domingo, 26 de setembro de 2021

O Plano Diretor Moldou São Paulo Como Conhecemos Hoje - Artigo

 


O Plano Diretor Moldou São Paulo Como Conhecemos Hoje - Artigo
Artigo




Quanto mais longe do centro, menos duram as vidas humanas em São Paulo. Enquanto no distrito do Jardim Paulista, um dos mais brancos da cidade, localizado no centro expandido, a regra é que seus moradores vivam muito e morram em média com 81,5 anos, a vida costuma terminar 23 anos antes para quem vive em outro Jardim, o Ângela, que concentra o maior número de pessoas negras na capital paulista. Distantes 21 quilômetros, o segundo registra uma idade média ao morrer de 58,3 anos, conforme a pesquisa Mapa da Desigualdade, da Rede Nossa São Paulo.
É quase como se cada quilômetro percorrido em direção às periferias tirasse um ano de expectativa de vida dos seus moradores — uma consequência direta de todas as outras desigualdades de renda e de acesso a serviços básicos que permeiam a cidade. A pandemia de covid ressaltou ainda mais as diferenças, matando três vezes mais nas periferias do que nos bairros ricos, segundo um levantamento da TV Globo. “A vida é diferente da ponte para cá”, canta o grupo de rap Racionais, fazendo referência à Ponte João Dias, na zona sul. Ao marcar a divisão entre o centro expandido e as periferias, a ponte contraria seu sentido original de ligar espaços e passa a simbolizar o oposto, um muro entre duas realidades totalmente diferentes.
Transformar São Paulo em uma cidade menos desigual, garantindo o acesso de todos os seus moradores (e não apenas o de uma minoria) à qualidade de vida é um dos principais objetivos do Plano Diretor Estratégico (PDE). Instrumento criado para tentar organizar o crescimento e o desenvolvimento urbano na maior cidade do País, completa neste ano meio século de existência. Ao longo de 50 anos, os planos diretores passaram por muitas mudanças. De uma versão imposta sem muita conversa com a população, no pior momento da ditadura militar, em 1971, passando pela de 1988, que simplesmente não pegou, até as elaboradas em 2002 e 2014, com ampla participação popular e vontade de trazer para o tecido urbano da capital paulista as promessas de uma sociedade mais livre e democrática, feitas pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto das Cidades.
Em cada edição do plano, muita treta. O que vai para o papel, em forma de lei, é fruto da tentativa de conciliar os embates entre diferentes forças — movimentos sociais, associações de moradores, mercado imobiliário — e objetivos distintos, entre os que querem usar a cidade para morar, lucrar, construir, vender, viver.
O primeiro plano:
“São Paulo foi uma das últimas metrópoles na América Latina a ter um plano diretor”, afirma o vereador Paulo Frange (PTB), presidente da Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP). Até a década de 1970, a maior parte do planejamento urbano que a cidade conhecera havia sido feito pelos ricos, para os ricos e inicialmente à margem da lei. Tratava-se dos bairros planejados e construídos pela empresa privada inglesa City, responsável pelo loteamento de bairros como Jardim Europa, Pacaembu, Alto de Pinheiro, Alto da Lapa, Jardim Paulista — os mesmos que, até os dias de hoje, e não por acaso, continuam entre os mais ricos e brancos da cidade, onde as pessoas conseguem viver até 20 anos a mais do que em outras partes mais pobres, pretas e periféricas do Município.
Os bairros traçados pela City seguiam normas próprias de edificação, altura, calçamento, entre outros, que acabaram posteriormente incorporadas ao Código de Obras paulistano. O restante da cidade era “sem sistema”, como reconheceu o prefeito Fábio Prado, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em 1936.
Primeira lei pensada para regular o território da capital como um todo, em 1971, levava o nome de Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado do Município e foi proposta pelo prefeito José Carlos de Figueiredo Ferraz. Aprovada pela Câmara Municipal, foi sancionada em 30 de dezembro daquele ano. A lei ainda não falava em redução de desigualdades, gestão democrática ou direito à cidade, princípios que só passariam a fazer parte dos planos diretores durante o período democrático, após a aprovação do Estatuto das Cidades, em 2001.
Em 1972, o Plano Diretor foi regulamentado pela Lei de Uso e Ocupação do Solo, mais conhecida como Lei do Zoneamento. Enquanto o PDE traça as estratégias gerais, o zoneamento serve para trazer essas ideias para a cidade real, delimitando em cada área da cidade o quanto é permitido construir e para que usos (residencial, comercial, misto, preservação ambiental, etc.).
