Conjunto Habitacional do Pilarzinho / Conjunto Habitacional da URBS, 1967, Curitiba, Paraná, Brasil
Curitiba - PR
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Entre as décadas de 1930 e 1970, a América Latina passou por um processo de modernização apoiado em projetos de industrialização, no qual a urbanização foi um aspecto crucial. Num cenário em que prevalecia a ideia de que o Estado era o agente responsável pelo desenvolvimento, houve a criação de organizações específicas para tratar da questão urbana. Isso favoreceu a constituição de um campo de reflexão intelectual e prática profissional, com acentuadas articulações internacionais, especialmente norte-americanas, compondo um circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas. Nesse processo, os planejamentos urbano e regional apareceram como instrumentos centrais de ação, e a habitação como o principal problema a ser resolvido, fazendo a informalidade urbana emergir como um tema importante.
A historiografia brasileira recente sobre informalidade urbana tem procurado ampliar seu escopo tradicional, centrado na cidade do Rio de Janeiro como caso emblemático. Tal extravasamento investigativo contribui para a compreensão das múltiplas manifestações da informalidade urbana na América Latina, tanto em termos espaciais quanto temporais, possibilitando a construção de escalas comparativas. Portanto, restam desafios importantes para aprofundar a compreensão dos diferentes contextos históricos urbanos, ampliando o repertório de evidências que, por conseguinte, possibilitarão desenvolver a própria compreensão das origens da informalidade urbana no Brasil.
O objetivo deste artigo é então investigar o surgimento das favelas e a gênese do pensamento e da ação estatal sobre tal fenômeno em Curitiba. Nesse caso específico, o ponto inaugural dos estudos sobre habitação social costuma ser o arcabouço institucional criado a partir do golpe civil-militar de 1964, constituído pela Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab-CT) e pela Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar), e que permanece em operação até hoje. Apesar do reconhecimento de que o surgimento das primeiras favelas é anterior, esse período é em larga medida ignorado. Há, assim, um vazio investigativo que convida à compreensão do tema da favela em Curitiba. Para abordar esse fenômeno, será analisada sua conexão ao circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas, verificando como ele influenciou, direta ou indiretamente, o pensamento e a ação de organizações e agentes públicos.
A pesquisa historiográfica se concentrou em duas fontes principais. A primeira é constituída por reportagens de jornais paranaenses que estão localizadas na Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. A segunda é composta por trabalhos acadêmicos de Serviço Social, desenvolvidos na Universidade Católica do Paraná nas décadas de 1950 e 1960, disponíveis em sua biblioteca, e que constituem rico material de pesquisa, dado que estudantes e professoras também atuaram em organizações diretamente relacionadas ao tema da favela.
Para alcançar o objetivo delineado, o artigo está organizado em cinco seções. Inicialmente se delimita a constituição do campo de reflexão intelectual e prática profissional latino-americano sobre o espaço urbano. Na sequência, explora-se a forma pela qual essas ideias foram introduzidas no Paraná e em Curitiba, favorecendo a institucionalização do planejamento urbano e regional e posicionando a habitação como uma lacuna temática. Nas três seções seguintes apresenta-se a evolução das favelas em Curitiba e como elas se tornaram uma questão importante, exigindo respostas do poder público. Inicialmente, a crise habitacional que ocorreu logo após a Segunda Guerra Mundial é analisada; em seguida, a expansão de favelas durante a década de 1950 e, por fim, como os governos estadual e municipal, amparados num projeto político que colocava o planejamento como instrumento central de gestão, incorporaram o tema da favela.
O circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas:
Na primeira metade do século XX, a América Latina passou por intensas transformações que tiveram o espaço urbano como um elemento-chave. A crise mundial gerada pela quebra da bolsa de valores em 1929 foi um ponto de inflexão. Esse evento permitiu a constituição de um arranjo político composto pela nascente classe média e por setores militares populistas, centralizado na figura de um líder carismático, que buscou o apoio da classe popular contra a antiga oligarquia, ligada às atividades extrativistas e agrárias. Tal projeto de poder fundava-se na noção de modernização da sociedade com o objetivo declarado de construir uma nação independente. Essas características se mantiveram mesmo após a Segunda Guerra Mundial, ganhando novos contornos com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). O conceito de desenvolvimentismo, que enfatizava a necessidade de superação dos problemas dos países latino-americanos por meio de um desenvolvimento econômico independente, tornou-se hegemônico.
O Estado assumiu o papel de condutor desse projeto, empregando o planejamento como ferramenta estratégica, e tendo o estímulo à industrialização como um dos componentes estruturantes. Uma das consequências desse projeto foi um intenso e acelerado processo de urbanização que se prolongaria por décadas. Ocorreu um aumento demográfico expressivo, motivado tanto por migração interna via êxodo rural quanto por imigração europeia, fazendo com que a população latino-americana passasse de 104 milhões em 1930, para 275 milhões em 1970. Assim, a produção de um espaço novo nas cidades, garantindo habitação acessível para a nova classe média, tornou-se uma estratégia de afirmação do projeto político de modernização. Isso ocorreu tanto pela transformação da cidade colonial quanto pela abertura de novas frentes de urbanização. A população de baixa renda não esteve contemplada nesse arranjo. Em grande medida sua inserção no espaço urbano ocorreu de forma precária, por meio de assentamentos informais conhecidos como barriadas, favelas, poblaciones callampa, villas miseria. Assim, o resultado dessa modernização foi contraditório, produzindo acentuados desequilíbrios.
Esse contexto favoreceu substanciais modificações institucionais. Tais processos, conceitualmente compreendidos como uma conjuntura crítica, revelam um momento em que as estruturas vigentes estavam menos limitadas por constrangimentos institucionais vinculados à dependência de trajetória, mostrando-se insuficientes para prover soluções adequadas, e, portanto, suscetíveis à mudança.
Uma influência decisiva veio do processo de integração interamericana desenvolvido pelos Estados Unidos da América (EUA) desde o final do século XIX, com o objetivo de consolidar a sua hegemonia no continente. Essa tarefa foi exercida principalmente pela União Pan-Americana, entidade vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), por meio da realização de congressos e da criação de organizações e de programas de cooperação e assistência técnica. A recepção dessa influência, porém, não foi apenas passiva, esteve também sujeita a reinterpretações autônomas.
Foi, assim, constituído um circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas. Um ponto fundamental foi a incorporação progressiva do conceito de planejamento na dimensão espacial. Nesse processo, cujo auge ocorreu entre as décadas de 1950 e 1970, a habitação apareceu como um dos principais problemas a serem resolvidos.
A magnitude, a urgência e a novidade da demanda habitacional exigiram uma resposta complexa, demandando um novo arcabouço institucional capaz de apresentar soluções concretas. Sistemas financeiros foram criados articulando bancos nacionais e linhas de crédito específicas, bem como organizações voltadas para a pesquisa, planejamento, gerenciamento e execução dessas obras.
"Foi produzido um corpus notável de propostas de solução para o ‘problema da moradia’, que cruza a tradição da vanguarda arquitetônica do século XX com os debates políticos e sociológicos sobre América Latina".
Em relação às favelas, um conceito central foi o de marginalidade, desenvolvido com diferentes abordagens e que encontrou ampla difusão. Uma das principais vertentes foi a do Centro para o Desenvolvimento Econômico e Social da América Latina (Desal). Localizado no Chile, ele contava com acentuada influência da Democracia Social Cristã, que defendia a construção de uma via intermediária entre o comunismo e o capitalismo.
Nessa perspectiva, a marginalidade era entendida como resultado da desintegração social causada pelas desigualdades historicamente produzidas na América Latina. Parte da população estava fora do sistema social nesse esquema dualista, constituindo uma entidade separada. Isso ocorria nas dimensões física, cultural, social, econômica e política. A solução era a integração da população marginal à sociedade. Em razão da fragilidade institucional dos países latino-americanos era necessário apoio externo, o que justificou parcerias com os EUA.
A favela representava a dimensão física da marginalidade. Argumentava-se que o processo de modernização causava um crescimento demográfico urbano exponencial, derivado da migração da população rural. Os problemas surgiam da incapacidade desses migrantes se integrarem plenamente na cidade.
O conceito de marginalidade consistiu num mito que serviu para justificar a manutenção de privilégios das classes dominantes. No caso das favelas, esse conceito favoreceu a construção de sujeitos sociais descartáveis, justificando uma forma de integração que consistiu, via de regra, na erradicação das favelas, removendo a população para conjuntos habitacionais localizados nas periferias urbanas.
No caso brasileiro, um novo arranjo político foi estabelecido com a ascensão de Vargas ao poder em 1930, resultando na implantação de um projeto de modernização da sociedade. O Estado foi remodelado com a criação de um aparato burocrático, com vistas a ampliar sua capacidade de intervenção. O objetivo central desse projeto foi o estímulo à industrialização, porém, como forma de formar uma ampla aliança, também foram construídas diversas políticas públicas.
A industrialização concentrou-se nas cidades, tornando-as polos centralizadores de atividades econômicas, dando início a um intenso crescimento populacional e ao surgimento do problema de limitação da oferta de habitação. Nesse período, a maior parte da população acessava a moradia por meio de aluguel.
Para enfrentar a questão, foram criados os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) a partir de 1933, estruturados por categorias profissionais com a finalidade de prestar auxílio previdenciário, médico e habitacional aos seus associados. Como forma de atenuar as contradições decorrentes da ausência de atendimento universalizado, também houve um congelamento de aluguéis em 1942.
Em função da limitada eficácia dessas medidas, ao longo das décadas de 1930 e 1940, a favela e a casa autoconstruída em loteamentos periféricos sem infraestrutura urbana passaram a se constituir crescentemente numa alternativa para população de baixa renda.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, ocorreram alterações na conjuntura política, provocando a redemocratização que estabeleceu a denominada República Populista. Ao mesmo tempo, a hegemonia norte-americana se aprofundou, o que levou à ampliação de sua influência no circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas.
Outro efeito foi a acentuação das contradições habitacionais. A elevação dos preços em geral, e dos imóveis em particular, tornou o mercado imobiliário de alto padrão o destino prioritário do excedente de capitais então existentes. Assim, a produção habitacional voltada para a população de baixa renda deixou de ser atrativa e foi reduzida, causando escassez e elevação do preço dos aluguéis. Uma das consequências foi o aumento dos despejos como forma dos proprietários reaverem seus imóveis e encontrarem destinações mais rentáveis. O resultado foi uma profunda crise habitacional, principalmente entre 1945 e 1948.
Tal conjuntura colocou, de forma inédita, a questão habitacional como tema central da agenda política. Os esforços na esfera federal foram para otimizar o atendimento habitacional, via centralização dos recursos dispersos nos vários IAPs. Vargas propôs sem sucesso a criação do Instituto de Serviços Sociais do Brasil. O presidente seguinte, Eurico Gaspar Dutra, retomou a proposta e, logo no seu primeiro ano de mandato, criou a Fundação da Casa Popular (FCP).
Contudo, a ideia de centralização foi fragilizada pela oposição de diversos interesses. Aqui interessa explorar aqueles ligados a questões regionais. Na Constituição de 1946, os estados e municípios conquistaram maior autonomia administrativa. Isso levou à emergência do Movimento Municipalista, que tinha como base de sustentação a Associação Brasileira de Municípios, criada em 1946, o Congresso Nacional de Municípios Brasileiros, que contou com seis edições realizadas entre 1950 e 1963, e o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam), criado em 1952.
Nesse cenário, a FCP se tornou uma organização sem recursos e força política para desenvolver funções amplas e centralizadas, conforme originalmente previsto. Devido à importância que a pauta habitacional havia alcançado, agentes políticos regionais procuraram assumir essas atribuições. Verificou-se uma progressiva descentralização das políticas habitacionais, com a criação de organizações de âmbito estadual e municipal.
Em relação à atuação em favelas, essas organizações adotaram uma abordagem contraditória. No discurso oficial, enfatizavam uma perspectiva higienista, de remoção dos moradores para conjuntos habitacionais. Contudo, também realizaram levantamentos censitários e ações de assistência social, saúde e infraestrutura urbana, que tiveram, em muitos casos, um papel precursor no reconhecimento das favelas.
Outra influência importante na inserção do tema da favela na agenda pública veio da Igreja Católica. No Rio de Janeiro, foram criadas para atuar nas favelas a Fundação Leão XIII, em 1947, e a Cruzada São Sebastião, em 1955. Essas organizações caracterizaram-se por retórica anticomunista e práticas apoiadas no serviço social, servindo de referência para o restante do Brasil.
Nesse contexto, principalmente a partir da década de 1950, o campo do urbanismo foi ampliado, levando em conta as suas dimensões multidisciplinar e multiescalar. Construiu-se um espaço institucional com maior autonomia que impulsionou a formulação e a consolidação de novas ideias e práticas. Esse é o caso da Sociedade de Análise Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais (Sagmacs), criada em 1947 pelo padre francês Lebret. Essa organização teve papel decisivo na disseminação do planejamento urbano e regional no Brasil. Sua fundamentação era o Movimento Economia e Humanismo, formulado na França na década de 1940 com acentuada influência de pensadores católicos, que propunha um desenvolvimento integral e harmônico, vinculado às ideias da Democracia Social Cristã. Outros exemplos foram o Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos (Cpeu), criado em 1955 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, e o Centro de Estudos de Planejamento Urbano e Regional, criado em 1960 na Universidade do Recife.
