sábado, 2 de abril de 2022

Feitiçaria no Brasil Colônia - Artigo

 


Feitiçaria no Brasil Colônia - Artigo
Artigo






"Para a cadeia do Aljube, mandei passar Vicente José Bento, preto Minas forro, que tendo sido preso para certas averiguações que convinham à Polícia fazer, consta agora para a voz pública que ele inculca-se feiticeiro, usando de várias superstições e granjeando o nome de curador de diversas enfermidades". (Paulo Fernandes Viana, 1811)
Em 30 de agosto de 1811, na cidade do Rio de Janeiro, o intendente-geral de Polícia da Corte, Paulo Fernandes Viana, comunicou ao juiz do crime do bairro de São José a prisão do preto forro Vicente José Bento, acusado de ser feiticeiro. À sua casa, na rua Santo Antônio, o dito curador atraía grande clientela, buscando solução para seus males. Segundo o intendente, com suas “imposturas”, José Bento extorquia diversas quantias relativas às curas que prometia fazer. Quando da sua prisão, foram encontrados em sua residência ervas, raízes e ossos, que usava nas práticas rituais.
Assim como esse, em outros ofícios expedidos pela polícia aos ministros criminais dos bairros e comarcas da corte, e nas relações de presos pela polícia no Rio de Janeiro, encontram-se relatos, sob a guarda do Arquivo Nacional, a respeito da prisão de pretos forros ou escravizados acusados de feitiçaria. A feitiçaria e outras práticas mágico-religiosas foram motivo de constante preocupação para as autoridades civis e eclesiásticas na América portuguesa. Documentos do Arquivo Nacional, sobretudo no fundo Polícia da Corte e Secretaria de Estado do Brasil, expõem a presença e a persistência em território colonial de feiticeiros, curandeiros, benzedores, mandingueiros, adivinhos, entre outras sortes de manifestação da religiosidade popular.
Segundo Laura de Mello e Souza (1986), pioneira nos estudos das práticas mágicas e da religiosidade popular no Brasil durante os séculos XVI, XVII e XVIII, o imaginário colonial esteve mergulhado num sistema heterogêneo de devoções, formado por traços católicos, africanos, indígenas e judaicos, que coexistiam e se articulavam entre si. A vivência, em terras de Santa Cruz, desse complexo de manifestações espirituais sincréticas, teceu uma religião especificamente colonial, em que crenças e práticas divergentes da ortodoxia oficial proposta pela Igreja Católica se fizeram presentes e foram compartilhadas por diferentes camadas sociais. Ainda de acordo com a historiadora, a feitiçaria colonial era multiforme e heterogênea, constituída basicamente por duas partes que integravam o mesmo todo: um fundo de práticas mágicas características de culturas primitivas (africana e indígena) e um fundo de práticas mágicas características das populações europeias, fortemente impregnadas de um paganismo secular que pulsava sob a cristianização recente e imperfeita.
Foi em meio a esse corpo de crenças sincréticas que a feitiçaria se inseriu no cotidiano popular da colônia. Suas práticas de cura buscavam satisfazer necessidades iminentes do dia a dia e resolver toda sorte de problemas, tanto do corpo como da alma. Feiticeiros eram indivíduos pertencentes às camadas mais baixas da sociedade colonial, sobretudo africanos, forros ou escravizados, indígenas e seus descendentes, homens e mulheres, que se utilizavam de práticas e artifícios mágico-misteriosos para sanar todos os males. Seus mecanismos de cura envolviam o uso de ervas e plantas medicinais, associadas a recursos sobrenaturais: adivinhações, benzeduras, magia para resolver problemas amorosos, de saúde e financeiros, eram algumas das habilidades de um feiticeiro, que buscava ora curar o corpo e desfazer feitiços, ora ser o próprio agente maléfico, lançando bruxedos em eventuais inimigos.
