domingo, 23 de janeiro de 2022

Ascensão e Queda do Modelo Televisivo que Imortalizou a Série "Chaves" - Artigo

 


Ascensão e Queda do Modelo Televisivo que Imortalizou a Série "Chaves" - Artigo
Artigo


Em julho de 2020, após quase 50 anos no ar, a lendária série de TV Chaves deixou de ser transmitida de repente em todos os televisores da América Latina. “As pessoas estão muito desconcertadas, recebi ligações de Río Bravo (México) até Tierra del Fuego (Argentina)”, contou no rádio naquele dia Edgar Vivar, mais conhecido como Senhor Barriga. A rede mexicana Televisa, que desde os anos setenta havia exportado a série para mais de 20 países do continente, informou às emissoras aliadas que já não tinham licença para continuar a transmissão. O primeiro telefonema de alarme recebido por Vivar chegou do Brasil, onde um fã-clube reunia assinaturas para que o SBT não tirasse o programa do ar. “Estão tirando nosso direito de ver nossos melhores amigos”, escreveu um fã brasileiro desconsolado. Depois vieram outros telefonemas do Peru, Chile, Colômbia e Equador. “Todos estão estupefatos”, disse Vivar.
“Embora tristes com a decisão, eu e minha família esperamos que Chespirito esteja logo nas telas do mundo”, escreveu no Twitter o filho do falecido Roberto Gómez Bolaños, conhecido como Chespirito e criador do Chaves e de outros personagens, como Chapolin. A família de Gómez Bolaños, assim como a Televisa, não quiseram dar maiores explicações sobre o desaparecimento de Chaves e outras séries. Mas Vivar, que falou no rádio como porta-voz do filho, explicou mais sobre a notícia: a família não conseguiu chegar a um acordo econômico com a Televisa para renovar o contrato pelos direitos dos personagens criados por Gómez Bolaños. “A Televisa não quis renovar ou não quis pagar”, disse Vivar. “Para eles, acho que é um produto démodé ou pouco rentável.”
A Televisa continua sendo dona das séries produzidas, porque investiu seus recursos para filmá-las. Portanto, a família Gómez Bolaños não pode vender a outra empresa os milhares de capítulos gravados em várias temporadas entre os anos setenta e noventa. Mas a família é dona dos personagens que Gómez Bolaños produziu, de modo que a Televisa não pode exibir os capítulos sem ter que pagar uma quantia aos herdeiros. Na prática, nenhuma rede de televisão pode transmitir Chaves ou Chapolin porque ninguém é totalmente dono deles.
“Chespirito é um agente livre, está solto”, disse o apresentador de rádio René Franco para definir o paradoxo jurídico. Trata-se, mais propriamente, de uma criança sem casa, como Chaves, embora os telespectadores latino-americanos queiram adotá-la. Vivar, que espera que a Televisa e a família possam eventualmente renegociar contrato, não mencionou naquele domingo as ligações desconsoladas vindas da casa de Chespirito, o México, país que vê com olhos mais críticos o amado símbolo da América Latina.
Chaves e Chapolin se transformaram em produtos de consumo popular em toda a região nos anos setenta, graças a um ecossistema que pôde competir brevemente com as redes de TV norte-americanas. Roberto Gómez Bolaños, morto em 2014, era parente do ex-presidente mexicano Gustavo Díaz Ordaz (sua mãe era prima do mandatário), que criou em 1968 uma nova emissora, o Canal 8. Este foi o primeiro lar de Chaves, em 1971. Com sua crescente popularidade, a série mudou em 1973 para o Canal 2 da Televisa, que tinha muito mais poder no precário mundo da TV aberta. “A audiência disparou”, escreveu Gómez Bolaños em sua biografia, quando ocorreu a mudança.
A Televisa era uma das poucas empresas latino-americanas que usavam na época a tecnologia VCR, como explicou ao EL PAÍS Carlos Aguasaco, professor de Estudos Culturais da Universidade da Cidade de Nova York e autor do livro ¡No Contaban Con Mi Astucia! Essa tecnologia de videocassetes —que no mundo digital de hoje é uma antiguidade— permitiu que o canal produzisse muitas cópias de um capítulo gravado e as distribuísse rapidamente a emissoras estrangeiras. Chaves chegou primeiro à Guatemala, mas rapidamente se instalou nos demais países da América Central, do Caribe (Porto Rico e República Dominicana) e, por último, da América do Sul. Em 1975, estima-se que já contava com 350 milhões de espectadores.