Assim, o período posterior à Segunda Guerra Mundial, especialmente a partir da década de 1950, foi marcado pela ascensão do campo do urbanismo, tendo o planejamento urbano e regional como instrumento central de ação e a habitação como um dos principais problemas a serem resolvidos.
Planejamento urbano e regional no Paraná e em Curitiba:
A introdução do campo do planejamento urbano e regional no Paraná esteve diretamente ligada à formulação de um projeto desenvolvimentista. A industrialização foi conduzida pelo Estado ao longo da década de 1950, empregando o planejamento como principal ferramenta. O objetivo era superar a predominância das atividades agrícolas e extrativistas na economia.
No processo de redemocratização, Moysés Lupion (1947-1951) foi eleito como governador pelo Partido Social Democrático (PSD). Empresário da indústria madeireira, foi apresentado como um agente modernizador, em oposição aos adversários associados às antigas oligarquias agrárias. Durante seu governo, além da introdução de técnicas de planejamento governamental, houve também uma aproximação inicial com a Sagmacs. A atuação dessa empresa era ligada ao Partido Democrata Cristão (PDC), em razão do compartilhamento de um ideário comum. Foi assim que, sob influência da Sagmacs, o governador de São Paulo, do PDC, estimulou a criação da Comissão Interestadual da Bacia Paraná-Uruguai (Cibpu), em 1951. A origem foi um convênio de cooperação para elaborar um plano regional de fomento ao desenvolvimento dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Goiás.
A gestão seguinte foi de Bento Munhoz da Rocha Netto (1951-1956), eleito pela União Democrática Nacional (UDN) em coligação com outros partidos. A comissão da coordenação do Plano de Desenvolvimento Econômico do Estado do Paraná (Pladep) foi criada em 1955 para impulsionar o projeto desenvolvimentista regional, por meio do planejamento de políticas públicas.
Moysés Lupion (1956-1961) voltou a vencer a eleição seguinte, novamente pelo PSD. Em 1958, no âmbito da Cibpu, a Sagmacs apresentou um relatório propondo a criação de polos regionais para subsidiar a industrialização dos estados da região Sul.
Mas foi na gestão de Ney Braga (1961-1965), eleito pelo PDC, que o impulso para a industrialização atingiu seu ápice. A Companhia de Desenvolvimento do Paraná (Codepar) foi criada em 1962 para planejar e promover esse processo. Os laços com a Sagmacs foram estreitados, e, em 1963, ela foi contratada pela Codepar para elaborar o Plano de Desenvolvimento do Paraná. Seguindo a lógica do estudo de 1958, o território foi dividido em regiões e foram formuladas propostas específicas de desenvolvimento social e econômico para cada uma delas. Além disso, foi proposta a reorganização da administração pública.
No caso de Curitiba, houve a progressiva constituição de práticas de planejamento urbano. Começando ali sua carreira política como prefeito, eleito de forma independente, Ney Braga (1954-1958) se aproximou do Movimento Municipalista. O Ibam assessorou a reestruturação administrativa realizada pela prefeitura, na qual foi criado o Departamento de Planejamento e Urbanismo (DPU). Na gestão de Iberê de Mattos (1959-1962), eleito pelo Partido Trabalhista Brasileiro, a Comissão de Planejamento da Cidade foi criada, em 1959, ligada ao DPU e composta das divisões de Planejamento, Plano diretor e Estudos e projetos.
A gestão de Ivo Arzua (1962-1966), eleito pelo PDC em coligação com outros partidos, marcou alinhamento total com o então governador Ney Braga, lançando as bases para um projeto político que empregava o planejamento como instrumento central de gestão. A influência do Movimento Municipalista continuava presente. Ivo Arzua presidiu o VI Congresso Nacional de Municípios Brasileiros, realizado em Curitiba em 1963, onde apresentou suas ideias sobre gestão urbana. Nesse mesmo ano, criou a Companhia de Urbanização e Saneamento de Curitiba (URBS) para realizar grandes intervenções na cidade. E em 1965, sob recomendação da Codepar, foi elaborado o Plano Preliminar de Urbanismo (PPU), que levou à criação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba no mesmo ano, o qual, por sua vez, exerceu papel decisivo nas décadas seguintes.
Assim, seguindo a conjuntura brasileira e latino-americana, houve, a partir da década de 1950, a institucionalização do planejamento urbano e regional nos governos do Paraná e de Curitiba. Contudo, uma lacuna nessa narrativa continuava a ser o tema da habitação. Como já apresentado, esse período se caracterizou pelo emprego dessas ferramentas para solução de diversos problemas urbanos, mas especialmente o da habitação, por ser considerado um dos mais urgentes naquele momento.
A crise habitacional após a Segunda Guerra Mundial:
O Paraná tornou-se um dos principais produtores de café do Brasil a partir do final da década de 1940, gerando um acentuado desenvolvimento econômico. Grande parte dessa riqueza foi canalizada para Curitiba, que era o centro administrativo, comercial e industrial do estado, gerando uma transformação urbana significativa. A população aumentou de 140.656 em 1940, para 180.575 em 1950, e o mercado imobiliário foi dinamizado. A área liberada para construções passou de 275.750 m², no quinquênio de 1941 a 1945, para 941.932 m², no de 1946 a 1950 (Polucha, 2019). Seguindo o que ocorria nos principais centros urbanos brasileiros, os investimentos priorizaram a verticalização da área central para a população de alta renda.
Para população de baixa renda esse foi um período de crise, com oferta restrita de moradia e aluguéis elevados. O contraste existente na cidade foi ilustrado pelo seguinte trecho de reportagem: “Não se constroem, em Curitiba, casas modestas, de pequeno aluguel. Arranha-céus e apartamentos para inquilinos de recursos – os pobres, e pessoas de poucos proventos, condenados a ficarem sem habitação”.
Foi nesse momento que apareceram os primeiros registros de favelas na imprensa, tratando-se ainda de agrupamentos de poucas casas e de difícil identificação.
Inicialmente, as favelas surgiram nos bairros Capanema e Prado, que formavam um espaço segregado, delimitado por dois ramais da estrada de ferro e atravessado pelo rio Belém, que cruzava todo o centro da cidade. Nessa área próxima da zona industrial estava o pátio de manobras da estrada de ferro, ao lado do qual existia um conjunto habitacional construído na década de 1930 para trabalhadores ferroviários. Esse local era também marcado por relações étnico-raciais, onde se desenvolveu uma intensa cultura popular. Grande parte dos trabalhadores era negra e ali foi formada em 1945 a primeira escola de samba de Curitiba, a Colorado, ligada ao Clube Atlético Ferroviário.
As reportagens sobre favelas eram tratadas como expedições a uma parte inóspita da cidade, trazendo descrições dos domicílios. “O seu feitio, as largas frestas por onde entram o vento e a chuva […]. É na verdade a vila da Miséria, erguida em plena Curitiba, no século XX, nos anos dos lucros extraordinários”. No bairro Capanema um repórter encontrou “verdadeiras casinholas onde uma família numerosa (às vezes duas) reside, apertada entre saletas sem conforto”. Em outro relato, um deputado levou à Assembleia Legislativa as impressões de sua visita à Vila do Pinto, referência ao nome do loteamento existente na região. Essa favela era descrita como um “lugar infecto devido ao seu aspecto baixo e pantanoso e habitado por gente paupérrima, que construiu suas casas de caixas velhas”.
As pressões políticas aumentaram com a redemocratização ocorrida após o fim do Estado Novo, e o tema da habitação ganhou destaque. No 2º Congresso Sindical dos Trabalhadores do Paraná, realizado em 1946, ela foi incluída na pauta de demandas, por meio da reivindicação de “habitações proletárias ‘confortáveis e higiênicas’, próximas dos locais de trabalho, cujo aluguel não ultrapassasse 15% da renda do trabalhador; cessão gratuita de terrenos destinados a edificação; licença para construção de casas de madeira nas zonas habitadas por operários”.
É nesse cenário que o governo do Paraná e a prefeitura de Curitiba desencadearam uma série de ações na área de habitação social. Essas duas esferas de governo estavam diretamente alinhadas nesse período. Apesar de o prefeito ter sido escolhido em 1947 por uma Câmara de Vereadores eleita diretamente, já em 1948 foi retomada a prerrogativa de indicação do governo estadual, que permaneceu até 1954.
A primeira ação ocorreu em 1946, quando a prefeitura construiu um conjunto de dez casas operárias, tendo como justificativa a crise habitacional em curso. Apesar do número reduzido, a iniciativa indicava a existência de ambições maiores: “essas dez casas populares representam, na verdade, o início de um grande plano de assistência ao trabalhador, pois elas constituem o princípio do bairro operário que, em Santa Quitéria, será levantado pela prefeitura”. Não foi identificado nenhum plano ou projeto desse bairro operário. Mas, de fato, essa afirmação concretizou-se nos anos seguintes, com a construção de outros conjuntos habitacionais em Santa Quitéria, bairro que até então estava fora do quadro urbano. Ali a prefeitura, em parceria com organizações federais, construiu mais quatro conjuntos habitacionais.
Num cenário em que os recursos disponibilizados pela FCP estavam aquém das demandas, e os agentes políticos pressionavam pela ação cada vez maior das esferas estaduais e municipais de governo, emergiram novos arranjos institucionais, organizados de forma descentralizada no Brasil. Seguindo essa tendência, foi criada, em 1950, a Caixa de Habitação Popular do Estado do Paraná (CHPEP). A principal fonte de recursos foi a cobrança de 1% do imposto sobre transmissão de bens imóveis, originalmente destinado para FCP. A CHPEP existiu até 1965, quando foi substituída pela Cohapar, no âmbito da reestruturação institucional realizada pelo golpe civil-militar de 1964.
A principal atividade da CHPEP foi a produção habitacional. Por meio de conjuntos, essa organização produziu 497 unidades habitacionais em Curitiba, e 295 no restante do estado. Além disso, a CHPEP também financiou a construção de 439 casas isoladas entre 1951 e 1963. Contudo, o aumento das favelas em Curitiba ao longo da década de 1950 alteraria o escopo de atuação não só da CHPEP mas também de outras organizações, tanto do governo estadual quanto ligadas à Igreja Católica.
A expansão das favelas na década de 1950:
O auge do ciclo do café e o início de um processo mais consistente de industrialização intensificaram a migração na década de 1950 para o Paraná, em geral, e para Curitiba, em particular. A população da cidade dobrou em dez anos, passando de 180.575, em 1950, para 361.309, em 1960.
Para compreender melhor o impacto desse crescimento populacional no espaço urbano é importante analisar como ocorreu a sua estruturação. O espaço urbano é moldado pelas disputas em torno do valor da terra, definido pelo atributo da acessibilidade ao centro da cidade. Num processo histórico de longo prazo, as camadas de alta renda escolhem espaços conectados ao centro da cidade para se autossegregarem.
No Brasil, as estradas de ferro constituíram um importante elemento estruturador. Partindo do centro, a porção da cidade situada para além dela possuía menor acessibilidade e, em geral, se tornava uma área de concentração da população de baixa renda.
Esse foi o caso de Curitiba, com a estrada de ferro, associada à rodovia BR-2 inaugurada na década de 1960, cumprindo esse papel estruturante. O crescimento da população de baixa renda ocorreu principalmente na direção sudeste, no Boqueirão, bairro até então agrícola, situado na várzea do rio Iguaçu, por isso sujeito a inundações periódicas. A ocupação ocorreu majoritariamente por loteamentos clandestinos, implantados sem infraestrutura urbana adequada. De acordo com o PPU, em Curitiba estimava-se existir oitocentos loteamentos aprovados e mil clandestinos em 1964.
Foi nesse contexto que ocorreu o aumento de favelas na década de 1950. Para acompanhar a sua evolução, foram analisadas as reportagens dos jornais do período, a partir das quais é possível verificar a preocupação com esse fenômeno: “Há cerca de quatro a cinco anos, não havia favelas em nossa capital. Hoje elas estão em franco e assustador crescimento, na maioria dos bairros”.
Confirmando o papel definidor da estrada de ferro na estruturação urbana, as favelas surgiram próximas a ela. Os jornais noticiaram a existência das favelas do Cristo Rei e da rua Itupava em 1952. A primeira estava localizada próximo ao pátio de manobras da estrada de ferro, sendo descrita como “dezenas de infectos pardieiros construídos pelas mãos dos próprios habitantes daquele reduto doloroso”. A segunda estava localizada nas margens da estrada de ferro, possuindo “pouco mais de dez casebres, mal-acabados, onde vivem em condenável promiscuidade inúmeras pessoas”.
Mas logo as primeiras favelas deixaram de ser citadas e a atenção da imprensa se voltou para aquelas que cresciam mais rapidamente e atingiam um número de domicílios bem mais elevado. A principal delas era localizada nas margens da estrada de ferro, entre os bairros Vila Guaíra e Lindóia. Com presença constante nas reportagens, era considerada a maior da cidade, tendo entre 250 e 500 domicílios.
A segunda maior era a favela da Santa Quitéria, com o número de domicílios variando entre cinquenta e duzentos. Localizava-se nas margens do rio Barigui, próxima aos conjuntos habitacionais construídos na década de 1940. Relatos de moradores indicavam maior dificuldade de sobrevivência devido à distância em relação ao centro da cidade.
