quarta-feira, 4 de outubro de 2023

O "Sequestro" da Estátua "Idílio ou Beijo Eterno", 1966, São Paulo, Brasil






O "Sequestro" da Estátua "Idílio ou Beijo Eterno", 1966, São Paulo, Brasil
São Paulo - SP
Fotografia

O "Idílio, ou Beijo Eterno", é um fragmento escultórico, integrante do extinto "Monumento a Olavo Bilac". Composto pela figura de um casal nu se abraçando, composto por um homem branco e uma indígena, o fragmento é um dos monumentos que mais foi instalado e reinstalado por São Paulo, perambulando por um período de 31 anos e colocado em mais de 5 locais distintos.
Em 1915, Bilac discursou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, defendendo um programa de reforma das práticas políticas nacionais. O episódio inspirou a criação de associações patrióticas, entre elas, a Liga Nacionalista, fundada em 1916, e fez com que o poeta se tornasse uma figura importante para alunos da instituição. Essa relação entre Bilac, a criação da Liga e a Faculdade de Direito explica, em parte, a proeminência do Centro Acadêmico XI de Agosto, organização estudantil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no financiamento da obra.
Após um breve período no qual o monumento foi elogiado após sua instalação em 1922, iniciou-se uma campanha contra a obra e a favor de sua demolição. A campanha contra o monumento a Bilac, nessa fase, tinha mais a ver com motivações políticas e estéticas. Não existem registros de que, na década de 1920, alguém tenha se escandalizado com o fato de a dupla, que era apenas parte do conjunto maior do monumento, estar nua. Em fevereiro de 1935, o jornal a Gazeta anunciou a retirada do monumento da Avenida Paulista em virtude de obras urbanas: “O gesto do prefeito Fábio Prado somente merece aplausos (…)”. Na época, a previsão era de que ele fosse reinstalado no parque D. Pedro II. No entanto, ele foi fragmentado em diversos pedaços que foram levados para o Depósito Municipal da Várzea do Carmo.
Segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo na época, os fragmentos Beijo Eterno e Caçador de Esmeraldas foram instalados na entrada do colégio estadual Fernão Dias Paes, em Pinheiros. No entanto, pouco tempo depois, o Beijo Eterno voltaria para o depósito, após mobilização de pais de estudantes que consideraram a figura como “imoral”. Em 1953, quando Jânio Quadros, ex-aluno da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, assumiu o cargo de prefeito de São Paulo, resolveu reinstalar alguns fragmentos do monumento e levou o Beijo Eterno para o Largo do Cambuci, um de seus redutos eleitorais. Neste local, mais uma vez, o monumento gerou uma mobilização de moradores do bairro, que organizaram um abaixo-assinado para sua retirada alegando que o fragmento atentava contra os bons costumes. Dez anos depois, em 1966, o então prefeito José Vicente Faria Lima decidiu instalar o Beijo Eterno na entrada do túnel da Avenida Nove de Julho, chamado pelo jornal "O Estado de S. Paulo" como “o lugar das estátuas malditas”, por agregar um longo histórico de monumentos rejeitados pelo público. Novamente não foi diferente, o vereador Antônio Sampaio, membro da Arena, de posse de um abaixo-assinado organizado por senhoras residentes da Avenida Nove de Julho, realizou um inflamado discurso na Câmara, clamando pela retirada da obra vista como “obra do demônio, um verdadeiro escândalo”.
A rejeição recorrente da obra, e as reações suscitadas nos diferentes locais nos quais foi instalada, nos leva a questionar o que compõe esses bons costumes postos em risco pelo monumento, sempre em relação ao seu “teor sexual”. O monumento, inclusive, se tornou um exemplo costumeiro do docente de Medicina Legal da Faculdade de Direito do Largo São Francisco como indicativo de impotência sexual, “já que o homem (europeu) resistia às provocações da sensual mulher sem qualquer reação”. Para alguns pesquisadores, esta rejeição revela uma outra camada de preconceitos presentes na sociedade da época, pelo fato da escultura ser lida popularmente como o retrato de um relacionamento entre uma indígena e um europeu. “Não se tem informação de que o artista queria retratar um beijo inter-racial entre uma índia e um branco, mas foi assim que a obra ficou conhecida. E isso foi tratado de maneira preconceituosa na imprensa. A Gazeta chamou a personagem de bugre, uma palavra pejorativa para se referir aos indígenas” relata a historiadora Helena Barbuy.
No entanto, pouco antes da obra ser removida da entrada do túnel da Avenida Nove de Julho, em 18 de outubro de 1966, para adentrar os depósitos mais uma vez, ela foi sequestrada por estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e transportada para o "território livre" da Faculdade. 
Em uma reportagem do jornal "O Estado de S. Paulo", publicada no dia seguinte à ação, os alunos acrescentam uma ameaça: “se a estátua “Idílio” for retirada do Largo São Francisco, vestiremos todas as outras estátuas nuas da cidade e colocaremos aliança nas que representam pessoas abraçadas”. 
Para estes, o monumento remetia à própria história da instituição da qual faziam parte, com seu papel na implantação original do monumento, representando também uma atitude de resistência a um discurso moralista presente na sociedade da época, poucos anos após o golpe militar de 1964. 
Ali, no "território livre" da Faculdade de Direito, a escultura estaria protegida, e é onde ela se encontra desde então. Segundo o jornal universitário dos mesmos, a ação é “um marco histórico para os estudantes da Faculdade de Direito, para lembrarmo-nos do que somos, e do que devemos ser.”
Nota do blog 1: Na imagem N. 1 do post, de 18/10/1966, os estudantes "sequestram" a estátua que estava no Túnel Nove de Julho, colocando-a em um caminhão.
Nota do blog 2: Na imagem N. 2 do post, também de 18/10/1966, a estátua já descarregada e colocada no Largo de São Francisco, em frente a Faculdade de Direito.

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