Assim, plano e zoneamento criam marcações que vão dizer quais partes de São Paulo são legais e quais estão fora da lei, quem segue as normas e quem é irregular. As consequências dessas escolhas, políticas e econômicas, são imensas. As zonas consideradas regulares têm uma outra relação com o poder público bem diferente das demais. “Quem está seguindo as normas pode conseguir na hora uma ligação de água, enquanto um bairro popular vai ter que lutar anos ou décadas para obter uma ligação da Sabesp”, exemplifica a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), em um curso promovido pelo Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade), também da FAU, voltado para os mandatos das vereadoras negras da CMSP.
Ao mesmo tempo, as leis vão determinar o quanto se pode faturar, ou não, com cada pedaço da cidade. E aqui novamente é Rolnik que dá um exemplo: “É muito diferente ter um terreno onde só pode fazer uma casinha e ter um terreno onde se pode fazer uma torre com 50 andares”.
No que deu o primeiro plano:
Um dos pontos mais duradouros trazidos pelo primeiro Plano Diretor e pela Lei de Zoneamento que o regulamentou foi sacramentar o formato dos bairros residenciais para ricos criado pelos ingleses da City. Jardins, Pacaembu e os demais bairros-jardins foram classificados como Z1, zonas que só podem ser usadas para moradia e onde prédios estão proibidos. O traçado e o uso dessas áreas se mantiveram muito parecidos ao longo de todos os Planos Diretores e Leis de Zoneamento que vieram depois, apenas mudando de nome. “As construções da City permanecem até hoje em 2,5% do território de São Paulo, demarcado como Zonas Estritamente Residenciais (ZERs)”, diz Frange.
No mapa do primeiro zoneamento, fruto do primeiro Plano Diretor, os traçados de perímetros são detalhados e coloridos nas regiões central e oeste. O mapa vai perdendo contornos e detalhes à medida que avança para a periferia. Segundo Rolnik, o desenho do zoneamento de 1972 é fruto de um PDE feito de cima para baixo, sem participação popular, que dialogou apenas com os setores mais endinheirados da população. Mesmo assim, mostrou-se duradouro. “O zoneamento de 1972 ainda permanece e foi atravessando tudo quanto é plano diretor, mudando de nome, mas ainda muito fortemente presente na história de todos os planos”, reafirma Rolnik.
Enquanto a forma de produzir cidade feita pela City era valorizada ao ponto de os produtos criados pela companhia inglesa serem transformados em norma legal com poucas modificações e ganhando força da lei, as formas de produzir casa, comércio, lazer e cultura dos bairros e territórios populares não tinham qualquer reconhecimento oficial. “É um plano que fala uma linguagem que não é a predominante do modo de produção da cidade das maiorias”, aponta a urbanista. “O planejamento era excludente porque não ouvia a maior parte do povo.”
Da mesma forma que os desenhos detalhados da legislação ajudaram a preservar intactos os bairros dos ricos, o vazio legal reservado às periferias também trouxe suas consequências, entre elas a ocupação desenfreada das áreas de mananciais por construções irregulares, à margem do zoneamento. “Enquanto o resto da cidade tinha uma legislação bem específica de como deveria ser ocupada, a região dos mananciais era um vazio de legislação. Então, como a cidade tinha poucas ofertas de habitação popular, os mananciais acabaram virando um espaço de ocupação popular irregular”, explica a arquiteta e urbanista Danielle Klintowitz, coordenadora-geral do Instituto Pólis. “Não legislar também determina um rumo para uma região da cidade.”
Esse poder que os planos diretores têm de influir nos rumos da cidade nem sempre é bem-visto pelo mercado imobiliário, que constantemente reclama das interferências que considera excessivas e dos efeitos que provoca. Para Claudio Bernardes, presidente do Conselho Consultivo do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo (Secovi-SP), o primeiro Plano Diretor “foi uma boa intenção que causou um desastre na cidade”.
