A Revolta da Armada - Artigo
Artigo
No dia 7 de setembro de 1893, a Gazeta do Rio de Janeiro noticiava, em sua primeira página, o movimento da esquadra brasileira que, opondo-se, pela via das armas, ao governo do marechal Floriano Peixoto, ameaçava bombardear a capital da República recém-inaugurada. Sua manchete principal, A Revolta, narra os acontecimentos do dia anterior, quando, sob o comando do contra-almirante Custódio José de Mello, oficiais da marinha tomaram o comando dos navios de guerra e torpedeiros ancorados no porto da cidade “em atitude francamente hostil ao governo”.
Antecedentes:
Não seria a primeira vez na história da jovem República que a Marinha brasileira interferia nos rumos da vida política nacional. Dois anos antes, em novembro de 1891, também sob a liderança de Custódio de Melo, a esquadra nacional, sublevada na baia de Guanabara, exigia a renúncia do presidente Deodoro da Fonseca.
As circunstâncias em que se encontrava a República em suas primeiras décadas não era das melhores. Abalada por uma grave crise econômica, ainda teria que enfrentar um golpe político: sem conseguir negociar com a bancada congressista, sobretudo com os republicanos liberais, Deodoro fechou o Congresso Nacional em 3 de novembro, instituindo o “estado de sítio”. Foi uma resposta direta a aprovação da Lei das Responsabilidades, que reduzia os poderes do chefe do executivo e ainda criava a opção de impedimento do presidente em determinadas situações.
A reação civil e militar foi imediata: políticos de oposição, entre eles Prudente de Moraes e Campos Sales, se organizaram para depor o presidente; na estrada de ferro Central do Brasil, empregados da companhia iniciariam uma greve e, no litoral fluminense, as tripulações do Aquidabã, Primeiro de Março e Riachuelo, rebelaram-se, anunciando um possível bombardeio contra a capital da República, caso o presidente não renunciasse. Deodoro não resistiu à movimentação das embarcações de guerra na Baía de Guanabara e deixou o cargo em 23 de novembro de 1891. O vice-presidente, marechal Floriano Peixoto, assumiu em seu lugar, no entanto, a tensão com a Marinha não cessaria.
A Armada na República:
A visão, de alguma forma consolidada pela historiografia tradicional, de que a Marinha era uma arma ligada à monarquia, que não havia participado nem apoiado o golpe que destronou d. Pedro II, e do Exército como o único responsável pela inauguração do regime republicano, atualmente passa por uma revisão.
José Miguel Arias Neto aponta indícios de que houve, entre a oficialidade da Marinha, um grupo descontente com o regime monárquico e que teria se articulado para promover a implantação da República.
Quadros do governo republicano foram ocupados por oficiais navais nos seus primeiros anos. O próprio almirante Custódio de Melo foi deputado constituinte em 1890, Ministro da Marinha, da Guerra e das Relações Exteriores durante o governo de Floriano Peixoto. Mas, de fato, existia um descontentamento com o menor prestígio político da Armada em comparação ao Exército durante as primeiras décadas republicanas, bem como um anseio, por parte do alto comando naval, de maior interferência na administração geral do país.
A crença de uma Marinha monarquista e um Exército republicano, corrobora com a visão, defendida e projetada pelo governo florianista, de que a Revolta da Armada foi uma tentativa de restaurar o regime deposto em 1889. Essa abordagem impede uma maior compreensão do contexto histórico, quando a Marinha passava por um estágio de formação de sua identidade e compreensão do que representariam para o país e para a República.
Quando Custódio de Melo renunciou ao cargo de Ministro da Marinha e rompeu com Floriano Peixoto às vésperas da revolta, o fez afirmando: “Dou, assim minha demissão, mas fora do Governo, servirei à República, defendendo e sustentando as suas instituições.” Em telegrama para o vice-presidente, após a conquista do Paraná pelas forças revolucionárias, o almirante reitera: “Se sois patriota como vosso passado indica, se sois republicano como afirmai, deixai o poder, em nome dos supremos interesses da Pátria e da República, que jura consolidar. Reação monárquica que tanto vos preocupa, aproveitará vosso enfraquecimento em lutas intestinas para derrocar instituição que tanto amamos. (...) Deixai já o poder para maior glória da República (...). Republicanos convictos, não alimentamos ambições individuais.”
A narrativa de que a Revolta da Armada foi um movimento monarquista serviria ao discurso oficial do governo que, convencendo os Estados Unidos das intenções restauradoras da Marinha rebelada, ganhou seu apoio contra os revoltosos, além de reforçar a imagem que Floriano buscou construir de consolidador da República.
Mas, vamos aos fatos.
