A Estereoscopia e o Olhar da Modernidade - Maria Isabela Mendonça dos Santos
Imagem: Desfile de corsos durante o Carnaval, 1927, Rio de Janeiro, Brasil, Guilherme Santos
Acervo IMS
Artigo
Durante o
século XIX a estereoscopia foi, por décadas, o mais importante modo de lidar
com imagens produzidas fotograficamente. Mas apesar do casamento bem sucedido
entre as duas técnicas, a estrutura conceitual do estereoscópio e sua invenção
são absolutamente independentes da fotografia. Objetivamente, a estereoscopia
consiste em pares de imagens de uma mesma cena que, vistas simultaneamente num
visor binocular – o estereoscópio-, produzem a ilusão de tridimensionalidade.
As vistas estereoscópicas, também conhecidas como estereografias ou
estereogramas, podem ser produzidas a partir de diferentes tipos de imagens
como desenhos, gravuras ou fotografias, sendo esta última a forma que ganhou
maior popularidade.
O surgimento
da estereoscopia se dá no âmbito das pesquisas acerca da binocularidade visual,
sendo o estereoscópio parte da mesma reorganização e das mesmas relações de
conhecimento e de poder que outros aparelhos ópticos, como o panorama e a
lanterna mágica, representavam. As origens do estereoscópio estão ligadas,
desse modo, às pesquisas sobre a visão subjetiva das décadas de 1820 e 1830 e,
de maneira mais geral, ao campo da fisiologia do século XIX. O estereoscópio
também é inseparável dos debates que ocorreram no início daquele século sobre a
percepção do espaço.
O inglês
Charles Wheatstone (1802 – 1875) e o escocês David Brewster (1781 – 1868)
dividem os méritos da invenção do aparelho. O primeiro teria sido o responsável
por desenvolver, em 1833, um aparelho estereoscópico simples. Já o escocês ganhou
reconhecimento por aperfeiçoar o estereoscópio de Wheatstone, criando o
estereoscópio lenticular e introduzindo ao incrível aparelho imagens produzidas
fotograficamente, como o daguerreótipo e o calótipo, recém descobertos.
O aparelho
estereoscópico lenticular foi, portanto, o “pulo do gato” dos estudos de
Brewster em relação aos de Wheatstone. Porém, mesmo utilizando-se da
fotografia, a observação da estereoscopia pressupõe uma série de
especificidades que a fotografia não reivindica. Ela é resultado de uma
disciplinarização dos corpos, pois, assim como outros aparelhos ópticos, exige
mobilidade corporal – especialmente a mobilidade do globo ocular para uma
vesguice forçada – e imobilidade do observador. No mesmo sentido, possuiu
também um universo temático e estético característico, não necessariamente
oposto ao fotográfico, mas tipicamente estereoscópico.
Em 1851,
Brewster apresenta seu invento à Rainha Vitória na Exposição Universal de
Londres. Ao cair nas graças da rainha, a estereoscopia passa a ser amplamente
difundida e torna-se uma verdadeira febre, especialmente na Inglaterra e na
França. A primeira grande iniciativa comercial com fortes ambições
mercadológicas teve início com George Swam Nottage (1823 – 1885) que criou, em
1854, a London Stereocopy Society. Com o slogan: “No home without a
stereoscope” (nenhum lar sem estereoscópio), em pouco tempo o catálogo
internacional da Sociedade já oferecia mais de 10.000 vistas diferentes e, em
apenas dois anos, havia vendido mais de 500.000 visores estereoscópicos.
A crença na
objetividade da fotografia estereoscópica deu grande impulso às expedições
fotográficas e aos trabalhos de documentação. O enorme consumo de vistas
alimentava os desejos dos observadores por paisagens longínquas, cenas urbanas
e construções famosas. Além dessas temáticas, a pornografia foi um dos grandes
temas da estereoscopia. A sala de visitas da família burguesa será o lugar por
excelência do consumo desta volumosa produção, enquanto as vistas pornográficas
ficarão restritas à intimidade do homem burguês. “Colecionadas em grupos e
séries jaziam, ao lado do álbum de família, disponíveis como objetos de uso nos
rituais das trocas sociais apropriadas a este aposento.”
Na última
década do século XIX, o uso industrial da gelatina com brometo de prata
permitiu a comercialização de filmes mais sensíveis e práticos a baixo custo.
Essa transição marca a emergência das corporações norte-americanas. Nos Estados
Unidos, a estereoscopia teve um desenvolvimento industrial e comercial impressionante
e quantitativamente muito maior que na Europa. Encontrando uma economia
próspera e um desenvolvimento industrial sedento de novidades, teve uma grande
aceitação, especialmente entre colecionadores e associações.
No Brasil do
século XIX, a produção estereoscópica era majoritariamente realizada por
fotógrafos profissionais de origem estrangeira. Estes profissionais, não se
dedicavam exclusivamente à técnica, utilizando-a como mais uma dentre as várias
possibilidades fotográficas existentes no período. Nesse sentido, fotógrafos
reconhecidos atuarão na produção de estereoscopias destacando-se, entre
eles, Revert Henrique Klumb (c.1826 – c.
1886) e Georges Leuzinger (1813 – 1892),
ambos europeus radicados no Brasil, premiados em exposições internacionais e
bem quistos pelo imperador dom Pedro II (1825 – 1891).