O plano de 1971 previa desestimular a construção e venda de loteamentos que não tivessem “melhoramentos públicos”, como energia elétrica, captação de água e asfalto. “Essa determinação não cabia no bolso das pessoas e praticamente acabou com o loteamento popular”, aponta Bernardes. Até então, era comum que empresários construíssem e vendessem loteamentos sem a presença da infraestrutura mínima, que ia sendo acrescentada nos anos seguintes, pelo poder público, à medida que mais pessoas compravam casas nesses locais e os antigos loteamentos se integravam à cidade. Como não era mais possível vender casas sem água nem luz para os pobres, e a cidade não contava com planos eficientes e acessíveis de habitação popular, a baixa renda teve de se virar criando favelas, inclusive em áreas de preservação ambiental. “Nos anos seguintes, explodiu o número de favelas e, principalmente, a ocupação de áreas de mananciais. Foi a primeira consequência danosa de uma legislação mal elaborada”, afirma Bernardes.
A visão do empresário é contestada por arquitetos e urbanistas, para quem o problema das leis de 1971 e 1972 foi legislar de menos, e não demais, sobre a cidade. “Concordo que o zoneamento de 1972 ajudou a estimular a produção de favelas, mas por motivos diferentes”, afirma Klintowitz. Segundo ela, o poder público tinha o dever de garantir que os loteamentos tivessem uma infraestrutura e cobrar isso dos construtores. A criação de favelas e a ocupação das áreas de preservação ambiental, por outro lado, teria sido evitada, segundo ela, se o poder público tivesse feito programas eficientes de moradia popular.
O plano também trouxe consequências para a habitação popular ao criar, em plena zona rural do Município, áreas onde era permitida a construção de conjuntos de habitação popular pelo poder público. Chamadas Z8100/1, essas áreas, situadas nos extremos, foram aproveitadas pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab-SP) para a criação de vastos conjuntos habitacionais que se tornaram bairros, como Cidade Tiradentes ou Conjunto Residencial José Bonifácio, ambos na zona leste, a 20 e 30 quilômetros do marco zero da capital paulista.
Ao fazer isso, o poder público condenou milhares de pessoas a uma vida difícil, isoladas em bairros que não tinham nada além de casas, sem acesso a serviços, comércio, esportes ou lazer, e tão distantes dos locais de trabalho que até hoje precisam passar em média duas horas no transporte público todos os dias. “A grande crítica ao planejamento desse período é que não tinha uma integração entre as várias políticas públicas. Simplesmente se produziu habitação e não tinha uma política de desenvolvimento econômico, de empregos, entre outras coisas”, assegura o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, que, como vereador, foi relator dos projetos de lei que deram origem aos Planos Diretores de 2002 e 2014.
Bonduki e Rolnik apontam outra consequência do primeiro PDE e da Lei de Zoneamento que o regulamentou. A proliferação, em várias áreas da cidade, de um tipo específico de construção: prédios altos e estreitos, afastados da rua e rodeados no térreo por piscinas, áreas de lazer e outros penduricalhos. Esse formato foi adotado pelo mercado em resposta a uma norma que ficou conhecida como fórmula de Adiron, em homenagem ao seu criador, o arquiteto Benjamin Adiron Ribeiro. Na época do primeiro Plano Diretor, Adiron dirigia a Coordenadoria Geral de Planejamento (Cogep) da Prefeitura e foi responsável por fazer os traçados da primeira Lei de Zoneamento — uma tarefa que realizou sozinho e em segredo, a mando do prefeito Ferraz, para evitar as “pressões brutais” que receberia caso as definições dos perímetros fossem conhecidas, como ele conta em entrevista ao site de arquitetura e urbanismo Vitruvius.
A fórmula de Adiron permitia aumentar o coeficiente de aproveitamento (o máximo que se pode construir, para cima, em relação ao tamanho do terreno) se a construção diminuísse a taxa de ocupação do lote (porcentagem do terreno, no chão, que pode ser ocupada pela edificação). A solução encontrada pelo mercado foi construir ao máximo ocupando o mínimo possível do terreno, com prédios altos e estreitos. Esse formato desencorajou a instalação de fachadas ativas (com comércio no térreo, aberto para a rua) e fez os condomínios instalarem uma série de atividades nos espaços vazios do térreo, de playgrounds e piscinas a espaços zen. Mudanças que levaram os moradores desses prédios a se isolarem em relação à vida do seu entorno.
Na época, representantes do Secovi chegaram a propor a Adiron que, em vez de usar a fórmula criada por ele, pudessem pagar uma taxa em troca do direito de construir mais. Na mesma entrevista, Adiron conta que ficou indignado com a proposta, que ele entendeu como uma ideia de “pagar por fora”, uma verdadeira “negociata”. Três décadas depois, o pagamento dessa taxa pelo direito de construir não só seria aceito como passaria a fazer parte dos planos diretores, ao lado de outros instrumentos pensados para reduzir a desigualdade e garantir o direito de todos à cidade.