O rompimento com o governo:
Após a renúncia de Deodoro da Fonseca, assumiria o vice-presidente eleito pela Assembleia Constituinte, o marechal Floriano Peixoto que, de acordo com o artigo 42 da primeira Constituição republicana, deveria governar provisoriamente até a realização de novas eleições: “Se, no caso de vaga, por qualquer causa, da Presidência ou Vice-Presidência, não houverem ainda decorrido dois anos, do período presidencial, proceder-se-á a nova eleição”.
No entanto, Floriano manteve-se na presidência, afirmando que esse dispositivo constitucional só seria válido para governantes eleitos por meio de eleições diretas. Apoiadores do vice-presidente temiam pela realização de um novo pleito presidencial tão cedo, o que poderia pôr em perigo a consolidação do regime republicano.
Segmentos da Armada logo deixariam clara sua insatisfação com o governo florianista e, em 6 de abril de 1892, treze oficiais-generais do Exército e da Marinha assinaram um documento, que ficou conhecido como Manifesto dos Treze Generais, onde exigiam novas eleições para presidente. Os jornais da capital ecoaram o manifesto e parte da população, entre jornalistas e políticos opositores, organizaram uma marcha até a casa de Floriano. Toda essa movimentação, considerada movimento conspiratório contra o governo, foi duramente reprimida e a prisão de seus líderes decretada.
Crescia a oposição ao vice-presidente no Congresso, na imprensa e a situação no sul do país se agravava: a instabilidade política característica dos primeiros anos de governo republicano no Rio Grande do Sul – onde, diferente dos outros estados da federação, havia uma disputa partidária intensa – resultou em um conflito armado, a Revolução Federalista (1893-1895). A guerra civil opôs republicanos – liderados por Júlio Castilhos – e federalistas – sob o comando de Silveira Martins. Os castilhistas receberam o apoio do governo federal, que enviou oficiais do Exército para lutar no conflito contra os federalistas, acusados por Floriano de planejar a restauração da monarquia.
Logo após a prisão dos manifestantes contrários ao governo, Custódio de Melo, ministro da Marinha do governo florianista, renuncia ao seu cargo, alegando não concordar com o rumo dos acontecimentos no sul do país. Defendia uma solução pacífica para o conflito, imprescindível para a estabilidade do regime republicano. O contra-almirante era candidato declarado à sucessão de Floriano e, após a renúncia, as ações do governo passaram a ser interpretadas pelos altos escalões navais como uma afronta à Marinha.
O conflito:
Os descontentes com o autoritarismo de Floriano – republicanos liberais, monarquistas, deodoristas e federalistas do sul – se voltam para a Armada que havia ajudado a depor Deodoro anos antes. Em 6 de setembro de 1893, a esquadra sublevada – formada por 16 navios de guerra, incluindo o Aquidabã, o Guanabara e o República, além de 18 navios mercantes aprisionados –, cercou a entrada do Rio de Janeiro. Exigiam a renúncia do vice-presidente da República e o restauro das leis constitucionais. No entanto, não seria como no primeiro levante, o Exército manteve-se fiel ao governo e, ao contrário do ex-presidente, o marechal resistiria.
Em setembro de 1893, fortes fluminenses, em poder do Exército, foram bombardeados pelas diversas unidades encouraçadas e houve troca de tiros com a artilharia; outros aderiram a causa, como o forte de Villegaignon. Em contrapartida, o governo federal instalaria canhões no alto dos morros, em pontos estratégicos, para combater os navios revoltosos.
Os principais conflitos ocorreram na cidade de Niterói, a ponta da Armação foi um dos locais cobiçados, pois encontravam-se depósitos de munições necessárias aos navios da esquadra revoltada. Bem como a fortaleza de Santa Cruz, que junto com o forte de São João, no outro lado da baía de Guanabara, protegiam a entrada da barra. Assim, a capital do estado do Rio de Janeiro foi transferida para Petrópolis, fora do alcance dos canhões da Marinha, e só voltaria para o litoral em 1903.
Sem muito apoio da população do Rio de Janeiro e diante da impossibilidade de tomar a capital federal, em abril de 1894, Custódio de Melo parte para o Sul do país em busca de uma aliança com os federalistas gaúchos contra o governo federal. A ligação entre o contra-almirante e Silveira Martins – líder dos federalistas – já se delineava mesmo antes da eclosão da revolta na Guanabara. Essa articulação provocou a ampliação da luta no Sul, levando os federalistas a ocuparem Santa Catarina e, depois o estado do Paraná, com ajuda de efetivos da Armada que desembarcaram em Desterro, atual Florianópolis.