A frequência de reportagens sobre favelas aumentou significativamente a partir do final da década de 1950, sugerindo que as existentes estavam aumentando e que outras estavam surgindo. Em geral, isso era entendido como efeito colateral do processo de modernização, de transformação de Curitiba em metrópole. Nesse sentido, os jornais buscavam desconstruir a ideia de que a cidade era imune ao fenômeno, muitas vezes usando grandes centros, principalmente o Rio de Janeiro, como modelo: “Paisagem de carioca prolifera em Curitiba: favelas crescem! Muita gente (ainda) pensa que favela é privilégio de carioca. […] No entanto, favela existe em todo Brasil”.
Esse aumento ocorreu nos pequenos núcleos já existentes nos bairros Capanema e Prado. O início da construção da rodovia BR-2, que ligaria Curitiba a São Paulo, a transferência do hipódromo daquele local e a retificação do rio Belém criaram uma série de interstícios urbanos que facilitaram esse processo. Ali formaram-se as favelas Vila Pinto, Capanema, Prado Velho e BR-2, que passaram posteriormente a ser chamadas simplesmente de favela do Belém. No conto “Pensão Nápoles”, de 1959, o escritor Dalton Trevisan empregou o rio Belém como signo da pobreza em Curitiba: “A prefeitura ignorava-lhe o curso subterrâneo; rio de pobre, se não fora o Belém, com que água as mães dariam banho nos piás?”. Muitas vezes considerada pela imprensa como a terceira maior favela de Curitiba, o número de domicílios variava em torno de oitenta.
Em relação às novas favelas, as principais foram a do Parolin e do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários (IAPC). A primeira surgiu entre as da Vila Guaíra e do rio Belém, e recebeu esse nome devido ao loteamento ali existente. Também era conhecida como Guairacá, em razão da proximidade com a sede desse clube de futebol, ou ainda Vaticano. Ela se desenvolvia ao longo de um córrego que servia de escoamento para o Curtume do Portão, o maior da cidade. A segunda favela surgiu num terreno adquirido pelo IAPC em 1944, que, após longas tratativas, foi parcialmente utilizado para construção de um conjunto habitacional em 1958. Além dessas duas, outras favelas menores começaram a aparecer em pontos mais distantes da cidade. Apenas citadas em reportagens, sua localização não era bem determinada: Vila Hauer, Vila Nossa Senhora de Fátima, Oficinas e Vista Alegre eram as principais.
Em geral, a imprensa interpretava o fenômeno adotando o conceito de marginalidade: “A principal causa da formação das favelas nas cidades, resultante do êxodo rural, é o atraso em que vivem os homens do campo. Em sua quase totalidade analfabetos, não têm elementos para defender-se contra as dificuldades naturais da vida”. A favela e seus moradores eram considerados desajustados em relação ao processo de modernização, um efeito colateral indesejado, que conspurcava o padrão de cidade proposto: “Com o crescer da cidade, Curitiba está agora enfrentando um problema social gravíssimo: [...] o aparecimento de favelas e moradias improvisadas, que desfiguram a paisagem do centro e dos bairros”.
Com o aumento progressivo das favelas, começaram a surgir iniciativas para enfrentar a questão. A primeira ação estatal identificada ocorreu em 1950, marcada por um caráter higienista. Devido à visita do presidente Dutra a Curitiba, o governador Moyses Lupion relocou cerca de trinta famílias, que moravam nas margens do rio Belém, na estrada que ligava o aeroporto ao centro da cidade. O destino foram as casas existentes no Matadouro Modelo, desativado desde 1935, como indicado na Figura 1. Ocorreu nova relocação de cerca de cem famílias localizadas às margens da estrada de ferro para o mesmo local, em 1953.
Contudo, logo começou a emergir uma postura diferente, provocada principalmente pelo campo do serviço social. Criado no Brasil na década de 1930, inicialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, ligado a grupos liberais e católicos, ele buscava tratar a pobreza por uma perspectiva técnica, atenuando as tensões políticas subjacentes. Em Curitiba, a partir de um apoio inicial do Instituto Social do Rio de Janeiro, foi fundada a Escola de Serviço Social em 1944, que passou a integrar a Universidade Católica do Paraná em 1959.
Esse campo logo foi assimilado pelo setor público. Em 1947, foi criada a Secretaria de Saúde e Assistência Social, que se transformou em Secretaria do Trabalho e Assistência Social (STAS) em 1951. Na CHPEP foi organizado o Serviço de Pesquisa e Assistência Social em 1953, sob orientação técnica de Dalva Borges de Macedo, que havia concluído o curso de Formação Familiar e Social na Escola de Serviço Social de Curitiba em 1949.
Organizações beneficentes ligadas à Igreja Católica criaram o Centro Social da Vila Guaíra em 1955, para atender a maior favela de Curitiba. Entre as atividades desenvolvidas, estavam cursos populares e um serviço de apoio a mães e gestantes. Também foi estimulada a criação de grupos de moradores, que passaram a reivindicar melhorias urbanas, tais como abastecimento de água e auxílio médico.
O tema da favela motivou a criação do Conselho de Obras Sociais em 1956, para atuar como coordenador dos serviços assistenciais de organizações particulares e públicas. Nesse mesmo ano, o governou estadual instituiu o Conselho de Assistência Social, que contaria com recursos da loteria do Paraná para prestar serviços e realizar obras.
Seguindo essas ações, a CHPEP realizou, em 1956, o primeiro levantamento de favelas em Curitiba, refletindo um quadro nacional com diversas iniciativas semelhantes. O primeiro censo de favelas ocorreu no Rio de Janeiro em 1940, por meio da Secretaria de Saúde e Assistência Social da prefeitura do Distrito Federal, inserida no contexto dos Parques Proletários Provisórios. Posteriormente, a responsabilidade ficou a cargo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que realizou censos em 1948, 1950 e 1960. Os censos implicaram um tratamento mais científico das favelas, por fazerem uma leitura complexa da realidade, ajudando a desmistificar visões preconceituosas e permitindo a construção de novas representações simbólicas.
O levantamento de 1956 identificou 2.200 famílias em favelas, cortiços, casas de cômodo, ranchos, barracões e vilas. Mais de 90% das famílias moravam em domicílios de madeira, com mais de 70% pagando aluguel. Em relação à origem, 48% das famílias eram da zona rural, 30% eram de Curitiba e 22% de outros estados. A maior parte dos chefes de família tinha algum emprego fixo: 28% eram operários fixos e 25% eram empregados estaduais ou municipais. Isso contrariava em parte o estereótipo de marginalização constantemente reproduzido pela imprensa. Afinal, um grande contingente de moradores era de Curitiba e estava inserido na economia local, mas, mesmo assim, morava na favela. Nos anos seguintes, a prática de levantamentos se tornou comum, indicando uma outra postura do poder público.
Em 1957, o campo do serviço social estabeleceu uma conexão direta com o circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas por meio de Dalva Borges de Macedo. Ela recebeu uma bolsa de estudos do programa Point IV, que propiciou especialização em Organização das Comunidades e Habitações Populares nos EUA, estágio no Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento (Cinva) na Colômbia, e visita ao Peru. No retorno, foi recebida pelo governador Moyses Lupion e pelo presidente da CHPEP para relatar os resultados de seus estudos.
Um meio importante dos EUA para exercerem sua hegemonia após a Segunda Guerra Mundial foram os programas de cooperação e assistência técnica. Isso implicou o treinamento nos EUA de profissionais dos setores público e privado e a inserção de profissionais especializados norte-americanos em organizações latino-americanas. Diferentes ações foram realizadas e o programa Point IV, criado em 1949, foi uma delas. Houve também a criação do Centro Interamericano de Vivienda em 1951, que se tornou Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento em 1954, vinculado à Universidade Nacional da Colômbia, através de um programa de cooperação técnica da OEA.
O Cinva se tornou, ao longo da década de 1950, uma referência em planejamento habitacional na América Latina, promovendo cursos e seminários. Em 1956, realizou a Primera Reunión Técnica Interamericana de Vivienda y Planeamiento, e, em 1958, o Seminario de Técnicos y Funcionarios en Planeamiento Urbano. O Cinva desenvolveu uma nova abordagem de planejamento urbano, incorporando elementos sociais, em oposição aos modelos comuns no período, que eram associados geralmente ao campo disciplinar da economia e possuíam um viés estritamente tecnicista.
A Carta de los Andes, documento resultante do Seminario de Técnicos y Funcionarios en Planeamiento Urbano, sintetizava as conclusões desse desenvolvimento. Nela, são propostas uma série de medidas progressistas, evidenciando a desigualdade de poder existente nas sociedades latino-americanas. A Carta de los Andes exerceu influência significativa no Brasil, com a essência de suas proposições sendo refletida nos debates ocorridos no Seminário de Habitação e Reforma Urbana realizado em 1963.
A partir dessa conexão estabelecida, Dalva Borges de Macedo passou a disseminar o conhecimento adquirido, interagindo com outras organizações do governo estadual. Em 1960, o Pladep organizou um comitê regional provisório do Paraná para participar do 2º Congresso Brasileiro de Serviço Social, realizado no ano seguinte, no Rio de Janeiro, cujo tema central foi “O Desenvolvimento Nacional para o Bem-Estar Social”. Inserida no debate desenvolvimentista, a ideia era que o progresso seria resultado da ação planejada do Estado. A tarefa do serviço social era a de integrar a população nesse processo de modernização. Nessa perspectiva, as favelas eram entendidas como desajustes que precisavam ser corrigidos com o emprego do planejamento urbano e regional.
A tarefa de elaborar um trabalho sobre habitação foi designada à CHPEP, sob a responsabilidade de Dalva Borges de Macedo. Consta nos anais do congresso a apresentação do trabalho intitulado “Algumas considerações em torno do problema de habitação de interesse social nas áreas urbanas”, e a apresentação da experiência da CHPEP em um grupo de estudo cujo tema era “O papel do Serviço Social nos programas de renovação urbana”.
Foi apresentado nos jornais paranaenses um resumo do trabalho de Dalva Borges de Macedo, identificando como causa estrutural do problema habitacional a reduzida oferta de habitação social frente ao aumento da demanda, gerado pelo crescimento urbano. É possível reconhecer nas soluções propostas medidas higienistas, como o policiamento das construções, e também outras diretamente conectadas com o repertório de ideias que circulavam na América Latina naquele momento: elaboração de um plano de habitação de interesse social articulado com o plano de desenvolvimento econômico do estado; construção de unidades de vizinhança para áreas urbanas; organização das comunidades e adoção do método de ajuda mútua para construção de unidades habitacionais.
De especial interesse é o método de ajuda mútua, pois ele acabou sendo aplicado em Curitiba nos anos seguintes. Tributário do conceito de marginalidade, e conhecido também por ação comunal, ação coletiva, ou autoajuda, esse método de produção habitacional foi originalmente desenvolvido pelo Cinva. Adequado às características latino-americanas, ele previa utilizar a habitação como catalisador do desenvolvimento social. Partia-se do princípio de que a demanda habitacional era composta majoritariamente por uma população migrante da área rural. A premissa subjacente era de que possuía poucos vínculos estabelecidos com o espaço urbano, baixa renda, e, portanto, ausência de capacidade de pagamento. A estratégia para enfrentar esse problema era o emprego da autoconstrução da habitação pela comunidade, amparado por um intenso trabalho social. Essa escolha buscava a redução do custo da obra e o estímulo da organização comunitária. O trabalho social permeava todo o processo, auxiliando a população desde a autoconstrução até o período de pós-ocupação. A proposta era, então, o desenvolvimento da comunidade em sua totalidade, propiciando sua integração ao espaço urbano.
Dalva Borges de Macedo introduziu a ideia do método de ajuda mútua na CHPEP, pois, de acordo com o organograma de 1963 dessa organização, o Serviço de Pesquisa e Assistência Social possuía uma unidade de Ajuda Mútua e Urbanizações Mínimas.
Além de trabalhar na CHPEP, ela concluiu o curso de Serviço Social na Universidade Católica do Paraná em 1964, com o trabalho de final de curso tratando da aplicação do método de desenvolvimento e organização de comunidade na favela do Belém. Os objetivos do trabalho foram “promover a mudança de hábitos de vida” e “oferecer condições para a integração dessa população na comunidade”. A proposta era a remoção dos moradores para casas fora da favela ou para organizações de recuperação, com apoio do serviço social para a sua adaptação e emancipação.
Dalva Borges de Macedo também atuou como professora na Universidade Católica do Paraná, replicando o conhecimento adquirido no circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas. A análise dos trabalhos de conclusão do curso mostra como era recorrente a escolha de temas de habitação social, em geral, e de favelas, em particular, bem como a citação de livros do Cinva, da União Pan-americana e de outras organizações correlatas.
A conexão entre planejamento e favelas na década de 1960:
Em termos políticos, a conexão entre planejamento e favelas foi potencializada com a eleição para governador de Ney Braga (1961-1965) pelo PDC. O Pladep passou a realizar reuniões envolvendo a CHPEP e principalmente a STAS, que assumiu o protagonismo em relação ao tema da favela. Isso pode estar relacionado ao fato de que a CHPEP deixou de contar com uma fonte importante de receita em 1961, com a aprovação da emenda constitucional n. 5, que transferiu a competência de arrecadação do imposto sobre transmissão de bens imóveis dos estados para os municípios.