Enfim, os planos da democracia:
Há leis que não pegam, e foi o caso do Plano Diretor sancionado pelo prefeito Jânio Quadros em 1988. Embora o País já tivesse se livrado da ditadura imposta pelos militares até 1985, a transição democrática ainda estava pelo meio do caminho. O Plano Diretor da democracia recém-nascida seguiu a mesma tradição do criado em plena ditadura: foi pensado de cima para baixo, com pouco envolvimento da maior parte da população. Como não foi complementado por uma Lei de Zoneamento que demarcasse suas ideias no terreno da cidade —o zoneamento implantado em 1972 só seria modificado pela Lei de Uso e Ocupação do Solo de 2004 —, o Plano de 1988 teve poucas consequências práticas.
Nesse meio tempo, novos atores entram em cena no debate urbanístico, impulsionados pelos novos ventos democráticos. “No começo dos anos 80, os bairros e vilas populares, junto com os profissionais da cidade, como arquitetos, urbanistas e advogados, começaram a lutar pelos direitos dos moradores das periferias”, recorda Rolnik. Os movimentos sociais se organizaram no Movimento Nacional pela Reforma Urbana, que participou dos debates da Assembleia Constituinte e conseguiu garantir, no artigo 182 da Constituição Federal, que todas as propriedades deveriam cumprir uma função social, a ser definida pelos planos diretores de cada município.
Esse trecho da Constituição foi regulamentado, em 2001, pelo Estatuto das Cidades, lei federal que introduziu a obrigatoriedade da “gestão democrática” do planejamento urbano, “por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade”. Em obediência à lei federal, a Prefeitura e a Câmara Municipal de São Paulo abriram espaço para uma ampla participação popular nos debates dos Planos Diretores Estratégicos seguintes, sancionados em 2002, pela prefeita Marta Suplicy, e em 2014, pelo prefeito Fernando Haddad. Cada um deles foi complementado por novas Leis de Zoneamento que finalmente modificaram o que havia vigorado, sem grandes mudanças, por mais de três décadas.
“Os dois planos diretores aprovados no momento da vida democrática foram realmente grandes espetáculos que a Câmara Municipal teve”, afirma Paulo Frange. Para elaborar o PDE de 2014, por exemplo, a CMSP realizou 62 audiências públicas, que reuniram cerca de 6 mil participantes no total, além de receber contribuições enviadas pelo portal da Casa. Para o vereador, a entrada em cena do povo faz toda a diferença: “os outros não pegaram porque, sem participação popular, um plano dessa envergadura não cria pernas”.
Além de democratizar o planejamento urbano, o Estatuto das Cidades forneceu aos gestores públicos um arsenal de instrumentos que poderiam ser utilizados na política urbana para combater a especulação imobiliária e aumentar o acesso da população à terra, nas cidades. Um dos novos instrumentos lembrava o “pagamento por fora” pelo direito adicional de construir, que havia escandalizado Adiron, o coordenador de Planejamento da Prefeitura nos anos 70. Agora com o nome de outorga onerosa do direito de construir, esse instrumento permite ao empresário edificar acima do coeficiente de aproveitamento básico de um terreno, contanto que pague uma taxa à Prefeitura, destinada ao Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb).
“A ideia da outorga onerosa é que o empreendedor paga uma contrapartida pelo investimento público que foi feito numa certa área”, explica Bonduki. O que faz um imóvel ser lucrativo para o mercado imobiliário é justamente o fato de contar com uma infraestrutura (asfaltamento, coleta de água e esgoto, fornecimento de energia elétrica, acesso a transporte público) que foi instalada ali pelo Estado e, portanto, paga por toda a população. Se a coletividade ajudou a garantir o lucro privado, é justo que uma parte desse lucro seja revertida para ela. “Tudo o que se construiu até 2003 não pagou nada de outorga onerosa para a Prefeitura, mesmo usando intensamente o solo”, aponta o ex-vereador.
Relator na Câmara Municipal dos projetos de 2002 e 2014, Bonduki conta que enfrentou uma disputa grande nessa questão com o mercado imobiliário, que queria fazer valer a tese de que o zoneamento implantado entre 1972 e 2003 valeria como uma espécie de direito adquirido para as incorporadoras. A tese acabou rejeitada e o PDE de 2014 garantiu a implantação de um coeficiente de aproveitamento mínimo para todo o Município, no valor de 2. Isso significava que, a partir de então, todo imóvel construído com uma área maior do que duas vezes a área do terreno tinha a obrigação de pagar a taxa da outorga onerosa. Em 2014, o PDE conseguiu uma nova redução, dessa vez para um coeficiente básico mínimo de 1 para toda a cidade, o que aumentou ainda mais o pagamento dos empreendimentos à Prefeitura.