Saldanha da Gama assumiria, então, o comando da Esquadra revoltada no Rio de Janeiro. Reconhecido monarquista, Saldanha da Gama manteve-se neutro até dezembro de 1893, quando lançou seu manifesto aderindo a causa rebelde e defendendo a realização de um plebiscito para que a nação decidisse a forma de governo que desejava adotar – se a Monarquia ou a República.
Floriano Peixoto aproveitou-se do manifesto de Saldanha da Gama para poder acusar os rebeldes de monarquistas e, assim, arregimentar republicanos neutros e outros grupos sociais do país, bem como para conseguir o apoio dos Estados Unidos contra a Armada sublevada.
A atuação norte-americana, com a chegada de uma esquadra legalista adquirida nos EUA – que contava inclusive com marinheiros estadiunenses –, a deterioração do material e a carência de recursos levaria ao fim do conflito no litoral fluminense. A revolta foi sufocada em março de 1894, e parte da frota rebelada conduzida para o sul do Brasil, palco da Revolução Federalista, onde também foram derrotados pelas tropas do governo.
A violência usada pelas forças florianistas para conter ambas as revoltas, lhe rendeu a alcunha de Marechal de Ferro. Foi reputado, por seus apoiadores, como o braço forte que consolidou a jovem República e, por seus críticos, como ditador sanguinário – Floriano suspendeu a liberdade de imprensa e as liberdades individuais durante as revoltas, muitos opositores precisaram exilar-se do país, além de executar grande quantidade de prisioneiros de forma sumária, sem qualquer tipo de procedimento que lhes garantisse a ampla defesa ou o direito ao contraditório.
A participação estrangeira na revolta:
Com o decorrer do conflito, a frota estrangeira fundeada na baía de Guanabara, passou a desempenhar importante papel. Precisavam manter a liberdade de navegação, proteger seus súditos radicados na cidade e os interesses comerciais dos seus países na capital da República. Assim, a delegação diplomática de Inglaterra, França, Itália, EUA e Portugal passaram a mediar as negociações entre o governo brasileiro e os sediciosos, buscando evitar o bombardeio do Rio de Janeiro.
No “acordo de 5 de outubro”, as força estrangeiras estabeleceram um conjunto de regras a serem seguidas pelo governo e pelos revoltosos. Entre as medidas, o Rio de Janeiro foi considerado “cidade aberta” e, portanto, não poderia sofrer ataques ou agressões de ambos os lados. A proibição de bombardeios à capital, deu à Floriano tempo necessário para reorganizar suas forças, conseguindo o apoio financeiro de São Paulo e, negociações no exterior para estruturação de uma Armada legalista capaz de pôr fim a revolta.
A esquadra Flint entrou na baía de Guanabara em 11 de março de 1894, rompendo com a barreira dos revoltosos e estipulando um prazo de 48h para o começo das operações militares contra os navios insurgentes. Como já mencionado a participação norte-americana foi fundamental para a vitória do governo federal e pode ser explicada, de acordo com Topik, pelo contexto internacional de expansão de novos impérios coloniais e comerciais. Os EUA procuravam meios para efetivar o que ficou conhecido como Doutrina Monroe, que tinha como principal slogan “América para os americanos”, do Norte... Ao mesmo tempo em que buscavam afastar a influência comercial europeia na região, pretendiam consolidar a hegemonia norte-americana no continente, conseguindo assim, privilégios comerciais.
Já o Brasil, via na aproximação com os EUA uma forma de evitar a preponderância dos países europeus no país, reputados como possíveis restauradores da monarquia, sobretudo, Portugal. O americanismo norteou a política externa da jovem República brasileira.
Outra consequência direta do conflito foi o rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal. Com a vitória legalista, Saldanha da Gama solicitou asilo político aos navios portugueses sediados na Guanabara, no que foi atendido pela legação portuguesa. O governo brasileiro vai exigir a devolução dos refugiados junto à Portugal, por entenderem que os rebeldes não seriam criminosos políticos, pois, de acordo com o decreto de 10 de outubro de 1893, haviam perdido todas as prerrogativas legais, acusados pelo governo de pirataria, ou seja, um crime comum.
No entanto, os navios portugueses avançaram em direção à bacia do Prata, onde ocorre a fuga de 254 brasileiros, incluindo o líder Saldanha da Gama, juntando-se aos aliados federalistas no Rio Grande do Sul. O episódio fez com que o governo de Floriano Peixoto rompesse as relações diplomáticas com Portugal, consolidando a postura “americanista” do governo brasileiro. Ao romper com Portugal, afastava-se da ideia do velho, da tradição, da monarquia e abria caminho para o novo, o progresso, a República.
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