A STAS já havia realizado uma intervenção pontual denominada Vila de Recuperação de Favelados, em 1959. Foram construídas oito casas de madeira em terreno do governo estadual para relocar trabalhadores envolvidos na execução do Centro Cívico, que estavam morando de forma irregular nas imediações da obra.
A primeira ação definida após a eleição de Ney Braga foi a realização de um levantamento socioeconômico das populações com problema habitacional na cidade de Curitiba. O trabalho foi realizado com recursos da CHPEP, mas o comando ficou a cargo da STAS. A cidade foi dividida em 110 setores e visitada por grupos de três pesquisadores, principalmente alunos dos cursos de Sociologia e Serviço Social da Universidade do Paraná e da Universidade Católica do Paraná. Apesar da coleta de dados ter sido concluída ainda em 1961, a divulgação foi postergada. Uma explicação pode ser o conflito político, pois o presidente da STAS, Felipe Aristides Simão, tinha sido derrotado por Iberê de Mattos na eleição para a prefeitura de Curitiba de 1958.
As medidas em relação às favelas no âmbito municipal, até então, eram restritas. Quando a prefeitura era confrontada com uma situação concreta, a resposta era a remoção. Foi esse o caso na favela da BR-2 em 1962. O terreno foi adquirido por uma empresa que pressionou a prefeitura para solucionar a questão. Com anuência do prefeito, os moradores foram relocados pela própria empresa. As casas foram desmontadas e transportadas, a maior parte para favelas próximas às margens do rio Belém, e outras para a favela de Santa Quitéria.
O cenário político em Curitiba mudou com a eleição para prefeito de Ivo Arzua (1962-1966), pela coligação PDC/UDN/Partido Liberal, alinhando os governos municipal e estadual. Foi realizada uma reunião, logo nas primeiras semanas de governo, entre o chefe da Comissão Regional de Habitação em São Paulo, técnicos da prefeitura de Curitiba, Codepar e CHPEP para tratar da elaboração de um plano de habitação para o Paraná.
Nessa nova conjuntura política o levantamento socioeconômico das populações com problema habitacional na cidade de Curitiba foi divulgado em 1963. Foram tabuladas 2.389 fichas, que correspondiam a 11.712 habitantes. Quanto à origem dos moradores, 27% eram de Curitiba e 48% do interior do estado. A grande maioria das famílias recebia menos de um salário-mínimo. Em relação à ocupação do chefe da família, 31% eram operários, 21% tinham profissão fixa, 7% eram funcionários públicos e 7% eram militares. Quanto à previdência social, cerca de 60% dos moradores contribuíam para alguma organização (32% ao Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários, 6% ao IAPC, 5% ao Montepio Municipal, 4% ao Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores e Transportes de Cargas, 3% para a Polícia Militar do Estado, entre outras).
Os dados do levantamento de 1961 não eram muito diferentes dos de 1956. Contudo, de acordo com a imprensa, a cidade estava passando por um aumento expressivo. Devido à demora na divulgação dos dados, estimava-se que o número de moradores de favelas já passava de vinte mil em Curitiba.
Ivo Arzua tinha um plano mais amplo para tratar da questão urbana em Curitiba, com a habitação sendo uma preocupação central. Esse prefeito presidiu o VI Congresso Nacional de Municípios Brasileiros em 1963, realizado em Curitiba, onde apresentou uma tese sobre renovação urbana, que se constituía em mais uma das tentativas de resposta às contradições geradas pelo acelerado e intenso processo de urbanização da América Latina.
A ideia era superar o problema por meio da modernização: “As operações de renovação urbana devem ser consideradas como parte integrante de um vasto programa de modernização urbana a longo prazo (plano diretor)”.
Para pôr em prática esse projeto era necessário um novo arranjo institucional que desse mais agilidade ao poder público. Uma das recomendações era que os municípios brasileiros estudassem a criação de sociedades de economia mista para possibilitar a implantação de um “urbanismo prático e atuante”.
A ideia veio a ser concretizada ainda em 1963, com a criação da URBS. Os recursos vieram do imposto sobre transmissão de bens imóveis que havia sido transferido dos estados para os municípios em 1961. A URBS seria então responsável por grandes intervenções na cidade.
A centralidade da questão habitacional para Ivo Arzua naquele momento pode ser constatada pelo seu livro Moradia… Esperança e desafio, publicado em 1964. Nele foi elaborado um diagnóstico e apresentadas soluções que dialogavam com o circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas, tais como desapropriação antecipada de áreas que eram objeto de investimento público para revendê-las considerando a valorização imobiliária; aumento do imposto territorial urbano sobre lotes vazios para combater a retenção especulativa; criação de zonas residenciais populares com parâmetros construtivos adequados para moradia popular; e fixação do homem ao campo por meio do planejamento regional.
Em relação ao tema da favela, prevalecia a ideia de que era um desajuste a ser corrigido. A integração à sociedade deveria ocorrer pela via da sua erradicação e da recuperação de seus moradores. A técnica apresentada era justamente o método de ajuda mútua desenvolvido pelo Cinva, que foi enaltecido por possibilitar o barateamento do custo da habitação e a integração mediante trabalho social. Nesse sentido, afirmava-se que as assistentes sociais “instituirão e estimularão os favelados para elevarem seu nível econômico, educacional, higiênico, moral, cívico etc… a fim de se reintegrarem na vida social da comunidade”.
Foi no início da década de 1960, no contexto da Aliança para o Progresso, que o método de ajuda mútua foi difundido para toda América Latina. Seguindo o conceito de marginalidade, em especial o elaborado pela Desal, o método de ajuda mútua consistiu num apoio externo aos países latino-americanos para resolver o problema das favelas.
No auge da Guerra Fria, o presidente colombiano Alberto Lleras Camargo construiu a Aliança para o Progresso em conjunto com o presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, e com o presidente dos EUA, John Kennedy. Essa cooperação partia do pressuposto de que a limitação da expansão do comunismo na América Latina dependia de investimentos dos EUA em políticas de desenvolvimento, como forma de superar a pobreza pela via capitalista. O auxílio ao desenvolvimento econômico e social ficou sob responsabilidade da Agency for International Development (Usaid).
Criado justamente quando Alberto Lleras Camargo foi dirigente da OEA, o Cinva acabou intensificando as relações com a Aliança para o Progresso. Aravecchia-Botas mostra como a construção, entre 1961 e 1963, do conjunto habitacional Ciudad Techo, também conhecido como Ciudad Kennedy, em Bogotá, com apoio financeiro da Aliança para o Progresso, foi decisiva para a exportação do método de ajuda mútua. A principal atribuição do Cinva foi o curso “Adiestramiento en autoconstrucción”, que empregava uma das superquadras da Ciudad Techo como campo de experimentação prática e recebia alunos de outros países apoiados por bolsas da OEA .
A aplicação do método de ajuda mútua na Ciudad Techo recebeu diversas críticas, principalmente pelo distanciamento entre o discurso e a prática. No caso da autoconstrução, a redução do custo prevaleceu sobre os componentes de organização comunitária e participação no projeto. Quanto ao desenvolvimento social, a imposição de formas de conduta social adequadas ao processo de modernização predominou sobre a emancipação e a autonomia.
Dada essa conjuntura, a Aliança para o Progresso se tornou uma fonte de financiamento importante para os governos do Paraná e de Curitiba, ajudando a disseminar o método de ajuda mútua. De acordo com a imprensa local, Ney Braga chegou a determinar que a CHPEP criasse uma política habitacional a partir dele, tornando-se uma organização intermediadora entre o governo estadual, as prefeituras e a Usaid.
Mas o financiamento acabou sendo obtido pelo governo municipal. A proposta era construir um conjunto habitacional destinado a funcionários da prefeitura, já que, segundo o levantamento realizado em 1961, eles correspondiam a 7% dos moradores de favelas. As tratativas se intensificaram em 1964 e no ano seguinte houve a aprovação oficial.
Inicialmente foram enviados arquitetos, engenheiros e assistentes sociais para conhecerem as favelas do Rio de Janeiro e fazerem um estágio na Vila Kennedy, que era um conjunto habitacional construído pela Cohab da Guanabara com o apoio da Usaid. Também foi realizado o Seminário sobre Planejamento de Conjuntos de Habitação Popular, com a participação da CHPEP, Codepar, Cohab da Guanabara, Usaid, Cpeu e Instituto dos Arquitetos do Brasil. Naquela ocasião, a equipe da Usaid defendeu o método de ajuda mútua com o argumento de que a participação do morador na construção criava uma relação de pertencimento maior do que a simples entrega de uma unidade habitacional pronta: “A família deve ser educada […] para a conservação da moradia, comprometida com o bom aspecto da residência que ajudou a construir”. O Cpeu defendia a ideia de que fosse vendida apenas a unidade habitacional sem contabilizar o terreno, que deveria ser público e arrendado a longo prazo. Os custos de urbanização deveriam ser, portanto, absorvidos pelo Estado, porque somente assim seria viável alcançar um valor compatível com as possibilidades da população de baixa renda.
A partir desses estudos preliminares, foi elaborado o projeto do conjunto Pilarzinho, localizado em uma área bastante isolada da cidade naquele momento. Os técnicos da Usaid exigiram a construção das casas pelo método de ajuda mútua; a criação de uma cooperativa que receberia as prestações da venda das casas; e a adoção de um sistema de compra de alimentos doados pela Usaid por parte dos moradores, com o objetivo de complementar a amortização. A ideia era que o conjunto Pilarzinho fosse um projeto-piloto para ser posteriormente replicado.
As obras começaram em 1965 e foram concluídas no ano seguinte. As fotos do post mostram o aspecto do conjunto Pilarzinho logo após sua entrega. O projeto previu a construção de cem casas de madeira, compostas de sala, cozinha, banheiro e quarto no mezanino, e que contavam com um mobiliário especificamente projetado para elas. Havia a opção de aquisição de uma casa embrião ou já ampliada. Além disso, o conjunto contava com uma escola primária, escola de artesanato, centro comunal e áreas de lazer. A forma de aquisição era por contrato de compra e venda, com pagamento feito por desconto na folha de pagamento, com prazo de 15 anos. O desconto era de 20% do salário para casa embrião e de 25% para casa ampliada. Para seleção dos moradores foi realizada uma triagem, que envolveu 852 famílias de funcionários da prefeitura, priorizando aquelas em situação de precariedade habitacional. O acompanhamento foi realizado por assistentes sociais, com a perspectiva de ensinar novos hábitos aos futuros moradores. De acordo com uma assistente social, tratava-se de uma transformação radical, cujo objetivo era “despertar no ser humano desejos de ascensão econômica e social, sendo a casa própria um passo inicial”.
O método de ajuda mútua teve, porém, uma curta duração, com aplicação apenas no conjunto Pilarzinho. Já o conceito de marginalidade, que o amparava, teve influência duradoura nas políticas públicas de habitação social, com a favela sendo entendida como uma entidade separada do sistema social, que deveria ser erradicada e seus moradores, recuperados.
Isso pode ser constatado na política habitacional estabelecida com o golpe civil-militar de 1964. Seu arcabouço institucional era composto pelo Sistema Financeiro Habitacional (SFH), formado com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) geridos pelo Banco Nacional de Habitação (BNH). O objetivo foi estruturar uma política habitacional para viabilizar a modernização capitalista do setor da construção civil. Em relação à habitação social, as companhias de habitação popular (Cohabs) eram os agentes promotores e atuavam em duas frentes: atendimento da população de baixa renda e erradicação de favelas.
Assim, paralelamente às obras do conjunto Pilarzinho, foi sendo implantado em Curitiba esse novo arcabouço institucional. No âmbito estadual, a CHPEP foi extinta em 1965, sendo substituída pela Cohapar. No âmbito municipal, foi criada a Cohab-CT no mesmo ano. A URBS concluiu o conjunto Pilarzinho e deixou de atuar na área de habitação social.
Inicialmente, a Cohab-CT se concentrou na erradicação de favelas, com a construção do conjunto habitacional Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Inaugurado no final de 1966, ele contava com 2.100 unidades habitacionais, sendo quatrocentas financiadas pela Usaid e o restante pelo BNH. A Operação Desfavelamento relocou para esse conjunto habitacional um grande número de moradores de favelas. Contudo, em poucos anos, a experiência se mostrou um fracasso. A Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais estava localizada numa área extremamente periférica, a infraestrutura urbana era incompleta e o valor das casas era incompatível com a renda dos moradores. Assim, muitos abandonaram o conjunto habitacional e, em poucos anos, o número de favelas voltou a aumentar na cidade. Posteriormente, outras ações de desfavelamento com o mesmo pressuposto foram realizadas ao longo da década de 1970.
Essa experiência da Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais é tomada como ponto inaugural da política habitacional em Curitiba pelos estudos urbanos. Porém, como foi aqui apresentado, houve uma série de iniciativas precursoras que ajudaram a moldar a forma da ação estatal sobre favelas.
Conclusão:
O artigo tratou do surgimento das favelas em Curitiba a partir da perspectiva da gênese da ação estatal sobre tal fenômeno, contribuindo para compreensão das múltiplas manifestações da informalidade urbana na América Latina. A análise partiu da constatação da existência de um contexto histórico na primeira metade do século XX que constituiu uma conjuntura crítica e provocou profundas mudanças institucionais.
