navio fantástico e Fantasma do Mar, como pode se verificar no Catálogo da Exposição de Arte Contemporânea e de Arte Retrospectiva da Exposição Commemorativa do Centenário da Independência (1922). Em entrevista a Angyone Costa, o pintor revelara o êxito obtido com a pintura de tais embarcações visto que “não houve sala, de portuguez, intelligente e patriota, que não tivesse ao menos um desses navios, pendurado na parede”.
No segmento central, no plano inferior, corpos nus, como que saídos do mar, se enlaçam, como se participassem de um culto dionisíaco, formando uma base que sustenta dois corpos masculinos, um branco e um negro em confronto, de onde emerge um ser branco de braços abertos, expressão de horror no rosto, ostentando uma corrente partida que unia os grilhões ainda presos nos pulsos. Ao fundo, uma figura feminina flutua no céu, com os olhos cerrados, os braços estendidos ao longo do corpo, envolta em palmeiras, a cabeça coberta por uma guirlanda e espalha raios de luz.
No terceiro segmento, soldados em cavalgada empunham tremulantes bandeiras cuja cor predominante é o verde, que preenche o retângulo externo e encerra um losango amarelo que, por sua vez, aloja em seu interior um círculo azul cravejado de pontos luminosos com uma faixa branca pouco definida: é a república que irrompe num movimento liderado por militares, sob a bandeira do positivismo.
O emprego de figuras mitológicas, como faunos, ninfas, tritões, ondinas, aliada à técnica original e livre, faz das obras de Seelinger composições ímpares, observa Quirino Campofiorito. No tríptico, embora tais figuras não se apresentem explicitamente, a agitação do mar tem algo de sobrenatural, o que pode ser creditado aos tritões ou às ondinas; os corpos em embate se assemelham a faunos – seja pela ferocidade com que se atracam, seja pelo formato das pernas, tanto ou quanto caprinas; a parte superior do corpo dos soldados parecem integrados aos corpos dos cavalos, que se apoiam nas patas traseiras, tal como os centauros da mitologia grega, metade homens, metade cavalos.
São claras as referências à obra de Franz Stuck com quem estudou durante sua primeira estada na Europa: compara-se o segmento central do tríptico e Sísifo, de 1920, cujos corpos nus e tensos, em tons terrosos, são citados na obra de Seelinger.
A figura feminina ao fundo, na porção central do quadro, remete à representação da monarquia, tal como descrita por Cesare Ripa: uma mulher jovem, com olhar arrogante, os raios solares à sua volta denotando sua posição superior em relação a seus súditos, um leão no lado esquerdo e uma serpente a seus pés, enquanto do lado direito prisioneiros coroados, acorrentados e prostrados, embora Seelinger não tenha explicitado em sua obra, todos os elementos do ícone associado à monarquia. A fatura é reconhecível nas obras as Dançarinas, de 1896, e Primavera, de 1909, ambas de Franz Stuck.
Uma outra possibilidade é reconhecer nessa imagem a representação visual da liberdade, como dos versos de Evaristo da Veiga, musicados por D. Pedro e que resultou no Hino da Independência: “Já podeis da pátria filhos / Ver contente a mãe gentil / Já raiou a liberdade / No horizonte do Brasil”.
Numa outra leitura, a figura pode ser associada à nação fundada em 1822 e que, a partir de então, assistirá ao espetáculo do branqueamento.
O processo de mestiçagem, iniciado com o desembarque dos portugueses em terras americanas, originou uma população de variados matizes físicos e culturais. Com base em teorias raciais que consideravam a raça branca superior às demais, no Brasil de fins do século XIX e começo do século XX, acreditava-se que, uma vez proibida a entrada de negros no país, o incentivo ao aumento da população branca, via imigração, resultaria no branqueamento da população, considerando ainda que as mulheres mestiças preferiam ter filhos com homens mais claros.
Isto é o que se vê no primeiro plano da parte central do quadro de Seelinger: na porção inferior, o processo de miscigenação, simbolizado no centro pelo contato entre um indivíduo de pele clara e outro de pele escura, provocando a ascensão de um sujeito de pele clara que tem a expressão carregada pelo espanto, pelo medo do mundo que se lhe descortina, sem qualquer amparo metafísico, sob o positivismo comtiano. Apesar de privilegiar o desenho em suas composições, Seelinger se vale de simbolismos para expressar ideias e percepções do mundo observado.
