sábado, 28 de maio de 2022

Renault FT-17, Exército Brasileiro, Brasil





 



Renault FT-17, Exército Brasileiro, Brasil
Fotografia


Um barulho ensurdecedor de motor e lagartas anunciava o apocalipse mecânico representado por aquele gigante inglês de metal passando lentamente sobre as trincheiras alemãs do front ocidental da Primeira Guerra Mundial. Imagine só qual não foi a reação dos soldados!
Muitos eram simples trabalhadores no tempo da paz, pessoas que sequer tinham tido contato com um automóvel. O que dizer de um monstro daqueles, um veículo imune ao disparo das armas de fogo? Se alguém falasse que era uma das bestas bíblicas, certamente haveria combatentes que acreditariam.
O conflito durou de 1914 a 1918 e viu a estreia de vários armamentos modernos, incluindo tanques (Carro de Combate, segundo o Exército Brasileiro). Os ingleses foram os primeiros a usar o novo armamento com sucesso. Mesmo que não tenha sido o único projeto de tanque do período, o Mark 1 foi o primeiro a ser colocado no campo de batalha, no caso as trincheiras da França.
Foi um sucesso na prática e também no campo da guerra psicológica. A introdução dele mudou o panorama da guerra, pois o conflito naquele ano de 1916 se destacava pela imobilidade das linhas de batalha do lado ocidental. A despeito de toda essa primazia, foram os franceses que acabaram por inventar o tanque moderno: o Renault FT-17.
Ele foi o primeiro tanque a vir com elementos que estão em quase todos os veículos de combate atuais. A começar pela torre capaz de virar 360 graus, o que permitia atacar inimigos por todos os lados. A inovação continuava pela construção, que empregava motor traseiro. E fechava com o revolucionário arranjo com o comandante/atirador na torre e o motorista, no chassi.
“O FT-17 inventou praticamente o conceito de carro de combate, ele foi o precursor. Os ingleses fizeram o tanque, mas com um conceito e design diferentes. Foram os franceses que começaram isso”, explica Expedito Carlos Stephani Bastos, pesquisador de assuntos militares e autor de vários livros sobre o tema, incluindo um sobre o modelo, intitulado Renault FT-17 – O Carro de Combate – O pioneiro no Exército Brasileiro).
Embora ideias e conceitos de tanques remontem ao Leonardo Da Vinci, os projetos demoraram só alguns “breves” séculos para serem executados na prática.
Tratores já eram usados para transportar equipamentos para aqueles terrenos enlameados e perfurados por crateras de artilharia pesada, mas o conceito de unir a mobilidade sobre lagartas, blindagem e armas de grosso calibre era outro problema.
Os tanques britânicos eram a arma perfeita para dar mobilidade em uma época da guerra em que cada lado ficava entrincheirado frente a frente. Eles eram capazes de passar por cima de arame farpado, resistir ao fogo cerrado na chamada terra de ninguém e, a despeito da lentidão, avançar por entre crateras abertas pela artilharia e sobre as trincheiras inimigas.
A ideia original era a de construir um verdadeiro navio sobre lagartas, um veículo pesado, grande e capaz de abrigar a maior quantia e tipos de armas possíveis. Não é à toa que o comitê criado para o desenvolvimento de tanks era chamado de Landship, denominação que os próprios modelos receberam.
A origem do nome tank seria apenas um disfarce para os alemães não imaginarem qual era o projeto real, assim fazendo eles pensarem que se tratava de algo relacionado a tanques de água. Assim era o Mark 1, um modelo de cerca de 30 toneladas e dez metros de comprimento, o equivalente a duas picapes Fiat Toro. Um Golias quando comparado ao Renault de 6,5 toneladas e cinco metros.
O FT-17 não era um Kwid da categoria, mas era muito menor que o seu aliado inglês. O seu emprego era bem diferente dos primeiros tanques.
Se o Mark 1 havia sido criado para derrubar defesas, resistir e suprimir o fogo inimigo e, com isso, abrir caminho para a infantaria passar, o FT-17 foi desenhado para acompanhar os soldados desta infantaria dando a cobertura que os protegia.
Foi o próprio Louis Renault que desenhou o conceito geral do FT-17, observando as sugestões do General Jean Baptiste Eugène Estienne. Isso após muita insistência junto ao governo francês para que ele adquirisse um veículo de combate.
Os franceses já tinham outros tanques em projeto, exemplo do pesado Char 2C. A questão era estratégica: qual caminho seria melhor? Mais Carros de Combate leves ou investir em uma menor quantidade de poderosos navios terrestres (Landships)? Eles ficaram com os dois, afinal, a guerra estava no quintal deles. Para você ter uma ideia, a batalha do Somme vitimou sozinha cerca de 200 mil franceses.
A sigla significava… nada. Era apenas um nome código interno da Renault. Nem o 17 dizia respeito ao nome original do tanque, pois foi somente depois da guerra que ele passou a ser referenciado com essa nomenclatura.
Machos, fêmeas e hermafroditas:
Chamar um tanque de macho, fêmea ou hermafrodita tem um quê sexista, mas obedecia a um conceito curioso criado pelos ingleses.