Uma outra mudança introduzida no último plano se deu na aplicação dos recursos do Fundurb. Se em 2002 o uso era livre, a última versão estabeleceu prioridades: pelo menos 30% desses recursos deveriam ser investidos na compra de terrenos destinados à produção de Habitação de Interesse Social (HIS), para a população de baixa renda, e outros 30% em obras para transporte público, ciclistas e pedestres.
Os novos planos diretores também reconheceram a presença da população de baixa renda no mapa da cidade, ao demarcar as Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), destinadas à moradia para a população de baixa renda. De 17 km² demarcados no plano de 2002, a área das Zeis aumentou para 37 km² em 2014.
Uma das ideias centrais do atual PDE prevê que, para aproximar o local onde as pessoas moram de onde trabalham, o poder público deve estimular o adensamento em torno dos eixos de transporte coletivo de massa: corredores de ônibus e linhas de trem, metrô e monotrilho. Essas regiões ganharam um coeficiente de aproveitamento mínimo de quatro vezes a área do terreno, com a autorização para construir apartamentos de até 80 m², um limite que busca garantir que a verticalização também gere adensamento perto do transporte público, e com vagas limitadas de garagem.
O plano estimula os projetos de fachada ativa, com comércio no térreo, que integram os imóveis ao seu entorno. Ao mesmo tempo, busca evitar a verticalização nos miolos dos bairros, onde só é possível construir em até duas vezes a área do terreno, e com altura máxima de oito andares.
Movimentos sociais, especialmente os de moradia, comemoraram a incorporação, no PDE, de instrumentos que buscam efetivar o conceito de função social da propriedade, previsto na Constituição Federal. O principal é o Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios (Peuc), que busca proibir a especulação imobiliária, ao obrigar os proprietários a construírem nos terrenos e, uma vez que os imóveis tenham sido edificados, determina que tenham que ser ocupados por pessoas. Se o dono não fizer isso, a lei entende que sua propriedade não cumpre função social e pode ser alvo de aumentos constantes no valor do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo e, após cinco anos, desapropriação com títulos da dívida pública. Tudo para evitar que imóveis em áreas centrais, cheias de infraestrutura, fiquem vazios enquanto tanta gente precisa de moradia.
O que o plano trouxe:
Um diagnóstico técnico, divulgado neste ano pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento da Prefeitura de São Paulo procurou avaliar o desempenho dos instrumentos implementados pelo PDE em 2014. Ao longo dos seis anos seguintes, segundo o estudo, 38% desses instrumentos tiveram desempenho considerado bom, 23% médio, e 5% ruim. Em 34% dos casos, a análise da Prefeitura não conseguiu, até o momento, fazer uma avaliação.
Sobre o combate aos imóveis vazios, o documento afirma que “foram notificados 1.746 imóveis ociosos no período entre 2014 e 2020, sendo que em 2014 eram apenas 77 imóveis, e que 10% cumpriram completamente as obrigações e 27% estão em cobrança de IPTU progressivo em 2021”. O estudo reconhece, contudo, que “há dificuldades em criar estratégias para gestão, incorporação e destinação dos imóveis após os 5 anos de aplicação”. Nenhum desses imóveis foi alvo de desapropriação, algo que, segundo a Prefeitura, só deve começar a ocorrer a partir deste ano.
Ainda segundo o estudo, das 136.079 Habitações de Interesse Social, voltadas para famílias com renda de até 6 salários mínimos, construídas entre 2014 e 2019, 64% (86.487) estão em regiões que o plano de 2014 havia demarcado como Zonas Especiais de Interesse Social. “Este dado confirma a importância da Zeis para a provisão de HIS”, afirma o documento. Já a produção de Habitações de Mercado Popular, para quem tem renda entre 6 e 10 salários mínimos, deu-se mais fora do que dentro das Zeis.
A respeito do plano de aproximar moradia e emprego por meio do adensamento próximo às vias de transporte público, o diagnóstico da Prefeitura afirma que “é possível verificar que houve grande adensamento construtivo em algumas áreas da cidade, porém ainda não há condições de aferir o adensamento populacional”.