É o caso do preto forro de Minas que esteve a curar no engenho de Piraquara em Campo Grande, no Rio de Janeiro. Um sumário de polícia com depoimento de vários moradores da região dá conta das atividades do dito “curador de feitiços e malefícios diabólicos”, que estava em casa de Manuel Luís a curar pessoas com suas ervas. Entre elas, as filhas de Manuel Luís e de Francisco José, que se achavam "endemoniadas''. Afirma um dos depoentes que ele “fazia vários milagres de curar feitiços [...], fixar corpos, curar tísicos; assim como ao ver qualquer pessoa, logo se sabia as moléstias que tinha por dentro, e também adivinhava a quem as botava o dito feitiço”.
Nos relatos apresentados pelos habitantes de Campo Grande, feitiços, malefícios, adivinhações e possessões diabólicas aparecem ao lado da cura de moléstias dos corpos e de doenças, como a tuberculose, numa fronteira extremamente fluida entre o mundo físico e o metafísico. O historiador André Nogueira, em estudo sobre a relação entre o natural e o sobrenatural nas patologias das Minas Gerais do século XVIII, observou a estreita ligação entre as noções de doença e feitiço, em que a saúde do corpo estaria conectada à saúde da alma de forma indissociável, e o sagrado permeava a relação entre adoecimento e cura. Um feiticeiro era um manipulador de doenças, seja promovendo a cura ou sendo a própria causa. O preto forro em Piraquara curava corpos, doenças, feitiços e malefícios diabólicos, além de adivinhar a sua causa, um agente externo, possivelmente, outro feiticeiro.
A cosmovisão mágico-religiosa perpetrada no universo colonial legitimava a crença em fenômenos ocultos e/ou agentes externos como causa de doenças, mortes, problemas financeiros, amorosos, e uma infinidade de outros males. Essa disposição estava presente no repertório indígena, negro e branco, o que explica, em parte, a penetração desses elementos na América portuguesa.
Num momento em que a esfera jurídica mantinha atadas política e religião, a feitiçaria estava classificada como crime de heterodoxia, ou seja, prática que desviava dos dogmas estabelecidos pela Igreja Católica, sendo assim também uma ameaça ao Estado, portanto um delito passível de punição. A legislação eclesiástica colonial abordava a questão, estabelecendo penas àqueles que empregassem as “artes mágicas”. A perseguição aos elementos da religiosidade popular tipicamente colonial que dessacralizavam a religião católica, como é o caso da feitiçaria, atingiu seu ápice durante as visitações do Santo Ofício em terras brasileiras.
Mas a feitiçaria não foi apenas uma preocupação da Igreja, ocasionalmente poderia ser perseguida por braços da administração colonial, embora isso tenha sido bem mais raro. Na colônia, a Inquisição foi auxiliar do Estado, e a perseguição e punição de comportamentos heterodoxos e desviantes, uma forma de legitimação desses aparelhos de poder, seja eclesiásticos ou civis.
Embora o Santo Ofício, criado sobretudo para investigar e punir os crimes de heresia, tivesse jurisdição privilegiada sobre atos de feitiçaria, pois poderia ser caracterizada como crime de apostasia, ou seja, a renúncia da religião católica e suposto pacto com o demônio, sua maior preocupação na América portuguesa foi com o controle dos cristãos-novos e das práticas judaizantes. Assim, muitas denúncias contra possíveis feiticeiros foram investigadas por autoridades episcopais e civis, que determinavam as penas dos acusados, para depois transferir os casos para o Tribunal da Inquisição.
Registros da correspondência do Vice-reinado com diversas autoridades demonstram o empenho do vice-rei, marquês do Lavradio, em aplicar condenações cabíveis aos feiticeiros, “na forma da lei”. Em setembro de 1776, ele comunica a José Xavier Machado Monteiro, desembargador e ouvidor-geral da capitania de Porto Seguro, o degredo de Ináacia Francisca, parda forra, e de Ana Carvalho, preta forra, para a vila de Porto Seguro. A primeira é acusada de andar vestida de homem e a segunda, "por ter dado indícios de ser feiticeira". Pede ainda que o capitão-mor faça-as confessar sem permissão de retorno ao Rio de Janeiro, onde viviam.
O controle do Estado a essas práticas era mais uma forma de conservar a sociedade escravista, ao reprimir práticas curativas e religiosas controladas por negros e mestiços, vistos como causadores de “infinitas desordens” pelas autoridades civis. Sobre eles pesavam a desconfiança e a vigilância a respeito de suas vidas cotidianas, crenças, modos de lidar com o sagrado e conhecimento herbolário.