Tanques machos carregavam canhões, já os tanques fêmeas eram equipados com metralhadoras e, por sua vez, os hermafroditas tinham armamento intercambiável. O FT-17 podia ser equipado com uma metralhadora de 8 mm Hotchkiss (7mm nas versões brasileiras) ou um canhão de 37 mm Puteaux.
A produção foi em série: foram mais de quatro mil tanques fabricados, um marco que seria superado somente muito tempo depois. A despeito da produção em massa, os defeitos deixaram um grande percentual de veículos fora de combate. Não era diferente dos modelos ingleses, os primeiros ataques foram marcados por problemas mecânicos e, não raro, apenas um dos veículos chegava a combater de fato. Eles eram lentos e poderiam ser superados por uma criança correndo.
A parte da lentidão não era problema, uma vez que o objetivo do FT-17 era de poder ser acompanhado por soldados dando-lhes cobertura “A ideia era que pudesse acompanhar a infantaria, 7 km/h é a velocidade que um ser humano anda”, relembra Expedito. A blindagem de até 22 milímetros não era pesada, contudo, era suficiente para resistir a alguns calibres e estilhaços de artilharia.
Com carinho:
O ponto mais engraçado da operação era a forma como o atirador/comandante e o motorista se comunicavam. Sem terem rádios ou microfones para lidar com o barulho interno, o jeito era o comandante dar mimosos chutes no lado correspondente das costas do motorista/operador para ele seguir a direção que ele desejava. Muita delicadeza e ternura nessa hora.
Os bancos eram formados por faixas de couro, não havia espaço para assentos convencionais, apenas uma almofada com encosto para o motorista.
O funcionamento era o mesmo dos tanques modernos, com comandos separados para a lagarta esquerda e direita e pedais. O motor 4,5 litros de quatro cilindros ficava atrás dos dois tripulantes e tinha alimentação de combustível por gravidade. Parece um detalhe bobo, mas ajudava o propulsor a não engasgar ao superar as altas inclinações das trincheiras e crateras. Para não cair nas trincheiras, uma barra de sustentação metálica em sua traseira o estabilizava quando ele passava sobre as mesmas.
Participação em revoluções no Brasil:
Um brasileiro foi um dos grandes entusiastas do Renault FT-17, o Marechal José Pessoa, sobrinho de Epitácio Pessoa, Presidente do Brasil de 1919 a 1922, e irmão de João Pessoa, presidente da Paraíba (como era chamado o governador do estado) de 1928 a 1930. Foi ele o idealizador da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e da construção de Brasília. Nada mal.
Quando ainda era segundo tenente, o oficial subalterno foi enviado para à França em 1918. Foi lá que ele frequentou o curso na Escola de Cavalaria de Saint-Cyr, onde começou a estudar a mecanização.
Pessoa não se fez de vexado e se voluntariou para combater junto aos franceses na Primeira Guerra Mundial, tendo sido comandante de um pelotão no 4° Regimento de Dragões, segundo o Exército Brasileiro. Ele se destacou pela coragem e foi promovido, por bravura, ao posto de capitão e recebeu a medalha Croix de Guerre. Logo depois, realizou um estágio no 503° Regimento de Artilharia de Carros de Assalto, onde conheceu o Renault FT-17.
Pessoa voltou ao Brasil e assessorou o governo, indicando a necessidade de comprarmos o modelo. De acordo com Expedito Bastos, os carros de combate foram comprados em 1919, chegaram em 1920 e foram incorporados no ano seguinte.
Foram adquiridas 12 viaturas, sendo cinco carros com o canhão 37mm, seis com metralhadoras de 7mm, um com armamento intercambiável e o último destinado às comunicações da companhia, que não possuía torre de armamento e funcionava com telegrafia sem fio.
O primeiro emprego dele no país aconteceu durante a Revolta Paulista de 1924. “A primeira vez que usaram foi em 1924, foi uma ação rápida e os veículos foram usados para ocupar a capital. Eles chegaram a combater, destruindo ninhos de metralhadora”, conta Expedito Bastos.
O levante militar foi organizado por jovens oficiais do tenentismo. Foram 23 dias de combate acirrado e, logo depois, os revoltosos se juntaram à Coluna Prestes. Não foi a única vez que o FT-17 entrou em ação no país. As revoluções de 1930 e 1932 também foram palcos de operação do Renault.
Além de ter trazido o Renault para o Brasil, Pessoa também se destacou por aperfeiçoamentos no projeto, entre eles, a possibilidade de trocar a correia do motor sem ter que sair da cabine e se expor ao fogo inimigo.
Segundo o Exército, o Renault FT-17 permaneceu em serviço ativo no Brasil de 1921 até fevereiro de 1942, ao lado dos Fiat-Ansaldo CV-32 II, quando foram substituídos pelos americanos M3-Stuart e M4-Sherman, duas estrelas da Segunda Guerra Mundial.
Há um exemplar em funcionamento no Brasil, oriundo da antiga Escola de Material Bélico, no Rio de Janeiro. Após ser minuciosamente restaurado, o FT-17 está no Pelotão de Manutenção do Centro de Instrução de Blindados, em Santa Maria, Rio Grande do Sul.
Em plena forma, a viatura foi protagonista nas comemorações do centenário da criação da Companhia de Carros de Assalto. Nada mal para um veterano da Primeira Guerra Mundial.

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