Estes fotógrafos tinham em comum ainda a produção de fotografias de paisagens
do Brasil em amplos panoramas. Desse modo, a produção de ambos estava
conformada pela visão do fotógrafo-paisagista que corroborava, por sua vez, com
a imagem delineada pelos paisagistas e desenhistas que acompanhavam as
expedições naturalistas do século XIX e, assim, figuravam um Brasil, ao mesmo
tempo em que ensinavam a figurá-lo.
Se a produção
local de vistas esterescópicas foi tímida no século XIX, havia, por outro lado,
um consumo significativo deste tipo de imagem na Corte, em sua maioria
importadas da Europa e dos Estados Unidos. Oferecidos, em geral, em
estabelecimentos especializados em produtos científicos e em casas
fotográficas, os estereoscópios e os estereogramas podiam ser também
encontrados em lojas que se dedicavam a um universo mais genérico de produtos,
o que atesta que a capilarização da estereoscopia espalhou-se para além de um
público especializado. Por sua vez, estes estabelecimentos localizavam-se, em
sua maioria, na área comercial mais nobre da cidade, nas proximidades da rua do
Ouvidor, satisfazendo os desejos de consumo de uma burguesia urbana ávida por
novidades.
Este quadro se
inverte com o advento do século XX que apresenta, pela primeira vez, uma
produção comercial produzida no Brasil mas, sobretudo, um crescimento do
amadorismo com a chegada ao mercado do sistema Verascope. Produzido na França a
partir de 1893 pela Maison Richard, tratava-se de um sistema integrado de
câmera e visor que rapidamente se tornou febre em todo o ocidente. O sistema
impôs-se no mercado fotográfico como um padrão por sua praticidade, propiciando
uma nova era da fotografia estereoscópica.
Ainda que em
alguns sentidos guarde semelhanças à prática amadora da fotografia plana, o
amadorismo estereoscópico tem também suas especificidades, sobretudo no que diz
respeito à sua capilarização. Estendendo-se pouco, ou quase nada, para além das
elites, podemos perceber um perfil padrão dos fotógrafos amadores:
profissionais liberais herdeiros de abastadas famílias brasileiras, homens de
posses e/ou ocupantes de altos cargos da administração pública e sediado nos
grandes centros urbanos.
Dentre os
estereoscopistas amadores brasileiros destaca-se o comerciante carioca Guilherme Antônio dos Santos
(1871-1966). Fotógrafo e colecionador, Santos produziu mais de 20
mil vistas estereoscópicas entre os anos de 1906 e 1957. Utilizando-se
exclusivamente do sistema Verascope, produziu imagens de diversas cidades
brasileiras, especialmente do Rio de Janeiro.
Com uma
produção tão extensa, é evidente que a obra de Guilherme Santos é extremamente
variada, sendo possível identificar em seu trabalho múltiplas formas de
fotografar. Dedicando-se ora à fotografia artística, típica dos fotógrafos
pictorialistas, e ora à fotografia documental, utilizada como prova do real,
Santos não se furtou de elaborar uma linguagem visual própria e tipicamente
estereoscópica. Pintura e escultura acadêmica, fotografia pictorialista,
revistas ilustradas, fotografia documental, fotografia estereoscópica: todos
esses elementos vão contribuir na formação de sua identidade visual. Em sua
obra, arte e ciência integravam um único espaço entrelaçado de saberes e
práticas. O que pode ser percebido, porém, em toda a extensão de sua obra de
maneira mais intensa é a busca incessante pela sinestesia da estereoscopia, ou
seja, a capacidade de instigar no observador os mais diversos sentidos, para
além da visão.
Os elementos
que evidenciam tal busca pode ser observado principalmente na composição das
imagens – colocando, geralmente, algum elemento no primeiro plano, à margem da
fotografia, para destacar o efeito de profundidade -; na escolha das temáticas
e na organização/identificação das séries, através do uso da ordem cronológica
e das legendas inseridas no espaço em branco entre as duas fotografias.
Podemos dizer
que Guilherme Santos foi um observador típico da modernidade, ao mesmo tempo
sua causa e consequência. Sofreu um processo de modernização do olhar
ajustando-se a uma constelação de novos acontecimentos, forças e instituições.
Vivenciou uma verdadeira revolução visual, mas sobretudo técnica, que se define
no Brasil especialmente a partir de fins da década de 1880. Assistiu à
ampliação da rede ferroviária no país, ao uso da iluminação elétrica nos
teatros, à adoção da tração elétrica nos bondes, ao aparecimentos dos
primeiros balões, zepelins e aeroplanos, ao crescimento do número de automóveis
nas ruas. Acompanhou a difusão da telefonia, do fonógrafo e a introdução de
novas técnicas de registro sonoro, bem como de novas técnicas de impressão e
reprodução de textos, mas também de desenhos e fotografias, cada vez mais
presentes nos periódicos e nos reclames publicitários. Junto à difusão da
fotografia, assistiu também à difusão das imagens em movimento nos
cinematógrafos, cada vez mais numerosos na capital federal. Vai presenciar
também a popularização da fotografia entre não-profissionais e o surgimento do
primeiro clube de fotógrafos amadores, o Photo Clube do Rio de Janeiro, que
dará origem ao Photo Clube Brasileiro, ao qual se filiará em 1925.
Desse modo, a
partir de toda essa vivência, Guilherme Santos elaborou uma identidade visual
própria, moderna e, sobretudo, estereoscópica.
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