Aguasaco —que em 1981 assistia a Chaves em Bogotá com um televisor em preto e branco quando seus pais saíam para trabalhar— estudou como as séries de Chespirito conseguiram se espalhar no continente. “Para os outros canais, era mais barato comprar uma cópia, reproduzi-la e não ter que contratar atores... Tornou-se um produto barato para um público familiar, na época em que a televisão era consumida em família”, afirma. Para a Televisa, um programa como Chaves era também um produto de comédia clássica muito barato de produzir. “Era como nosso teatro do Século de Ouro”, diz Aguasaco, que também escreveu sobre a influência do romance picaresco nos personagens de Gómez Bolaños. “Chaves tinha sempre três paredes —e uma parede invisível, que é a tela. Tinha os mesmos atores, e era possível reutilizar a mesma cenografia e os mesmos roteiros. Só precisavam mudar o argumento.”
Nos anos setenta, a TV latino-americana importava programas dos Estados Unidos para preencher seu horário familiar. Graças ao poder da Televisa, Gómez Bolaños conseguiu competir com esses produtos do norte. “Amigos da América espanhola, já temos um herói autóctone, um herói local, um herói nosso!”, grita, eufórico, o Doutor Chapatin num capítulo chamado Conferência Sobre Um Chapolin, de 1974. O super-herói, diz Chapatin, tinha conseguido ofuscar as façanhas de Tarzan, Super-Homem, Kaliman e Aquaman.” O Chapolin, “mais ágil que uma tartaruga, mais forte que um camundongo, mais nobre que uma alface”, era uma paródia direta dos famosos super-heróis norte-americanos. Um de seus poderes consistia em se tornar pequeno em vez de grande, e seu valor residia em ter medo diante de qualquer aventura, não em ser imprudente. “A coragem não consiste em carecer de medo, mas em superá-lo”, explica o Doutor Chapatin. “Quem enfrenta o perigo sem sentir medo não é valente, e sim irresponsável.”
Chapolin e Chaves venderam com sucesso um humor carnavalesco numa comédia de situações que podia se repetir por décadas, pois seus personagens nunca envelhecem, como os personagens dos Simpsons. Com o tempo, além disso, Chaves brincou com a linguagem e impregnou o espanhol de um novo dialeto. Expressões como no contaban con mi astucia (“não contavam com minha astúcia”), fue sin querer queriendo (“foi sem querer querendo”) e se me chispoteó (“é que me escapuliu”) já não precisam de maiores explicações entre os falantes de espanhol e português.
Os personagens da vizinhança de Chaves também eram magnéticos porque refletiam a situação precária de milhões de famílias que habitavam as periferias urbanas do continente. Erica Colmenares, acadêmica venezuelana na Califórnia e coeditora do livro Resonancias de El Chavo del 8 en La Niñez, Educación y Sociedad Latinoamericana (Ressonâncias de Chaves na infância, na educação e na sociedade latino-americana), assistia à série em Caracas em 1989, aos sete anos. Quando ocorreu o Caracazo —onda de protestos contra as medidas de austeridade impostas pelo presidente Carlos Andrés Pérez—, Chaves tinha quase a mesma popularidade que os telejornais noturnos. “Essas ideias da boa vida que existiram na Venezuela já não existiam”, diz Colmenares, “e os telespectadores venezuelanos forjaram um público com esse programa, com o qual podiam se identificar e reconhecer.”
“Chaves é político no sentido de que mostra a distopia da América Latina: como os ricos da região mantêm os pobres clausurados em sua miséria. Vemos o menino de rua, a família desfeita, o rico que abusa dos pobres e a falta de Estado”, afirma o crítico de TV colombiano Omar Rincón. Seu Madruga era um homem eternamente desempregado que nunca podia pagar o aluguel ao Senhor Barriga. Para o bem ou para o mal, Chaves refletiu por cinco décadas a realidade de muitas sociedades latino-americanas: em meio a Estados ausentes ou austeros, a solidariedade de uma vizinhança era o mínimo que tinham para sobreviver.
Mas Chaves era uma série política sem ser revolucionária: retratava a superioridade moral dos pobres e promovia a caridade, mas estava ali para entreter, não para criticar as elites. Por isso, uma das críticas mais comuns ao seriado no México é que era produzido por um homem de classe alta, Roberto Gómez Bolaños, com um ângulo classista. “Era uma pobreza romantizada, e há coisas bastante problemáticas nisso”, explica o argentino
Daniel Friedrich, professor da Universidade Columbia (EUA) e coeditor do livro Resonancias de El Chavo del 8. “A série fala de como sujeitos de classe média ‘imaginam’ a vida num bairro pobre, onde pode haver uma criança órfã, pobre, faminta... mas com uma vida feliz.”