Reproduzindo um padrão que ocorreu no restante do Brasil e da América Latina na primeira metade do século XX, Curitiba passou por um processo de modernização que estava amparado em um projeto mais amplo de industrialização. Esse processo desencadeou transformações profundas no espaço urbano, tendo como consequência o surgimento de favelas na década de 1940 e seu aumento significativo a partir da década seguinte, colocando o tema em posição de destaque na agenda política.
Em Curitiba, as favelas estiveram ligadas a um processo histórico de segregação espacial que teve a estrada de ferro como importante elemento estruturador, contrastando, portanto, com a imagem estereotipada das favelas cariocas localizadas nos morros da cidade. Outros elementos também presentes na definição da localização das favelas em Curitiba foram os conjuntos habitacionais construídos pelo poder público, e os rios da cidade.
Na interpretação do fenômeno pela imprensa, o Rio de Janeiro apareceu como referência, principalmente na proporção em que o número de favelas aumentava na década de 1950. Outra chave explicativa das favelas foi o conceito de marginalidade, desenvolvido e disseminado pelo circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas. Sob essa perspectiva, as favelas eram um problema, em razão da incapacidade de seus moradores se adaptarem à vida nas grandes cidades. As favelas eram, portanto, entendidas como um desajuste em relação ao que se esperava de um processo de modernização do espaço urbano.
Quanto à ação estatal, o campo do serviço social, com influência marcante da Igreja Católica, teve papel fundamental, iniciando um movimento para compreender a favela por meio de levantamentos. Uma particularidade curitibana foi a centralidade inicial que tiveram as organizações do governo estadual, especialmente a CHPEP e a STAS. A prefeitura assumiu protagonismo somente com a criação da URBS.
A influência do circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas na ação estatal pode ser constatada a partir do final da década de 1950. Dalva Borges de Macedo, assistente social da CHPEP, foi uma agente-chave nesse processo. Depois de um intercâmbio internacional, ela passou a difundir o conhecimento adquirido no setor público e acadêmico.
Progressivamente, o tema da favela se articulou ao processo de institucionalização do planejamento urbano e regional que estava em curso, encontrando seu auge com a eleição de Ney Braga para governador do Paraná e de Ivo Arzua para prefeito de Curitiba. Nessa conjuntura, foi elaborado um projeto de modernização do espaço urbano de Curitiba. Amparado no conceito de marginalidade, previa a erradicação de favelas e a reeducação de seus moradores como forma de integração à sociedade.
Esse projeto foi materializado no conjunto Pilarzinho, com o emprego do método de ajuda mútua. Criado pelo Cinva, organização colombiana onde Dalva Borges de Macedo estagiou em 1957, o método foi exportado para toda América Latina no início da década de 1960 por influência da Aliança pelo Progresso, e acabou sendo incorporado por agentes públicos locais.
Contudo, nesse processo estavam subjacentes abordagens antagônicas em relação à questão habitacional. Por um lado, o conjunto Pilarzinho pode ser visto como precursor do caráter conservador assumido com o golpe civil-militar de 1964, pautado na erradicação de favelas mediante a construção de conjuntos habitacionais em áreas periféricas. Por outro lado, tanto no livro Moradia… Esperança e desafio como na própria discussão prévia ao conjunto Pilarzinho, vislumbraram-se medidas progressistas de democratização do solo urbano.
Assim, por meio da análise histórica podem-se identificar pontos críticos nos quais um arranjo institucional se afirma e outras trajetórias possíveis são interrompidas, abrindo novas perspectivas para analisar a ação estatal do presente.
Em relação às favelas, um conceito central foi o de marginalidade, desenvolvido com diferentes abordagens e que encontrou ampla difusão. Uma das principais vertentes foi a do Centro para o Desenvolvimento Econômico e Social da América Latina (Desal). Localizado no Chile, ele contava com acentuada influência da Democracia Social Cristã, que defendia a construção de uma via intermediária entre o comunismo e o capitalismo.
Nessa perspectiva, a marginalidade era entendida como resultado da desintegração social causada pelas desigualdades historicamente produzidas na América Latina. Parte da população estava fora do sistema social nesse esquema dualista, constituindo uma entidade separada. Isso ocorria nas dimensões física, cultural, social, econômica e política. A solução era a integração da população marginal à sociedade. Em razão da fragilidade institucional dos países latino-americanos era necessário apoio externo, o que justificou parcerias com os EUA.
A favela representava a dimensão física da marginalidade. Argumentava-se que o processo de modernização causava um crescimento demográfico urbano exponencial, derivado da migração da população rural. Os problemas surgiam da incapacidade desses migrantes se integrarem plenamente na cidade.
O conceito de marginalidade consistiu num mito que serviu para justificar a manutenção de privilégios das classes dominantes. No caso das favelas, esse conceito favoreceu a construção de sujeitos sociais descartáveis, justificando uma forma de integração que consistiu, via de regra, na erradicação das favelas, removendo a população para conjuntos habitacionais localizados nas periferias urbanas.
No caso brasileiro, um novo arranjo político foi estabelecido com a ascensão de Vargas ao poder em 1930, resultando na implantação de um projeto de modernização da sociedade. O Estado foi remodelado com a criação de um aparato burocrático, com vistas a ampliar sua capacidade de intervenção. O objetivo central desse projeto foi o estímulo à industrialização, porém, como forma de formar uma ampla aliança, também foram construídas diversas políticas públicas.
A industrialização concentrou-se nas cidades, tornando-as polos centralizadores de atividades econômicas, dando início a um intenso crescimento populacional e ao surgimento do problema de limitação da oferta de habitação. Nesse período, a maior parte da população acessava a moradia por meio de aluguel.
Para enfrentar a questão, foram criados os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) a partir de 1933, estruturados por categorias profissionais com a finalidade de prestar auxílio previdenciário, médico e habitacional aos seus associados. Como forma de atenuar as contradições decorrentes da ausência de atendimento universalizado, também houve um congelamento de aluguéis em 1942.
Em função da limitada eficácia dessas medidas, ao longo das décadas de 1930 e 1940, a favela e a casa autoconstruída em loteamentos periféricos sem infraestrutura urbana passaram a se constituir crescentemente numa alternativa para população de baixa renda.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, ocorreram alterações na conjuntura política, provocando a redemocratização que estabeleceu a denominada República Populista. Ao mesmo tempo, a hegemonia norte-americana se aprofundou, o que levou à ampliação de sua influência no circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas.
Outro efeito foi a acentuação das contradições habitacionais. A elevação dos preços em geral, e dos imóveis em particular, tornou o mercado imobiliário de alto padrão o destino prioritário do excedente de capitais então existentes. Assim, a produção habitacional voltada para a população de baixa renda deixou de ser atrativa e foi reduzida, causando escassez e elevação do preço dos aluguéis. Uma das consequências foi o aumento dos despejos como forma dos proprietários reaverem seus imóveis e encontrarem destinações mais rentáveis. O resultado foi uma profunda crise habitacional, principalmente entre 1945 e 1948.
Tal conjuntura colocou, de forma inédita, a questão habitacional como tema central da agenda política. Os esforços na esfera federal foram para otimizar o atendimento habitacional, via centralização dos recursos dispersos nos vários IAPs. Vargas propôs sem sucesso a criação do Instituto de Serviços Sociais do Brasil. O presidente seguinte, Eurico Gaspar Dutra, retomou a proposta e, logo no seu primeiro ano de mandato, criou a Fundação da Casa Popular (FCP).
Contudo, a ideia de centralização foi fragilizada pela oposição de diversos interesses. Aqui interessa explorar aqueles ligados a questões regionais. Na Constituição de 1946, os estados e municípios conquistaram maior autonomia administrativa. Isso levou à emergência do Movimento Municipalista, que tinha como base de sustentação a Associação Brasileira de Municípios, criada em 1946, o Congresso Nacional de Municípios Brasileiros, que contou com seis edições realizadas entre 1950 e 1963, e o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam), criado em 1952.
Nesse cenário, a FCP se tornou uma organização sem recursos e força política para desenvolver funções amplas e centralizadas, conforme originalmente previsto. Devido à importância que a pauta habitacional havia alcançado, agentes políticos regionais procuraram assumir essas atribuições. Verificou-se uma progressiva descentralização das políticas habitacionais, com a criação de organizações de âmbito estadual e municipal.
Em relação à atuação em favelas, essas organizações adotaram uma abordagem contraditória. No discurso oficial, enfatizavam uma perspectiva higienista, de remoção dos moradores para conjuntos habitacionais. Contudo, também realizaram levantamentos censitários e ações de assistência social, saúde e infraestrutura urbana, que tiveram, em muitos casos, um papel precursor no reconhecimento das favelas.
Outra influência importante na inserção do tema da favela na agenda pública veio da Igreja Católica. No Rio de Janeiro, foram criadas para atuar nas favelas a Fundação Leão XIII, em 1947, e a Cruzada São Sebastião, em 1955. Essas organizações caracterizaram-se por retórica anticomunista e práticas apoiadas no serviço social, servindo de referência para o restante do Brasil.
Nesse contexto, principalmente a partir da década de 1950, o campo do urbanismo foi ampliado, levando em conta as suas dimensões multidisciplinar e multiescalar. Construiu-se um espaço institucional com maior autonomia que impulsionou a formulação e a consolidação de novas ideias e práticas. Esse é o caso da Sociedade de Análise Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais (Sagmacs), criada em 1947 pelo padre francês Lebret. Essa organização teve papel decisivo na disseminação do planejamento urbano e regional no Brasil. Sua fundamentação era o Movimento Economia e Humanismo, formulado na França na década de 1940 com acentuada influência de pensadores católicos, que propunha um desenvolvimento integral e harmônico, vinculado às ideias da Democracia Social Cristã. Outros exemplos foram o Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos (Cpeu), criado em 1955 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, e o Centro de Estudos de Planejamento Urbano e Regional, criado em 1960 na Universidade do Recife.
Assim, o período posterior à Segunda Guerra Mundial, especialmente a partir da década de 1950, foi marcado pela ascensão do campo do urbanismo, tendo o planejamento urbano e regional como instrumento central de ação e a habitação como um dos principais problemas a serem resolvidos.
Planejamento urbano e regional no Paraná e em Curitiba:
A introdução do campo do planejamento urbano e regional no Paraná esteve diretamente ligada à formulação de um projeto desenvolvimentista. A industrialização foi conduzida pelo Estado ao longo da década de 1950, empregando o planejamento como principal ferramenta. O objetivo era superar a predominância das atividades agrícolas e extrativistas na economia.
No processo de redemocratização, Moysés Lupion (1947-1951) foi eleito como governador pelo Partido Social Democrático (PSD). Empresário da indústria madeireira, foi apresentado como um agente modernizador, em oposição aos adversários associados às antigas oligarquias agrárias. Durante seu governo, além da introdução de técnicas de planejamento governamental, houve também uma aproximação inicial com a Sagmacs. A atuação dessa empresa era ligada ao Partido Democrata Cristão (PDC), em razão do compartilhamento de um ideário comum. Foi assim que, sob influência da Sagmacs, o governador de São Paulo, do PDC, estimulou a criação da Comissão Interestadual da Bacia Paraná-Uruguai (Cibpu), em 1951. A origem foi um convênio de cooperação para elaborar um plano regional de fomento ao desenvolvimento dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Goiás.
A gestão seguinte foi de Bento Munhoz da Rocha Netto (1951-1956), eleito pela União Democrática Nacional (UDN) em coligação com outros partidos. A comissão da coordenação do Plano de Desenvolvimento Econômico do Estado do Paraná (Pladep) foi criada em 1955 para impulsionar o projeto desenvolvimentista regional, por meio do planejamento de políticas públicas.
Moysés Lupion (1956-1961) voltou a vencer a eleição seguinte, novamente pelo PSD. Em 1958, no âmbito da Cibpu, a Sagmacs apresentou um relatório propondo a criação de polos regionais para subsidiar a industrialização dos estados da região Sul.
Mas foi na gestão de Ney Braga (1961-1965), eleito pelo PDC, que o impulso para a industrialização atingiu seu ápice. A Companhia de Desenvolvimento do Paraná (Codepar) foi criada em 1962 para planejar e promover esse processo. Os laços com a Sagmacs foram estreitados, e, em 1963, ela foi contratada pela Codepar para elaborar o Plano de Desenvolvimento do Paraná. Seguindo a lógica do estudo de 1958, o território foi dividido em regiões e foram formuladas propostas específicas de desenvolvimento social e econômico para cada uma delas. Além disso, foi proposta a reorganização da administração pública.
No caso de Curitiba, houve a progressiva constituição de práticas de planejamento urbano. Começando ali sua carreira política como prefeito, eleito de forma independente, Ney Braga (1954-1958) se aproximou do Movimento Municipalista. O Ibam assessorou a reestruturação administrativa realizada pela prefeitura, na qual foi criado o Departamento de Planejamento e Urbanismo (DPU). Na gestão de Iberê de Mattos (1959-1962), eleito pelo Partido Trabalhista Brasileiro, a Comissão de Planejamento da Cidade foi criada, em 1959, ligada ao DPU e composta das divisões de Planejamento, Plano diretor e Estudos e projetos.