No terceiro segmento de Minha terra, um grupo de soldados a cavalo, muitos deles empunhando a bandeira brasileira, em sua versão republicana, pode ser referência ao golpe militar que estabeleceu a república no Brasil, em 1889. Estampado nas feições dos soldados, a tensão e o movimento da cena que são reforçados pelo corpo empinado dos animais, o que também é uma constante nas telas de Franz Stuck.
Ao analisar O grito, de Edvard Munch, E. H. Gombrich afirma que "Seu objetivo é expressar como uma emoção súbita é capaz de transformar todas as nossas impressões sensoriais. (…) A fisionomia da pessoa que grita é distorcida como uma caricatura; os olhos esbugalhados e as faces cavadas remetem a uma representação da morte. (…) O que incomodava o público na arte expressionista talvez não fosse tanto a distorção da natureza em si, mas o fato de que o resultado se afastava da beleza. (…) De fato, os expressionistas sentiam-se tão movidos pelo sofrimento, pobreza, violência e paixões humanas que tendiam a achar que a insistência na harmonia e na beleza na arte só podia ser consequência de uma recusa da honestidade".
Este é o caminho percorrido pelo pintor brasileiro, ao retratar o momento em que o Brasil se tornara uma monarquia independente, traduzido no espanto do libertado, diante do novo status político e étnico do país. Nesse sentido, Minha terra traz a incursão do artista no modo expressionista de representar um acontecimento, o ambiente, acrescentando dúvidas, percepções e fazer do registro um momento de crítica, de tomada de posição. Assim, Seelinger retrata suas ideias do que fora o descobrimento – caravelas errantes numa tempestade oceânica cujos tripulantes, ao aportar em terra, iniciam um processo de miscigenação, ao qual se juntarão africanos escravizados –; a independência – o ponto de partida para a construção de uma raça brasileira, com predominância do europeu –; a proclamação da república – um novo regime político vindo a cavalo, trazido por soldados igualmente espantados; ou seja, o tríptico Minha terra expressa a trajetória do país sob o ponto de vista da miscigenação, considerada, então, instrumento para eliminar as raças inferiores do território brasileiro.
Após a Exposição do Centenário, o tríptico foi doado, pela Escola Nacional de Belas Artes, ao Museu Histórico Nacional, fundado por Epitácio Pessoa ao final de seu governo. O segmento do tríptico que representa a proclamação da república está exposto na mostra permanente A cidadania em construção – 1889, no citado museu; os demais se encontram na reserva técnica. Reproduções foram veiculadas nas páginas de Illustração Brasileira (Jan. 1923); Roberto Pontual registra que Minha terra também foi reproduzida em um dos fascículos de Primores da Pintura no Brasil (1941), de Francisco Acquarone e A. de Queirós Vieira.
Ao comentar o trabalho de Seelinger em artigo publicado em O Paiz, Fléxa Ribeiro aponta:
"O seu triptyco apresenta defeitos visiveis na arte de compor, além que no painel central o desenho não conseguiu transcrever com justeza as fórmas do grupo: do grupo que lucta bastaria examinar alguns pormenores anatomicos, e ver-se que uns não estão articulados com veracidade, e outros parece que não foram interpretados, diante da própria realidade".
No entanto, o crítico endossou a compra do tríptico para compor o acervo da Escola Nacional de Belas Artes, segundo a ata da reunião da congregação da referida escola, realizada em 02 de janeiro de 1923. Na Revista da Semana, Escragnolle Doria assinala que as caravelas de Seelinger “convidam a apreciar em arte e meditar em história”. Nas páginas de Illustração Brasileira, Ercole Cremona elogia a obra de Seelinger, ressaltando a beleza do conjunto no qual figuras bizarras e cavalos em movimento são representados em cores variadas e brilhantes; na mesma edição, no artigo não assinado "As nossas trichromias", o articulista afirma:
"De Hélios Seelinger é a sugestiva tela Minha terra, que está no Salão de Bellas Artes. Quadro symbolico, composto em triptico, representa: O Descobrimento, a Independência e a Republica. O Descobrimento, o artista resolveu com as decorativas caravellas de Cabral sulcando o mar revolto; a Independência, pela luta de raças, e a República, por uma cavalgada, onde se vêem soldados desfraldando o pavilhão brasileiro".