Embora não houvesse, até fins do século XVIII, uma burocratização com relação à feitiçaria por parte do poder secular, em início do oitocentos, já é possível notar a associação dessas práticas à ideia de estelionato e ao crescimento da interferência policial contra elas. Em 1814, o juiz do crime do bairro de São José, em ofício ao intendente de Polícia da Corte, acusa o preto Minas forro Vicente José Bento, citado no início do texto, de “extorquir diversas quantias de dinheiro de pessoas rústicas”.
Mas apesar da repressão eclesiástica e civil, grande parcela da população colonial tolerava e convivia com as práticas de feitiçaria, buscando a cura para seus mais diversos problemas. O feiticeiro era um curador informal do corpo e da alma, capaz de manipular as forças sobrenaturais que agiriam sobre a vida humana. Ricardo Ribeiro Coelho, em artigo sobre a arte de curar no Brasil colonial, afirma que os serviços de cura praticada sem licença representavam grande parte dos esforços empreendidos no diagnóstico e reparação dos corpos doentes.
São os feiticeiros, os magos, os pajés, os primeiros agentes da medicina. Indivíduos que, armados de sortilégios e encantamentos, pretendiam predizer o futuro, desvendar o mistério das coisas incompreensíveis, impetrar os favores dos deuses, espavorir os demônios, e, aos doentes, restituir a saúde transviada.
Estruturada no conjunto de práticas, hábitos e conhecimentos nascidos a partir do convívio assíduo entre as três culturas formadoras da sociedade brasileira – indígena, africana e europeia –, a medicina popular teve nos feiticeiros um de seus agentes. Granjeando o nome de curador de diversas enfermidades, de acordo com alguns dos documentos do Arquivo Nacional, os feiticeiros enfrentaram também a hostilidade de uma medicina erudita, que buscava sua afirmação tanto na Europa quanto em terras coloniais, e da fiscalização da Coroa portuguesa, que buscava coibir o exercício ilegal das práticas de curar na colônia e estabelecer uma hierarquia entre seus agentes.
Delegados e juízes comissionados do cirurgião-mor e físico-mor do Reino foram os responsáveis pela fiscalização das artes de curar nos domínios ultramarinos até a criação da Junta do Protomedicato (1782-1792), em Portugal, com extensão de suas redes para o Brasil, mas que teria vida curta. Em 1808, com a vinda da família real, seriam recriados, no Rio de Janeiro, os cargos de físico-mor e cirurgião-mor do Reino, Estados e Domínios Ultramarinos, que passaram a integrar a Fisicatura, órgão responsável, entre outras coisas, por conceder autorizações e licenças para a atuação dos terapeutas.
Medidas régias colaboraram para a legitimação do discurso do médico como autoridade inquestionável, no que concerne à saúde dos corpos, e estabeleceram as categorias de profissionais autorizados a praticar atividades curativas. Entre médicos, cirurgiões, boticários, dentistas, barbeiros, sangradores e parteiras, havia os curadores, que após exame de competência recebiam licença para exercer suas funções. Essas pequenas brechas de liberdade permitidas, mesmo para os libertos e livres, deveriam ser cedidas e vigiadas. Os curandeiros, assim como sangradores, barbeiros e parteiras, eram reputados como “terapeutas populares”, formados em sua maioria por escravos, forros e mulheres, sendo menos valorizados e sempre submetidos àqueles que estavam no topo dessa hierarquia: os médicos.
A despeito de todo o esforço da Coroa em regular as atividades médicas na colônia, a quantidade de profissionais oficializados não era suficiente para atender as demandas de toda a população num território tão vasto e com regiões de difícil acesso. A flexibilidade das autoridades no controle das práticas médicas seria frequente.