Uma rede hegemônica como a Televisa dificilmente permitiria mais crítica social que a feita por Chaves. Embora o canal tenha transformado Gómez Bolaños numa lenda latino-americana, sua proximidade com o poder político explica, em parte, por que Chespirito e seus personagens são menos amados no México que fora do país. “A Televisa é o que o PRI [Partido Revolucionário Institucional] é na esfera política”, diz o crítico de cinema e televisão mexicano Arturo Aguilar. A emissora trabalhou durante décadas como porta-voz do PRI. Quando o desprestígio desse partido cresceu, no final do século XX, até perder o poder nas eleições de 2000, a Televisa também recebeu o golpe do público. “Quando começaram os anos de alternância no poder, criou-se um repúdio maiúsculo contra essas figuras do passado que coexistiram com esse sistema político”, diz Aguilar. Gómez Bolaños, uma dessas figuras, foi não apenas próximo do PRI, mas também da formação de direita Partido Ação Nacional (PAN). E fez campanha a favor do presidente Felipe Calderón.
Além disso, numa década que começou a rechaçar muitos dos produtos machistas da cultura latino-americana, a misoginia de Gómez Bolaños —que também fez campanha contra o aborto— ficou evidente. “Chaves teve coisas muito boas”, admite Andrea Ortega-Lee, comediante do México que também cresceu vendo a série. Por exemplo, o programa se atreveu a representar famílias não nucleares, como Seu Madruga cuidando sozinho de Chiquinha, e Dona Florinda, que também está sozinha com Quico. “É valioso que tenham sido apresentadas famílias parecidas com as mexicanas, mas também vemos como Seu Madruga cria Chiquinha batendo, e como a violência contra Chaves também se normaliza”, diz Ortega-Lee. “Foi feita uma apologia da violência, do bullying. Há uma criação com agressividade, sem nenhum tipo de castigo para esse tipo de violência. É na verdade um punch line como parte da piada.”
E também vemos o papel das mulheres, todas elas donas de casa. Dona Clotilde, por exemplo, é conhecida entre os vizinhos como “a bruxa do 71” e interpretada como uma mulher desesperada pela atenção de Seu Madruga. Dona Florinda é a mãe solteira de Quico que busca a atenção do Professor Girafales. “É normalizar esses estereótipos: mostrar que, se você está sozinha, precisa com urgência que um homem te tire da pobreza em que está”, afirma Ortega-Lee.
Também há um nível de cansaço entre os mexicanos que viajam ao exterior e encontram uma América Latina que continua consumindo Chaves, quando o país produz séries e filmes de muito melhor qualidade, como se o México tivesse ficado nas piadas de Gómez Bolaños. “Há uma rejeição ao reducionismo com que os estrangeiros veem o México”, diz Aguasaco.
A TV aberta de hoje dificilmente poderia criar estrelas continentais como Chaves porque o ecossistema de meios de comunicação mudou radicalmente. Os novos personagens famosos, como Betty, a Feia, não são distribuídos em sua versão original em outros países. Cada canal compra as licenças para reproduzir sua versão local (La Fea Más Bella no México; Bela, a Feia no Brasil; Ugly Betty nos EUA; Yo soy Bea na Espanha). Os serviços de cabo e as plataformas de streaming, como Netflix e Amazon Prime, também dividiram os públicos latino-americanos, o que dificulta unir todos os espectadores de uma região na frente da TV).
Mas, apesar de ser uma relíquia, com suas polêmicas e seu conservadorismo, Chaves conseguiu sobreviver como um símbolo cultural entre várias gerações. Em 2016, foi o primeiro programa de TV mexicano a atingir um milhão de assinantes em seu canal do YouTube. “Não existe, em nenhum lugar do mundo, um conteúdo que tenha mais de 40 anos e seja conhecido por pessoas de todas as idades”, disse na época o presidente da plataforma na América Latina.
Limarys Caraballo, professora cubana e porto-riquenha que trabalha em Nova York, ainda curte Chaves com seus filhos. Anos atrás entrevistou vários de seus familiares, velhos e jovens, que são seguidores dos programas de Chespirito. “O senso de humor diz muito sobre nosso senso de identidade. Diz muito sobre quem queremos ser, quem somos e como queremos nos ver”, afirma Caraballo, cujos pais são cubanos e moram na Flórida. “Acho que eles não viam Chaves nem sua vizinhança como um fenômeno político, e sim como uma reflexão sobre como nos ajudamos, essa sensação de que todos podem fazer algo pelos demais.” Cuba foi o único país da América Latina que não transmitiu Chaves porque a revolução impediu, de modo que os pais de Caraballo começaram a gostar da série depois de abandonar a ilha.
Após falar ao telefone com o EL PAÍS, Caraballo perguntou à mãe o que ela faria agora que Chaves não está mais na TV. Seus pais “hoje assistem a Chaves pelo YouTube, todas as noites, enquanto jogam dominó”, escreveu depois. Embora Chaves tenha crescido na época dourada da TV aberta, sobreviverá agora na plataforma que não dá espaço ao esquecimento: a Internet. Chaves ainda tem futuro, e as redes sociais são sua nova vizinhança.

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