Neste comentário, o articulista trouxe ao debate a questão racial no Brasil, cuja acomodação jazia na hipótese de que a raça negra seria extinta pela miscigenação e pelo incremento da população branca, de origem europeia. Nesse sentido, a independência de Seelinger não está relacionada somente à emancipação política; a independência apenas se completará com a extinção da raça negra.
Na perspectiva de Hélios Seelinger, a história do Brasil não comporta apenas reis e rainhas, altas personalidades: figuras anônimas protagonizam atos que, efetivamente, alteram a trajetória do país e cujos medos encontram expressão nos seres mitológicos. Os heróis da modernidade engendram esperanças, medos, monstros nascidos nos sonhos que permeiam a percepção da realidade, como já preconizado por Goya – “el sueño de la razon produce monstros”. E esta percepção de mundo se materializa nas telas de Seelinger, como já fora observado pelo articulista do Jornal do Commercio, que, na edição de 9 de setembro de 1903, alardeava:
"Dos novos, a figura mais saliente e robusta é a do Sr. Hélios Seelinger. Dos nossos artistas, poucos ou nenhuns (sic) são os que tratam de assuntos simbólicos, preferem a translação de fatos positivos à expressão de ideias abstratas e compreende-se que assim raramente apresentem trabalhos em que possam revelar individualidade muito marcada de sentimento e de pensamento. ( … ) É por esse lado, sobretudo, por essa faculdade pensante, sugestiva que a obra do Sr. Seelinger se destaca; vê-se o desejo de dizer alguma coisa, de externar uma ideia, embora a faculdade executiva ainda nem sempre consiga a perfeição e clareza de expressão que ele deseja".
O processo de mestiçagem, iniciado com o desembarque dos portugueses em terras americanas, originou uma população de variados matizes físicos e culturais. Com base em teorias raciais que consideravam a raça branca superior às demais, no Brasil de fins do século XIX e começo do século XX, acreditava-se que, uma vez proibida a entrada de negros no país, o incentivo ao aumento da população branca, via imigração, resultaria no branqueamento da população, considerando ainda que as mulheres mestiças preferiam ter filhos com homens mais claros.
Isto é o que se vê no primeiro plano da parte central do quadro de Seelinger: na porção inferior, o processo de miscigenação, simbolizado no centro pelo contato entre um indivíduo de pele clara e outro de pele escura, provocando a ascensão de um sujeito de pele clara que tem a expressão carregada pelo espanto, pelo medo do mundo que se lhe descortina, sem qualquer amparo metafísico, sob o positivismo comtiano. Apesar de privilegiar o desenho em suas composições, Seelinger se vale de simbolismos para expressar ideias e percepções do mundo observado.
No terceiro segmento de Minha terra, um grupo de soldados a cavalo, muitos deles empunhando a bandeira brasileira, em sua versão republicana, pode ser referência ao golpe militar que estabeleceu a república no Brasil, em 1889. Estampado nas feições dos soldados, a tensão e o movimento da cena que são reforçados pelo corpo empinado dos animais, o que também é uma constante nas telas de Franz Stuck.
Ao analisar O grito, de Edvard Munch, E. H. Gombrich afirma que "Seu objetivo é expressar como uma emoção súbita é capaz de transformar todas as nossas impressões sensoriais. (…) A fisionomia da pessoa que grita é distorcida como uma caricatura; os olhos esbugalhados e as faces cavadas remetem a uma representação da morte. (…) O que incomodava o público na arte expressionista talvez não fosse tanto a distorção da natureza em si, mas o fato de que o resultado se afastava da beleza. (…) De fato, os expressionistas sentiam-se tão movidos pelo sofrimento, pobreza, violência e paixões humanas que tendiam a achar que a insistência na harmonia e na beleza na arte só podia ser consequência de uma recusa da honestidade".
Este é o caminho percorrido pelo pintor brasileiro, ao retratar o momento em que o Brasil se tornara uma monarquia independente, traduzido no espanto do libertado, diante do novo status político e étnico do país. Nesse sentido, Minha terra traz a incursão do artista no modo expressionista de representar um acontecimento, o ambiente, acrescentando dúvidas, percepções e fazer do registro um momento de crítica, de tomada de posição. Assim, Seelinger retrata suas ideias do que fora o descobrimento – caravelas errantes numa tempestade oceânica cujos tripulantes, ao aportar em terra, iniciam um processo de miscigenação, ao qual se juntarão africanos escravizados –; a independência – o ponto de partida para a construção de uma raça brasileira, com predominância do europeu –; a proclamação da república – um novo regime político vindo a cavalo, trazido por soldados igualmente espantados; ou seja, o tríptico Minha terra expressa a trajetória do país sob o ponto de vista da miscigenação, considerada, então, instrumento para eliminar as raças inferiores do território brasileiro.