No entanto, apenas o reduzido número de agentes de cura licenciados na América portuguesa não explicaria a grande aceitação das práticas de feitiçaria pela sociedade colonial. Segundo Nogueira, ao analisar as denúncias de curas ilegais, seria possível afirmar que, muitas vezes, as práticas terapêuticas realizadas pelos curadores informais eram consideradas pelos habitantes da colônia como mais profícuas que os tratamentos médicos oficiais: “ora lançavam mão de padres exorcistas e cirurgiões, ora valiam-se principalmente dos ‘negros curadores’, ao sabor de seus interesses e crenças na eficácia dessas práticas terapêuticas”.
A atuação de feiticeiros e curadores informais foi amplamente aceita em todas as classes sociais, inclusive entre os colonizadores. Para Mello e Souza, o corpo de crenças sincréticas estruturado na colônia tornou possível uma maior tolerância dessas práticas mágicas. Os universos culturais lusitano, africano e ameríndio partilhavam a crença em curas mágicas, que podiam ser realizadas por meio do poder dos gestos, das palavras, dos objetos e de ervas medicinais. A concepção de doença como consequência de atos de feitiçaria encontrava paralelos nas três culturas.
A maior parte das denúncias e relatos de prisões por atos de feitiçaria, presentes nos documentos do Arquivo Nacional, é contra escravizados ou pretos forros. Mas seus saberes sobrenaturais e de cura foram demandados por outros grupos sociais. Ganhando fama através de suas práticas, eram requisitados, inclusive, por parte da elite colonial, galgando maior respeitabilidade social, mesmo que para isso enfrentassem o risco de serem denunciados. Apesar de arrolarem-se como crime as práticas e os saberes mágicos que fossem contrários aos preceitos e dogmas da Igreja Católica, e que se colocassem como uma ameaça ao Estado, magos e feiticeiros colocaram-se nesse papel da melhor forma possível, usando seus conhecimentos herbolários e o recurso ao sobrenatural para buscar afirmação social e ganhos materiais.
As práticas de feitiçaria constituíram uma forma de negros e mestiços obterem vantagens e oportunidades dentro do sistema escravista. Luciano Figueiredo, em seu livro sobre o cotidiano e o trabalho feminino nas Minas Gerais, destaca que a feitiçaria foi utilizada ora como meio de sobrevivência, e algumas vezes de ascensão social, ora como mecanismo de resistência contra a opressão da escravidão colonial.
A resistência ao sistema escravista assumiu diversas formas, desde as mais claras e diretas, como revoltas, formação de quilombos, fugas e assassinato de feitores e senhores , às mais sutis, inseridas no cotidiano da colônia, como a simples desobediência, abortos, roubos e uma gama de mecanismos adaptativos de negociação e estratégias para alcançar melhores condições sociais e de trabalho. As práticas de feitiçaria se inserem nessa segunda categoria, uma alternativa de confronto menos explícito, “muitas vezes a única possível”, mas que desafiaria a coerção e punição da Igreja e do Estado, além de mediar a relação entre senhores e escravos.
As forças sobrenaturais poderiam ser direcionadas pelo feiticeiro para vitimar senhores e suas famílias, além de atingir suas propriedades, ou ainda como método de defesa contra as condições do cativeiro. Não necessariamente destruir o sistema escravista, apenas burlá-lo. Ademais, foi uma forma de negros, índios e mestiços continuarem professando certas crenças e ritos dos seus referenciais tradicionais, sobretudo de matizes centro-africanas que, ao serem sincretizadas com a cosmovisão do colonizador, incluindo elementos católicos, fizeram com que as práticas de feitiçaria perdurassem no Brasil, apesar de toda perseguição.
Mesmo tendo uma função social reconhecida, os feiticeiros foram constantemente ameaçados e submetidos ao olhar vigilante da Igreja Católica, sobretudo do Santo Ofício, mas também do aparato do Estado, que se intensifica no século XIX. O medo que a elite colonial sentia dos escravos, sobretudo daqueles que podiam manipular o sobrenatural, refletia-se nas acusações de feitiçaria contra os cativos. Os documentos do Arquivo Nacional trazem luz sobre a forma como os feiticeiros foram perseguidos pelos braços do governo metropolitano. Na troca de correspondência entre as autoridades coloniais, nas relações de presos e nos registros policiais podemos perceber tensões e necessidades que marcaram o dia a dia da colônia, e como a feitiçaria se inseriu nesse cotidiano.

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