A gestão de Ivo Arzua (1962-1966), eleito pelo PDC em coligação com outros partidos, marcou alinhamento total com o então governador Ney Braga, lançando as bases para um projeto político que empregava o planejamento como instrumento central de gestão. A influência do Movimento Municipalista continuava presente. Ivo Arzua presidiu o VI Congresso Nacional de Municípios Brasileiros, realizado em Curitiba em 1963, onde apresentou suas ideias sobre gestão urbana. Nesse mesmo ano, criou a Companhia de Urbanização e Saneamento de Curitiba (URBS) para realizar grandes intervenções na cidade. E em 1965, sob recomendação da Codepar, foi elaborado o Plano Preliminar de Urbanismo (PPU), que levou à criação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba no mesmo ano, o qual, por sua vez, exerceu papel decisivo nas décadas seguintes.
Assim, seguindo a conjuntura brasileira e latino-americana, houve, a partir da década de 1950, a institucionalização do planejamento urbano e regional nos governos do Paraná e de Curitiba. Contudo, uma lacuna nessa narrativa continuava a ser o tema da habitação. Como já apresentado, esse período se caracterizou pelo emprego dessas ferramentas para solução de diversos problemas urbanos, mas especialmente o da habitação, por ser considerado um dos mais urgentes naquele momento.
A crise habitacional após a Segunda Guerra Mundial:
O Paraná tornou-se um dos principais produtores de café do Brasil a partir do final da década de 1940, gerando um acentuado desenvolvimento econômico. Grande parte dessa riqueza foi canalizada para Curitiba, que era o centro administrativo, comercial e industrial do estado, gerando uma transformação urbana significativa. A população aumentou de 140.656 em 1940, para 180.575 em 1950, e o mercado imobiliário foi dinamizado. A área liberada para construções passou de 275.750 m², no quinquênio de 1941 a 1945, para 941.932 m², no de 1946 a 1950 (Polucha, 2019). Seguindo o que ocorria nos principais centros urbanos brasileiros, os investimentos priorizaram a verticalização da área central para a população de alta renda.
Para população de baixa renda esse foi um período de crise, com oferta restrita de moradia e aluguéis elevados. O contraste existente na cidade foi ilustrado pelo seguinte trecho de reportagem: “Não se constroem, em Curitiba, casas modestas, de pequeno aluguel. Arranha-céus e apartamentos para inquilinos de recursos – os pobres, e pessoas de poucos proventos, condenados a ficarem sem habitação”.
Foi nesse momento que apareceram os primeiros registros de favelas na imprensa, tratando-se ainda de agrupamentos de poucas casas e de difícil identificação.
Inicialmente, as favelas surgiram nos bairros Capanema e Prado, que formavam um espaço segregado, delimitado por dois ramais da estrada de ferro e atravessado pelo rio Belém, que cruzava todo o centro da cidade. Nessa área próxima da zona industrial estava o pátio de manobras da estrada de ferro, ao lado do qual existia um conjunto habitacional construído na década de 1930 para trabalhadores ferroviários. Esse local era também marcado por relações étnico-raciais, onde se desenvolveu uma intensa cultura popular. Grande parte dos trabalhadores era negra e ali foi formada em 1945 a primeira escola de samba de Curitiba, a Colorado, ligada ao Clube Atlético Ferroviário.
As reportagens sobre favelas eram tratadas como expedições a uma parte inóspita da cidade, trazendo descrições dos domicílios. “O seu feitio, as largas frestas por onde entram o vento e a chuva […]. É na verdade a vila da Miséria, erguida em plena Curitiba, no século XX, nos anos dos lucros extraordinários”. No bairro Capanema um repórter encontrou “verdadeiras casinholas onde uma família numerosa (às vezes duas) reside, apertada entre saletas sem conforto”. Em outro relato, um deputado levou à Assembleia Legislativa as impressões de sua visita à Vila do Pinto, referência ao nome do loteamento existente na região. Essa favela era descrita como um “lugar infecto devido ao seu aspecto baixo e pantanoso e habitado por gente paupérrima, que construiu suas casas de caixas velhas”.
As pressões políticas aumentaram com a redemocratização ocorrida após o fim do Estado Novo, e o tema da habitação ganhou destaque. No 2º Congresso Sindical dos Trabalhadores do Paraná, realizado em 1946, ela foi incluída na pauta de demandas, por meio da reivindicação de “habitações proletárias ‘confortáveis e higiênicas’, próximas dos locais de trabalho, cujo aluguel não ultrapassasse 15% da renda do trabalhador; cessão gratuita de terrenos destinados a edificação; licença para construção de casas de madeira nas zonas habitadas por operários”.
É nesse cenário que o governo do Paraná e a prefeitura de Curitiba desencadearam uma série de ações na área de habitação social. Essas duas esferas de governo estavam diretamente alinhadas nesse período. Apesar de o prefeito ter sido escolhido em 1947 por uma Câmara de Vereadores eleita diretamente, já em 1948 foi retomada a prerrogativa de indicação do governo estadual, que permaneceu até 1954.
A primeira ação ocorreu em 1946, quando a prefeitura construiu um conjunto de dez casas operárias, tendo como justificativa a crise habitacional em curso. Apesar do número reduzido, a iniciativa indicava a existência de ambições maiores: “essas dez casas populares representam, na verdade, o início de um grande plano de assistência ao trabalhador, pois elas constituem o princípio do bairro operário que, em Santa Quitéria, será levantado pela prefeitura”. Não foi identificado nenhum plano ou projeto desse bairro operário. Mas, de fato, essa afirmação concretizou-se nos anos seguintes, com a construção de outros conjuntos habitacionais em Santa Quitéria, bairro que até então estava fora do quadro urbano. Ali a prefeitura, em parceria com organizações federais, construiu mais quatro conjuntos habitacionais.
Num cenário em que os recursos disponibilizados pela FCP estavam aquém das demandas, e os agentes políticos pressionavam pela ação cada vez maior das esferas estaduais e municipais de governo, emergiram novos arranjos institucionais, organizados de forma descentralizada no Brasil. Seguindo essa tendência, foi criada, em 1950, a Caixa de Habitação Popular do Estado do Paraná (CHPEP). A principal fonte de recursos foi a cobrança de 1% do imposto sobre transmissão de bens imóveis, originalmente destinado para FCP. A CHPEP existiu até 1965, quando foi substituída pela Cohapar, no âmbito da reestruturação institucional realizada pelo golpe civil-militar de 1964.
A principal atividade da CHPEP foi a produção habitacional. Por meio de conjuntos, essa organização produziu 497 unidades habitacionais em Curitiba, e 295 no restante do estado. Além disso, a CHPEP também financiou a construção de 439 casas isoladas entre 1951 e 1963. Contudo, o aumento das favelas em Curitiba ao longo da década de 1950 alteraria o escopo de atuação não só da CHPEP mas também de outras organizações, tanto do governo estadual quanto ligadas à Igreja Católica.
A expansão das favelas na década de 1950:
O auge do ciclo do café e o início de um processo mais consistente de industrialização intensificaram a migração na década de 1950 para o Paraná, em geral, e para Curitiba, em particular. A população da cidade dobrou em dez anos, passando de 180.575, em 1950, para 361.309, em 1960.
Para compreender melhor o impacto desse crescimento populacional no espaço urbano é importante analisar como ocorreu a sua estruturação. O espaço urbano é moldado pelas disputas em torno do valor da terra, definido pelo atributo da acessibilidade ao centro da cidade. Num processo histórico de longo prazo, as camadas de alta renda escolhem espaços conectados ao centro da cidade para se autossegregarem.
No Brasil, as estradas de ferro constituíram um importante elemento estruturador. Partindo do centro, a porção da cidade situada para além dela possuía menor acessibilidade e, em geral, se tornava uma área de concentração da população de baixa renda.
Esse foi o caso de Curitiba, com a estrada de ferro, associada à rodovia BR-2 inaugurada na década de 1960, cumprindo esse papel estruturante. O crescimento da população de baixa renda ocorreu principalmente na direção sudeste, no Boqueirão, bairro até então agrícola, situado na várzea do rio Iguaçu, por isso sujeito a inundações periódicas. A ocupação ocorreu majoritariamente por loteamentos clandestinos, implantados sem infraestrutura urbana adequada. De acordo com o PPU, em Curitiba estimava-se existir oitocentos loteamentos aprovados e mil clandestinos em 1964.
Foi nesse contexto que ocorreu o aumento de favelas na década de 1950. Para acompanhar a sua evolução, foram analisadas as reportagens dos jornais do período, a partir das quais é possível verificar a preocupação com esse fenômeno: “Há cerca de quatro a cinco anos, não havia favelas em nossa capital. Hoje elas estão em franco e assustador crescimento, na maioria dos bairros”.
Confirmando o papel definidor da estrada de ferro na estruturação urbana, as favelas surgiram próximas a ela. Os jornais noticiaram a existência das favelas do Cristo Rei e da rua Itupava em 1952. A primeira estava localizada próximo ao pátio de manobras da estrada de ferro, sendo descrita como “dezenas de infectos pardieiros construídos pelas mãos dos próprios habitantes daquele reduto doloroso”. A segunda estava localizada nas margens da estrada de ferro, possuindo “pouco mais de dez casebres, mal-acabados, onde vivem em condenável promiscuidade inúmeras pessoas”.
Mas logo as primeiras favelas deixaram de ser citadas e a atenção da imprensa se voltou para aquelas que cresciam mais rapidamente e atingiam um número de domicílios bem mais elevado. A principal delas era localizada nas margens da estrada de ferro, entre os bairros Vila Guaíra e Lindóia. Com presença constante nas reportagens, era considerada a maior da cidade, tendo entre 250 e 500 domicílios.
A segunda maior era a favela da Santa Quitéria, com o número de domicílios variando entre cinquenta e duzentos. Localizava-se nas margens do rio Barigui, próxima aos conjuntos habitacionais construídos na década de 1940. Relatos de moradores indicavam maior dificuldade de sobrevivência devido à distância em relação ao centro da cidade.
A frequência de reportagens sobre favelas aumentou significativamente a partir do final da década de 1950, sugerindo que as existentes estavam aumentando e que outras estavam surgindo. Em geral, isso era entendido como efeito colateral do processo de modernização, de transformação de Curitiba em metrópole. Nesse sentido, os jornais buscavam desconstruir a ideia de que a cidade era imune ao fenômeno, muitas vezes usando grandes centros, principalmente o Rio de Janeiro, como modelo: “Paisagem de carioca prolifera em Curitiba: favelas crescem! Muita gente (ainda) pensa que favela é privilégio de carioca. […] No entanto, favela existe em todo Brasil”.
Esse aumento ocorreu nos pequenos núcleos já existentes nos bairros Capanema e Prado. O início da construção da rodovia BR-2, que ligaria Curitiba a São Paulo, a transferência do hipódromo daquele local e a retificação do rio Belém criaram uma série de interstícios urbanos que facilitaram esse processo. Ali formaram-se as favelas Vila Pinto, Capanema, Prado Velho e BR-2, que passaram posteriormente a ser chamadas simplesmente de favela do Belém. No conto “Pensão Nápoles”, de 1959, o escritor Dalton Trevisan empregou o rio Belém como signo da pobreza em Curitiba: “A prefeitura ignorava-lhe o curso subterrâneo; rio de pobre, se não fora o Belém, com que água as mães dariam banho nos piás?”. Muitas vezes considerada pela imprensa como a terceira maior favela de Curitiba, o número de domicílios variava em torno de oitenta.
Em relação às novas favelas, as principais foram a do Parolin e do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários (IAPC). A primeira surgiu entre as da Vila Guaíra e do rio Belém, e recebeu esse nome devido ao loteamento ali existente. Também era conhecida como Guairacá, em razão da proximidade com a sede desse clube de futebol, ou ainda Vaticano. Ela se desenvolvia ao longo de um córrego que servia de escoamento para o Curtume do Portão, o maior da cidade. A segunda favela surgiu num terreno adquirido pelo IAPC em 1944, que, após longas tratativas, foi parcialmente utilizado para construção de um conjunto habitacional em 1958. Além dessas duas, outras favelas menores começaram a aparecer em pontos mais distantes da cidade. Apenas citadas em reportagens, sua localização não era bem determinada: Vila Hauer, Vila Nossa Senhora de Fátima, Oficinas e Vista Alegre eram as principais.
Em geral, a imprensa interpretava o fenômeno adotando o conceito de marginalidade: “A principal causa da formação das favelas nas cidades, resultante do êxodo rural, é o atraso em que vivem os homens do campo. Em sua quase totalidade analfabetos, não têm elementos para defender-se contra as dificuldades naturais da vida”. A favela e seus moradores eram considerados desajustados em relação ao processo de modernização, um efeito colateral indesejado, que conspurcava o padrão de cidade proposto: “Com o crescer da cidade, Curitiba está agora enfrentando um problema social gravíssimo: [...] o aparecimento de favelas e moradias improvisadas, que desfiguram a paisagem do centro e dos bairros”.
Com o aumento progressivo das favelas, começaram a surgir iniciativas para enfrentar a questão. A primeira ação estatal identificada ocorreu em 1950, marcada por um caráter higienista. Devido à visita do presidente Dutra a Curitiba, o governador Moyses Lupion relocou cerca de trinta famílias, que moravam nas margens do rio Belém, na estrada que ligava o aeroporto ao centro da cidade. O destino foram as casas existentes no Matadouro Modelo, desativado desde 1935, como indicado na Figura 1. Ocorreu nova relocação de cerca de cem famílias localizadas às margens da estrada de ferro para o mesmo local, em 1953.