Após a Exposição do Centenário, o tríptico foi doado, pela Escola Nacional de Belas Artes, ao Museu Histórico Nacional, fundado por Epitácio Pessoa ao final de seu governo. O segmento do tríptico que representa a proclamação da república está exposto na mostra permanente A cidadania em construção – 1889, no citado museu; os demais se encontram na reserva técnica. Reproduções foram veiculadas nas páginas de Illustração Brasileira (Jan. 1923); Roberto Pontual registra que Minha terra também foi reproduzida em um dos fascículos de Primores da Pintura no Brasil (1941), de Francisco Acquarone e A. de Queirós Vieira.
Ao comentar o trabalho de Seelinger em artigo publicado em O Paiz, Fléxa Ribeiro aponta:
"O seu triptyco apresenta defeitos visiveis na arte de compor, além que no painel central o desenho não conseguiu transcrever com justeza as fórmas do grupo: do grupo que lucta bastaria examinar alguns pormenores anatomicos, e ver-se que uns não estão articulados com veracidade, e outros parece que não foram interpretados, diante da própria realidade".
No entanto, o crítico endossou a compra do tríptico para compor o acervo da Escola Nacional de Belas Artes, segundo a ata da reunião da congregação da referida escola, realizada em 02 de janeiro de 1923. Na Revista da Semana, Escragnolle Doria assinala que as caravelas de Seelinger “convidam a apreciar em arte e meditar em história”. Nas páginas de Illustração Brasileira, Ercole Cremona elogia a obra de Seelinger, ressaltando a beleza do conjunto no qual figuras bizarras e cavalos em movimento são representados em cores variadas e brilhantes; na mesma edição, no artigo não assinado "As nossas trichromias", o articulista afirma:
"De Hélios Seelinger é a sugestiva tela Minha terra, que está no Salão de Bellas Artes. Quadro symbolico, composto em triptico, representa: O Descobrimento, a Independência e a Republica. O Descobrimento, o artista resolveu com as decorativas caravellas de Cabral sulcando o mar revolto; a Independência, pela luta de raças, e a República, por uma cavalgada, onde se vêem soldados desfraldando o pavilhão brasileiro".
Neste comentário, o articulista trouxe ao debate a questão racial no Brasil, cuja acomodação jazia na hipótese de que a raça negra seria extinta pela miscigenação e pelo incremento da população branca, de origem europeia. Nesse sentido, a independência de Seelinger não está relacionada somente à emancipação política; a independência apenas se completará com a extinção da raça negra.
Na perspectiva de Hélios Seelinger, a história do Brasil não comporta apenas reis e rainhas, altas personalidades: figuras anônimas protagonizam atos que, efetivamente, alteram a trajetória do país e cujos medos encontram expressão nos seres mitológicos. Os heróis da modernidade engendram esperanças, medos, monstros nascidos nos sonhos que permeiam a percepção da realidade, como já preconizado por Goya – “el sueño de la razon produce monstros”. E esta percepção de mundo se materializa nas telas de Seelinger, como já fora observado pelo articulista do Jornal do Commercio, que, na edição de 9 de setembro de 1903, alardeava:
"Dos novos, a figura mais saliente e robusta é a do Sr. Hélios Seelinger. Dos nossos artistas, poucos ou nenhuns (sic) são os que tratam de assuntos simbólicos, preferem a translação de fatos positivos à expressão de ideias abstratas e compreende-se que assim raramente apresentem trabalhos em que possam revelar individualidade muito marcada de sentimento e de pensamento. ( … ) É por esse lado, sobretudo, por essa faculdade pensante, sugestiva que a obra do Sr. Seelinger se destaca; vê-se o desejo de dizer alguma coisa, de externar uma ideia, embora a faculdade executiva ainda nem sempre consiga a perfeição e clareza de expressão que ele deseja".
Nota do blog: Fonte da imagem do tríptico: "Revista Illustração Brasileira", nº 29, Janeiro de 1923.
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