A verticalização nos eixos de transporte ocorreu com intensidade nas zonas oeste e central, ao longo do eixo Consolação e Rebouças, mas teve uma presença menor na zona leste e praticamente não ocorreu na zona sul, conforme um levantamento do LabCidade. “Esse modelo talvez seja meio classemediocêntrico, meio centro-sudoesteocêntrico, e dialogue menos com o resto da cidade”, analisa Rolnik.
Para Bonduki, o PDE não pode ser responsabilizado se nem todos os seus objetivos se concretizam. “O Plano Diretor não conseguiu obter todos os objetivos que pretendia porque a Prefeitura não implementou tudo o que estava previsto”, afirma. O urbanista cita o exemplo das 168 áreas demarcadas como Zonas Especiais de Proteção Ambiental (Zepams), muitas das quais ainda só existem no papel. “As Zepams estão lá, mas, se a Prefeitura não desapropriar, não vai ter os parques. Estar no plano não quer dizer que algo vai acontecer”, diz.
O estudo da Secretaria de Urbanismo e Licenciamento afirma que a cidade conta, hoje, “com 109 áreas verdes mantidas pela Prefeitura, sendo que oito parques foram implementados após o PDE de 2014”.
A vereadora Elaine do Quilombo Periférico (Psol) aponta que o Plano Diretor tem muitos pontos positivos e transformadores, mas é difícil levá-los para a população que mais precisa, nas periferias. “Muitos pontos importantes que estão no Plano ficam cada vez menos detalhados quando se afasta do centro. Por mais que a gente avance nas questões, esses elementos que geram uma cidade melhor acabam ficando novamente nas regiões centrais da cidade, atendendo a mesma população”, critica. Para ela, é um problema que não se restringe ao PDE. “Nossa cidade é muito desigual e tem dificuldade de construir políticas públicas que sejam acessíveis à totalidade da população.”
Hora de rever (ou não):
O atual Plano Diretor Estratégico tem validade até 2030, mas uma revisão intermediária está prevista para ocorrer em 2021. Embora conste no texto da lei, a revisão vem sendo alvo de críticas por parte de urbanistas e movimentos sociais por ocorrer num período de pandemia, que dificulta a participação popular. Uma carta assinada por mais de 400 entidades, reunidas num grupo chamado Frente São Paulo Pela Vida, pede que a revisão só seja realizada “quando o atual estado de crise sanitária estiver superado e a pandemia de covid-19 estiver plenamente controlada”.
A vereadora Elaine é uma das que defendem o adiamento da revisão até o fim da pandemia, para garantir a efetividade da participação popular. “Seria muito triste a gente vir de uma participação histórica na elaboração do Plano Diretor anterior e fazer uma revisão à revelia dos movimentos que ajudaram a construir”, argumenta.
O mercado imobiliário tem posição oposta, em nome de uma preocupação social. “A revisão do Plano Diretor interessa para os milhões de pessoas que estão excluídas da cidade, morando fora do centro ampliado, em locais onde têm a mesma expectativa de vida do Haiti, precisam se deslocar três horas por dia para chegar ao trabalho e não têm lazer”, afirma Claudio Bernardes, do Secovi. Ele estima que, nos próximos dez anos, São Paulo vai ter uma demanda por 800 mil novos domicílios e sugere que as limitações para construção criadas pelo PDE precisam ser revistas. “Onde vamos colocar esses domicílios? Vamos continuar jogando essas pessoas lá [nas periferias]?”, pergunta. A Secretaria de Urbanismo e Licenciamento da Prefeitura de São Paulo pretende fazer a revisão e elaborou um cronograma.
Se alguns veem na pandemia um motivo para não fazer a revisão, Paulo Frange acredita que é possível usar diversas ferramentas tecnológicas para garantir a participação popular, e que o impacto da covid-19 é justamente um dos motivos que justificam a revisão. Segundo o vereador, a pandemia introduziu uma série de mudanças no jeito de viver a cidade, que pode impactar, por exemplo, no tamanho dos apartamentos e na relação com o comércio, na arquitetura dos hospitais e das universidades, na forma como as pessoas consomem produtos em casa.
A cidade, defende Frange, precisa responder a essas mudanças. “Nós precisamos agora transformar o Plano Diretor que nós aprovamos num outro Plano, com pequenos ajustes, para que a cidade seja mais resiliente, mais inclusiva, mais justa.”

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