Contudo, logo começou a emergir uma postura diferente, provocada principalmente pelo campo do serviço social. Criado no Brasil na década de 1930, inicialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, ligado a grupos liberais e católicos, ele buscava tratar a pobreza por uma perspectiva técnica, atenuando as tensões políticas subjacentes. Em Curitiba, a partir de um apoio inicial do Instituto Social do Rio de Janeiro, foi fundada a Escola de Serviço Social em 1944, que passou a integrar a Universidade Católica do Paraná em 1959.
Esse campo logo foi assimilado pelo setor público. Em 1947, foi criada a Secretaria de Saúde e Assistência Social, que se transformou em Secretaria do Trabalho e Assistência Social (STAS) em 1951. Na CHPEP foi organizado o Serviço de Pesquisa e Assistência Social em 1953, sob orientação técnica de Dalva Borges de Macedo, que havia concluído o curso de Formação Familiar e Social na Escola de Serviço Social de Curitiba em 1949.
Organizações beneficentes ligadas à Igreja Católica criaram o Centro Social da Vila Guaíra em 1955, para atender a maior favela de Curitiba. Entre as atividades desenvolvidas, estavam cursos populares e um serviço de apoio a mães e gestantes. Também foi estimulada a criação de grupos de moradores, que passaram a reivindicar melhorias urbanas, tais como abastecimento de água e auxílio médico.
O tema da favela motivou a criação do Conselho de Obras Sociais em 1956, para atuar como coordenador dos serviços assistenciais de organizações particulares e públicas. Nesse mesmo ano, o governou estadual instituiu o Conselho de Assistência Social, que contaria com recursos da loteria do Paraná para prestar serviços e realizar obras.
Seguindo essas ações, a CHPEP realizou, em 1956, o primeiro levantamento de favelas em Curitiba, refletindo um quadro nacional com diversas iniciativas semelhantes. O primeiro censo de favelas ocorreu no Rio de Janeiro em 1940, por meio da Secretaria de Saúde e Assistência Social da prefeitura do Distrito Federal, inserida no contexto dos Parques Proletários Provisórios. Posteriormente, a responsabilidade ficou a cargo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que realizou censos em 1948, 1950 e 1960. Os censos implicaram um tratamento mais científico das favelas, por fazerem uma leitura complexa da realidade, ajudando a desmistificar visões preconceituosas e permitindo a construção de novas representações simbólicas.
O levantamento de 1956 identificou 2.200 famílias em favelas, cortiços, casas de cômodo, ranchos, barracões e vilas. Mais de 90% das famílias moravam em domicílios de madeira, com mais de 70% pagando aluguel. Em relação à origem, 48% das famílias eram da zona rural, 30% eram de Curitiba e 22% de outros estados. A maior parte dos chefes de família tinha algum emprego fixo: 28% eram operários fixos e 25% eram empregados estaduais ou municipais. Isso contrariava em parte o estereótipo de marginalização constantemente reproduzido pela imprensa. Afinal, um grande contingente de moradores era de Curitiba e estava inserido na economia local, mas, mesmo assim, morava na favela. Nos anos seguintes, a prática de levantamentos se tornou comum, indicando uma outra postura do poder público.
Em 1957, o campo do serviço social estabeleceu uma conexão direta com o circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas por meio de Dalva Borges de Macedo. Ela recebeu uma bolsa de estudos do programa Point IV, que propiciou especialização em Organização das Comunidades e Habitações Populares nos EUA, estágio no Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento (Cinva) na Colômbia, e visita ao Peru. No retorno, foi recebida pelo governador Moyses Lupion e pelo presidente da CHPEP para relatar os resultados de seus estudos.
Um meio importante dos EUA para exercerem sua hegemonia após a Segunda Guerra Mundial foram os programas de cooperação e assistência técnica. Isso implicou o treinamento nos EUA de profissionais dos setores público e privado e a inserção de profissionais especializados norte-americanos em organizações latino-americanas. Diferentes ações foram realizadas e o programa Point IV, criado em 1949, foi uma delas. Houve também a criação do Centro Interamericano de Vivienda em 1951, que se tornou Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento em 1954, vinculado à Universidade Nacional da Colômbia, através de um programa de cooperação técnica da OEA.
O Cinva se tornou, ao longo da década de 1950, uma referência em planejamento habitacional na América Latina, promovendo cursos e seminários. Em 1956, realizou a Primera Reunión Técnica Interamericana de Vivienda y Planeamiento, e, em 1958, o Seminario de Técnicos y Funcionarios en Planeamiento Urbano. O Cinva desenvolveu uma nova abordagem de planejamento urbano, incorporando elementos sociais, em oposição aos modelos comuns no período, que eram associados geralmente ao campo disciplinar da economia e possuíam um viés estritamente tecnicista.
A Carta de los Andes, documento resultante do Seminario de Técnicos y Funcionarios en Planeamiento Urbano, sintetizava as conclusões desse desenvolvimento. Nela, são propostas uma série de medidas progressistas, evidenciando a desigualdade de poder existente nas sociedades latino-americanas. A Carta de los Andes exerceu influência significativa no Brasil, com a essência de suas proposições sendo refletida nos debates ocorridos no Seminário de Habitação e Reforma Urbana realizado em 1963.
A partir dessa conexão estabelecida, Dalva Borges de Macedo passou a disseminar o conhecimento adquirido, interagindo com outras organizações do governo estadual. Em 1960, o Pladep organizou um comitê regional provisório do Paraná para participar do 2º Congresso Brasileiro de Serviço Social, realizado no ano seguinte, no Rio de Janeiro, cujo tema central foi “O Desenvolvimento Nacional para o Bem-Estar Social”. Inserida no debate desenvolvimentista, a ideia era que o progresso seria resultado da ação planejada do Estado. A tarefa do serviço social era a de integrar a população nesse processo de modernização. Nessa perspectiva, as favelas eram entendidas como desajustes que precisavam ser corrigidos com o emprego do planejamento urbano e regional.
A tarefa de elaborar um trabalho sobre habitação foi designada à CHPEP, sob a responsabilidade de Dalva Borges de Macedo. Consta nos anais do congresso a apresentação do trabalho intitulado “Algumas considerações em torno do problema de habitação de interesse social nas áreas urbanas”, e a apresentação da experiência da CHPEP em um grupo de estudo cujo tema era “O papel do Serviço Social nos programas de renovação urbana”.
Foi apresentado nos jornais paranaenses um resumo do trabalho de Dalva Borges de Macedo, identificando como causa estrutural do problema habitacional a reduzida oferta de habitação social frente ao aumento da demanda, gerado pelo crescimento urbano. É possível reconhecer nas soluções propostas medidas higienistas, como o policiamento das construções, e também outras diretamente conectadas com o repertório de ideias que circulavam na América Latina naquele momento: elaboração de um plano de habitação de interesse social articulado com o plano de desenvolvimento econômico do estado; construção de unidades de vizinhança para áreas urbanas; organização das comunidades e adoção do método de ajuda mútua para construção de unidades habitacionais.
De especial interesse é o método de ajuda mútua, pois ele acabou sendo aplicado em Curitiba nos anos seguintes. Tributário do conceito de marginalidade, e conhecido também por ação comunal, ação coletiva, ou autoajuda, esse método de produção habitacional foi originalmente desenvolvido pelo Cinva. Adequado às características latino-americanas, ele previa utilizar a habitação como catalisador do desenvolvimento social. Partia-se do princípio de que a demanda habitacional era composta majoritariamente por uma população migrante da área rural. A premissa subjacente era de que possuía poucos vínculos estabelecidos com o espaço urbano, baixa renda, e, portanto, ausência de capacidade de pagamento. A estratégia para enfrentar esse problema era o emprego da autoconstrução da habitação pela comunidade, amparado por um intenso trabalho social. Essa escolha buscava a redução do custo da obra e o estímulo da organização comunitária. O trabalho social permeava todo o processo, auxiliando a população desde a autoconstrução até o período de pós-ocupação. A proposta era, então, o desenvolvimento da comunidade em sua totalidade, propiciando sua integração ao espaço urbano.
Dalva Borges de Macedo introduziu a ideia do método de ajuda mútua na CHPEP, pois, de acordo com o organograma de 1963 dessa organização, o Serviço de Pesquisa e Assistência Social possuía uma unidade de Ajuda Mútua e Urbanizações Mínimas.
Além de trabalhar na CHPEP, ela concluiu o curso de Serviço Social na Universidade Católica do Paraná em 1964, com o trabalho de final de curso tratando da aplicação do método de desenvolvimento e organização de comunidade na favela do Belém. Os objetivos do trabalho foram “promover a mudança de hábitos de vida” e “oferecer condições para a integração dessa população na comunidade”. A proposta era a remoção dos moradores para casas fora da favela ou para organizações de recuperação, com apoio do serviço social para a sua adaptação e emancipação.
Dalva Borges de Macedo também atuou como professora na Universidade Católica do Paraná, replicando o conhecimento adquirido no circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas. A análise dos trabalhos de conclusão do curso mostra como era recorrente a escolha de temas de habitação social, em geral, e de favelas, em particular, bem como a citação de livros do Cinva, da União Pan-americana e de outras organizações correlatas.
A conexão entre planejamento e favelas na década de 1960:
Em termos políticos, a conexão entre planejamento e favelas foi potencializada com a eleição para governador de Ney Braga (1961-1965) pelo PDC. O Pladep passou a realizar reuniões envolvendo a CHPEP e principalmente a STAS, que assumiu o protagonismo em relação ao tema da favela. Isso pode estar relacionado ao fato de que a CHPEP deixou de contar com uma fonte importante de receita em 1961, com a aprovação da emenda constitucional n. 5, que transferiu a competência de arrecadação do imposto sobre transmissão de bens imóveis dos estados para os municípios.
A STAS já havia realizado uma intervenção pontual denominada Vila de Recuperação de Favelados, em 1959. Foram construídas oito casas de madeira em terreno do governo estadual para relocar trabalhadores envolvidos na execução do Centro Cívico, que estavam morando de forma irregular nas imediações da obra.
A primeira ação definida após a eleição de Ney Braga foi a realização de um levantamento socioeconômico das populações com problema habitacional na cidade de Curitiba. O trabalho foi realizado com recursos da CHPEP, mas o comando ficou a cargo da STAS. A cidade foi dividida em 110 setores e visitada por grupos de três pesquisadores, principalmente alunos dos cursos de Sociologia e Serviço Social da Universidade do Paraná e da Universidade Católica do Paraná. Apesar da coleta de dados ter sido concluída ainda em 1961, a divulgação foi postergada. Uma explicação pode ser o conflito político, pois o presidente da STAS, Felipe Aristides Simão, tinha sido derrotado por Iberê de Mattos na eleição para a prefeitura de Curitiba de 1958.
As medidas em relação às favelas no âmbito municipal, até então, eram restritas. Quando a prefeitura era confrontada com uma situação concreta, a resposta era a remoção. Foi esse o caso na favela da BR-2 em 1962. O terreno foi adquirido por uma empresa que pressionou a prefeitura para solucionar a questão. Com anuência do prefeito, os moradores foram relocados pela própria empresa. As casas foram desmontadas e transportadas, a maior parte para favelas próximas às margens do rio Belém, e outras para a favela de Santa Quitéria.
O cenário político em Curitiba mudou com a eleição para prefeito de Ivo Arzua (1962-1966), pela coligação PDC/UDN/Partido Liberal, alinhando os governos municipal e estadual. Foi realizada uma reunião, logo nas primeiras semanas de governo, entre o chefe da Comissão Regional de Habitação em São Paulo, técnicos da prefeitura de Curitiba, Codepar e CHPEP para tratar da elaboração de um plano de habitação para o Paraná.
Nessa nova conjuntura política o levantamento socioeconômico das populações com problema habitacional na cidade de Curitiba foi divulgado em 1963. Foram tabuladas 2.389 fichas, que correspondiam a 11.712 habitantes. Quanto à origem dos moradores, 27% eram de Curitiba e 48% do interior do estado. A grande maioria das famílias recebia menos de um salário-mínimo. Em relação à ocupação do chefe da família, 31% eram operários, 21% tinham profissão fixa, 7% eram funcionários públicos e 7% eram militares. Quanto à previdência social, cerca de 60% dos moradores contribuíam para alguma organização (32% ao Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários, 6% ao IAPC, 5% ao Montepio Municipal, 4% ao Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores e Transportes de Cargas, 3% para a Polícia Militar do Estado, entre outras).
Os dados do levantamento de 1961 não eram muito diferentes dos de 1956. Contudo, de acordo com a imprensa, a cidade estava passando por um aumento expressivo. Devido à demora na divulgação dos dados, estimava-se que o número de moradores de favelas já passava de vinte mil em Curitiba.
Ivo Arzua tinha um plano mais amplo para tratar da questão urbana em Curitiba, com a habitação sendo uma preocupação central. Esse prefeito presidiu o VI Congresso Nacional de Municípios Brasileiros em 1963, realizado em Curitiba, onde apresentou uma tese sobre renovação urbana, que se constituía em mais uma das tentativas de resposta às contradições geradas pelo acelerado e intenso processo de urbanização da América Latina.
A ideia era superar o problema por meio da modernização: “As operações de renovação urbana devem ser consideradas como parte integrante de um vasto programa de modernização urbana a longo prazo (plano diretor)”.
Para pôr em prática esse projeto era necessário um novo arranjo institucional que desse mais agilidade ao poder público. Uma das recomendações era que os municípios brasileiros estudassem a criação de sociedades de economia mista para possibilitar a implantação de um “urbanismo prático e atuante”.
A ideia veio a ser concretizada ainda em 1963, com a criação da URBS. Os recursos vieram do imposto sobre transmissão de bens imóveis que havia sido transferido dos estados para os municípios em 1961. A URBS seria então responsável por grandes intervenções na cidade.
A centralidade da questão habitacional para Ivo Arzua naquele momento pode ser constatada pelo seu livro Moradia… Esperança e desafio, publicado em 1964. Nele foi elaborado um diagnóstico e apresentadas soluções que dialogavam com o circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas, tais como desapropriação antecipada de áreas que eram objeto de investimento público para revendê-las considerando a valorização imobiliária; aumento do imposto territorial urbano sobre lotes vazios para combater a retenção especulativa; criação de zonas residenciais populares com parâmetros construtivos adequados para moradia popular; e fixação do homem ao campo por meio do planejamento regional.
Em relação ao tema da favela, prevalecia a ideia de que era um desajuste a ser corrigido. A integração à sociedade deveria ocorrer pela via da sua erradicação e da recuperação de seus moradores. A técnica apresentada era justamente o método de ajuda mútua desenvolvido pelo Cinva, que foi enaltecido por possibilitar o barateamento do custo da habitação e a integração mediante trabalho social. Nesse sentido, afirmava-se que as assistentes sociais “instituirão e estimularão os favelados para elevarem seu nível econômico, educacional, higiênico, moral, cívico etc… a fim de se reintegrarem na vida social da comunidade”.
Foi no início da década de 1960, no contexto da Aliança para o Progresso, que o método de ajuda mútua foi difundido para toda América Latina. Seguindo o conceito de marginalidade, em especial o elaborado pela Desal, o método de ajuda mútua consistiu num apoio externo aos países latino-americanos para resolver o problema das favelas.
No auge da Guerra Fria, o presidente colombiano Alberto Lleras Camargo construiu a Aliança para o Progresso em conjunto com o presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, e com o presidente dos EUA, John Kennedy. Essa cooperação partia do pressuposto de que a limitação da expansão do comunismo na América Latina dependia de investimentos dos EUA em políticas de desenvolvimento, como forma de superar a pobreza pela via capitalista. O auxílio ao desenvolvimento econômico e social ficou sob responsabilidade da Agency for International Development (Usaid).
Criado justamente quando Alberto Lleras Camargo foi dirigente da OEA, o Cinva acabou intensificando as relações com a Aliança para o Progresso. Aravecchia-Botas mostra como a construção, entre 1961 e 1963, do conjunto habitacional Ciudad Techo, também conhecido como Ciudad Kennedy, em Bogotá, com apoio financeiro da Aliança para o Progresso, foi decisiva para a exportação do método de ajuda mútua. A principal atribuição do Cinva foi o curso “Adiestramiento en autoconstrucción”, que empregava uma das superquadras da Ciudad Techo como campo de experimentação prática e recebia alunos de outros países apoiados por bolsas da OEA .
A aplicação do método de ajuda mútua na Ciudad Techo recebeu diversas críticas, principalmente pelo distanciamento entre o discurso e a prática. No caso da autoconstrução, a redução do custo prevaleceu sobre os componentes de organização comunitária e participação no projeto. Quanto ao desenvolvimento social, a imposição de formas de conduta social adequadas ao processo de modernização predominou sobre a emancipação e a autonomia.
Dada essa conjuntura, a Aliança para o Progresso se tornou uma fonte de financiamento importante para os governos do Paraná e de Curitiba, ajudando a disseminar o método de ajuda mútua. De acordo com a imprensa local, Ney Braga chegou a determinar que a CHPEP criasse uma política habitacional a partir dele, tornando-se uma organização intermediadora entre o governo estadual, as prefeituras e a Usaid.
Mas o financiamento acabou sendo obtido pelo governo municipal. A proposta era construir um conjunto habitacional destinado a funcionários da prefeitura, já que, segundo o levantamento realizado em 1961, eles correspondiam a 7% dos moradores de favelas. As tratativas se intensificaram em 1964 e no ano seguinte houve a aprovação oficial.
Inicialmente foram enviados arquitetos, engenheiros e assistentes sociais para conhecerem as favelas do Rio de Janeiro e fazerem um estágio na Vila Kennedy, que era um conjunto habitacional construído pela Cohab da Guanabara com o apoio da Usaid. Também foi realizado o Seminário sobre Planejamento de Conjuntos de Habitação Popular, com a participação da CHPEP, Codepar, Cohab da Guanabara, Usaid, Cpeu e Instituto dos Arquitetos do Brasil. Naquela ocasião, a equipe da Usaid defendeu o método de ajuda mútua com o argumento de que a participação do morador na construção criava uma relação de pertencimento maior do que a simples entrega de uma unidade habitacional pronta: “A família deve ser educada […] para a conservação da moradia, comprometida com o bom aspecto da residência que ajudou a construir”. O Cpeu defendia a ideia de que fosse vendida apenas a unidade habitacional sem contabilizar o terreno, que deveria ser público e arrendado a longo prazo. Os custos de urbanização deveriam ser, portanto, absorvidos pelo Estado, porque somente assim seria viável alcançar um valor compatível com as possibilidades da população de baixa renda.
A partir desses estudos preliminares, foi elaborado o projeto do conjunto Pilarzinho, localizado em uma área bastante isolada da cidade naquele momento. Os técnicos da Usaid exigiram a construção das casas pelo método de ajuda mútua; a criação de uma cooperativa que receberia as prestações da venda das casas; e a adoção de um sistema de compra de alimentos doados pela Usaid por parte dos moradores, com o objetivo de complementar a amortização. A ideia era que o conjunto Pilarzinho fosse um projeto-piloto para ser posteriormente replicado.
As obras começaram em 1965 e foram concluídas no ano seguinte. As fotos do post mostram o aspecto do conjunto Pilarzinho logo após sua entrega. O projeto previu a construção de cem casas de madeira, compostas de sala, cozinha, banheiro e quarto no mezanino, e que contavam com um mobiliário especificamente projetado para elas. Havia a opção de aquisição de uma casa embrião ou já ampliada. Além disso, o conjunto contava com uma escola primária, escola de artesanato, centro comunal e áreas de lazer. A forma de aquisição era por contrato de compra e venda, com pagamento feito por desconto na folha de pagamento, com prazo de 15 anos. O desconto era de 20% do salário para casa embrião e de 25% para casa ampliada. Para seleção dos moradores foi realizada uma triagem, que envolveu 852 famílias de funcionários da prefeitura, priorizando aquelas em situação de precariedade habitacional. O acompanhamento foi realizado por assistentes sociais, com a perspectiva de ensinar novos hábitos aos futuros moradores. De acordo com uma assistente social, tratava-se de uma transformação radical, cujo objetivo era “despertar no ser humano desejos de ascensão econômica e social, sendo a casa própria um passo inicial”.
O método de ajuda mútua teve, porém, uma curta duração, com aplicação apenas no conjunto Pilarzinho. Já o conceito de marginalidade, que o amparava, teve influência duradoura nas políticas públicas de habitação social, com a favela sendo entendida como uma entidade separada do sistema social, que deveria ser erradicada e seus moradores, recuperados.
Isso pode ser constatado na política habitacional estabelecida com o golpe civil-militar de 1964. Seu arcabouço institucional era composto pelo Sistema Financeiro Habitacional (SFH), formado com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) geridos pelo Banco Nacional de Habitação (BNH). O objetivo foi estruturar uma política habitacional para viabilizar a modernização capitalista do setor da construção civil. Em relação à habitação social, as companhias de habitação popular (Cohabs) eram os agentes promotores e atuavam em duas frentes: atendimento da população de baixa renda e erradicação de favelas.
Assim, paralelamente às obras do conjunto Pilarzinho, foi sendo implantado em Curitiba esse novo arcabouço institucional. No âmbito estadual, a CHPEP foi extinta em 1965, sendo substituída pela Cohapar. No âmbito municipal, foi criada a Cohab-CT no mesmo ano. A URBS concluiu o conjunto Pilarzinho e deixou de atuar na área de habitação social.
Inicialmente, a Cohab-CT se concentrou na erradicação de favelas, com a construção do conjunto habitacional Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Inaugurado no final de 1966, ele contava com 2.100 unidades habitacionais, sendo quatrocentas financiadas pela Usaid e o restante pelo BNH. A Operação Desfavelamento relocou para esse conjunto habitacional um grande número de moradores de favelas. Contudo, em poucos anos, a experiência se mostrou um fracasso. A Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais estava localizada numa área extremamente periférica, a infraestrutura urbana era incompleta e o valor das casas era incompatível com a renda dos moradores. Assim, muitos abandonaram o conjunto habitacional e, em poucos anos, o número de favelas voltou a aumentar na cidade. Posteriormente, outras ações de desfavelamento com o mesmo pressuposto foram realizadas ao longo da década de 1970.
Essa experiência da Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais é tomada como ponto inaugural da política habitacional em Curitiba pelos estudos urbanos. Porém, como foi aqui apresentado, houve uma série de iniciativas precursoras que ajudaram a moldar a forma da ação estatal sobre favelas.
Conclusão:
O artigo tratou do surgimento das favelas em Curitiba a partir da perspectiva da gênese da ação estatal sobre tal fenômeno, contribuindo para compreensão das múltiplas manifestações da informalidade urbana na América Latina. A análise partiu da constatação da existência de um contexto histórico na primeira metade do século XX que constituiu uma conjuntura crítica e provocou profundas mudanças institucionais.
Reproduzindo um padrão que ocorreu no restante do Brasil e da América Latina na primeira metade do século XX, Curitiba passou por um processo de modernização que estava amparado em um projeto mais amplo de industrialização. Esse processo desencadeou transformações profundas no espaço urbano, tendo como consequência o surgimento de favelas na década de 1940 e seu aumento significativo a partir da década seguinte, colocando o tema em posição de destaque na agenda política.
Em Curitiba, as favelas estiveram ligadas a um processo histórico de segregação espacial que teve a estrada de ferro como importante elemento estruturador, contrastando, portanto, com a imagem estereotipada das favelas cariocas localizadas nos morros da cidade. Outros elementos também presentes na definição da localização das favelas em Curitiba foram os conjuntos habitacionais construídos pelo poder público, e os rios da cidade.
Na interpretação do fenômeno pela imprensa, o Rio de Janeiro apareceu como referência, principalmente na proporção em que o número de favelas aumentava na década de 1950. Outra chave explicativa das favelas foi o conceito de marginalidade, desenvolvido e disseminado pelo circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas. Sob essa perspectiva, as favelas eram um problema, em razão da incapacidade de seus moradores se adaptarem à vida nas grandes cidades. As favelas eram, portanto, entendidas como um desajuste em relação ao que se esperava de um processo de modernização do espaço urbano.
Quanto à ação estatal, o campo do serviço social, com influência marcante da Igreja Católica, teve papel fundamental, iniciando um movimento para compreender a favela por meio de levantamentos. Uma particularidade curitibana foi a centralidade inicial que tiveram as organizações do governo estadual, especialmente a CHPEP e a STAS. A prefeitura assumiu protagonismo somente com a criação da URBS.
A influência do circuito pan-americano de difusão de ideias urbanas na ação estatal pode ser constatada a partir do final da década de 1950. Dalva Borges de Macedo, assistente social da CHPEP, foi uma agente-chave nesse processo. Depois de um intercâmbio internacional, ela passou a difundir o conhecimento adquirido no setor público e acadêmico.
Progressivamente, o tema da favela se articulou ao processo de institucionalização do planejamento urbano e regional que estava em curso, encontrando seu auge com a eleição de Ney Braga para governador do Paraná e de Ivo Arzua para prefeito de Curitiba. Nessa conjuntura, foi elaborado um projeto de modernização do espaço urbano de Curitiba. Amparado no conceito de marginalidade, previa a erradicação de favelas e a reeducação de seus moradores como forma de integração à sociedade.
Esse projeto foi materializado no conjunto Pilarzinho, com o emprego do método de ajuda mútua. Criado pelo Cinva, organização colombiana onde Dalva Borges de Macedo estagiou em 1957, o método foi exportado para toda América Latina no início da década de 1960 por influência da Aliança pelo Progresso, e acabou sendo incorporado por agentes públicos locais.
Contudo, nesse processo estavam subjacentes abordagens antagônicas em relação à questão habitacional. Por um lado, o conjunto Pilarzinho pode ser visto como precursor do caráter conservador assumido com o golpe civil-militar de 1964, pautado na erradicação de favelas mediante a construção de conjuntos habitacionais em áreas periféricas. Por outro lado, tanto no livro Moradia… Esperança e desafio como na própria discussão prévia ao conjunto Pilarzinho, vislumbraram-se medidas progressistas de democratização do solo urbano.
Assim, por meio da análise histórica podem-se identificar pontos críticos nos quais um arranjo institucional se afirma e outras trajetórias possíveis são interrompidas, abrindo novas perspectivas para analisar a ação estatal do presente.
Nota do blog: As imagens mostram o Conjunto Habitacional do Pilarzinho (fotos 1 a 16), o Grupo Escolar do Pilarzinho (fotos 17 a 19) e o Reservatório de Água do Conjunto Habitacional do Pilarzinho (20 a 23).
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