segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Análise da Carta de Pero Vaz de Caminha - Documento


Análise da Carta de Pero Vaz de Caminha - Documento
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, Portugal
Documento



A célebre "Carta do Achamento do Brasil" foi escrita por Pero Vaz de Caminha em Porto Seguro, entre 26 de abril e 2 de maio de 1500. O escrivão só interrompeu o trabalho no dia 29, quando ajudou o capitão-mor a reorganizar os suprimentos da frota.
Enquanto o restante da armada seguiu para a Índia, o navio de Gaspar de Lemos foi despachado por Cabral para Lisboa, ao fim da estadia no Brasil, em 2 de maio. Por meio dele, a carta chegou ao seu destinatário. Das mãos de dom Manuel 1o, passou à secretaria de Estado como documento secreto, pois se queria evitar que chegasse aos espanhóis a notícia do descobrimento.
Anos mais tarde, o documento foi enviado para o arquivo nacional, localizado na Torre do Tombo do castelo de Lisboa ("tombo" tem aí o sentido de conservação, como quando se fala, por exemplo, em tombamento de uma cidade histórica). No arquivo, o manuscrito de Caminha - 27 páginas de papel, com formato de 29,6 cm X 29,9 cm - repousou esquecido durante os séculos seguintes.
Somente em 1773, o diretor do arquivo, José Seabra da Silva, mandou fazer uma nova cópia da Carta do Achamento. Seabra tinha ligações familiares com o Brasil. Supõe-se que por meio dele o texto de Caminha tenha chegado aqui, possivelmente com a sua transferência para o Rio de Janeiro quando acompanhou a família real portuguesa.
Essa cópia da carta foi encontrada no Arquivo da Marinha Real do Rio de Janeiro pelo padre Manuel Aires do Casal, que a imprimiu em 1817, tornando-a pública pela primeira vez. O documento ganhou particular importância para o Brasil com a Independência, em 1822.
Para o novo país, tratava-se do manuscrito que encerrava o primeiro registro de sua existência. Além disso, no século 19, com o desenvolvimento dos estudos históricos, os estudiosos reconheceram o valor dos documentos escritos como fontes privilegiadas para o conhecimento da história.
Isso se deve ao fato de o português do início do século 16 estar bem distante do português tal qual é falado hoje em dia. Alteraram-se os sons ou os significados de algumas palavras, outras caíram em desuso, novos termos apareceram.
É o caso de "achamento", usado no século 16, e substituído por "descobrimento" nos dias de hoje.
Mas a simples transcrição de um trecho do original de Caminha pode deixar mais clara a ação do tempo sobre a língua e revelar o abismo histórico que se abriu entre o português do escrivão e o nosso:
"Posto que o capitam moor, desta vossa frota e asy os outros capitaães screpuam a vossa alteza a noua do achamento desta vossa terra noua que se ora neesta nauegaçam achou, nom leixarey tambem de dar disso minha comta avossa alteza asy como eu milhar poder aimda que pera o bem contar e falar o saiba pior que todos fazer."
Como o português empregado por Caminha é muito diferente do atual, não se pode ter certeza do significado de algumas palavras empregadas pelo autor.
No caso de outras, sua significação simplesmente se perdeu no tempo. Há passagens da carta cuja compreensão depende das interpretações que os estudiosos propõem para preencher essas lacunas.
Felizmente, esses problemas não chegam a prejudicar a compreensão do texto como um todo. Nem impedem que se possa "traduzi-lo" para o português de hoje.
Com a intenção de informar ao rei o descobrimento e apresentar-lhe o que aqui se encontrou, o estilo do autor é claro e marcado pela objetividade, como convém a quem escreve um relatório.
Mas o texto acaba sendo mais do que isso, pois o escrivão não se comportou como um simples burocrata. Sua linguagem nunca é seca ou mesquinha. Pelo contrário, Caminha se dá o direito de ser bem-humorado, fazendo até trocadilhos e brincadeiras ao comparar o corpo das índias com o das mulheres portuguesas.
Além disso, a grande riqueza de detalhes e as impressões do autor sobre aquilo que via dão ao relato vida e uma grande dimensão humana, Caminha acompanha não somente as ações do índios e europeus, mas também as reações e atitudes que cada grupo tem em relação ao outro, chegando a perceber as emoções que o contato desperta em ambos.
Assim, por meio da sua narrativa o leitor parece entrar numa máquina do tempo e presenciar o momento em que portugueses e índios se encontraram no litoral baiano, quinhentos anos atrás.
A carta apresenta também um duplo valor histórico. De um lado, tem a importância de ser o registro documental do descobrimento ou da entrada do Brasil na história universal, constituindo uma espécie de certidão de nascimento do nosso país. De outro, tem o mérito de revelar que a história se faz também a partir de fatos corriqueiros (como o "baile" organizado por Diogo Dias e seu gaiteiro), protagonizados por pessoas comuns e sem intenções de grandiosidade e heroísmo.
A descoberta da terra que viria a ser chamada de Brasil no ano de 1500 foi anunciada a D. Manuel I, monarca português, através da famosa carta escrita por Pero Vaz de Caminha (1450-1500). Este documento se constituiu em valiosa fonte para o estudo do chamado “descobrimento do Brasil” principalmente pelo fato de ter sido escrita em forma de diário de viagem, narrando os acontecimentos daquela ocasião e também as primeiras impressões sobre a terra recém-descoberta.
Caminha trabalhou como cavaleiro das casas de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I, acompanhando de perto o auge da expansão ultramarina portuguesa. Desenvolveu seus conhecimentos em escrita e um ano após a sua participação na Batalha do Toro (1475), tornou-se funcionário do erário régio, ao alcançar o posto de mestre da Balança da Moeda, um cargo semelhante ao ocupado anteriormente por seu pai. No ano de 1497, foi escolhido para redigir os capítulos da Câmara Municipal do Porto que deveriam ser apresentados às cortes lisboetas. Após o período de 3 anos ocupando essa função, recebeu a nomeação de escrivão da futura feitoria a ser construída em Calicute, na Índia. Por este motivo, Pero Vaz Caminha estava entre os tripulantes da esquadra de Pedro Álvares de Cabral.
O escrito foi levado para Lisboa por intermédio de Gaspar de Lemos, o comandante da nau de mantimentos da esquadra, permanecendo nos arquivos portugueses por mais de três séculos. O original se mantém conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. No ano de 1817, o historiador Manuel Aires de Casal fez a publicação do relato na obra inaugural da edição de livros no Brasil: Corografia Brasílica. A carta era um dos três testemunhos diretos do descobrimento do Brasil, juntamente com a “Relação do Piloto Anônimo” e da “Carta do Mestre João”.
Em sua carta ao rei, datada de 1° de maio de 1500, Caminha tece considerações sobre a terra encontrada e seus habitantes. O escrivão da frota de Cabral faz elogios a natureza Brasílica, diz ele: “em tal maneira é tão graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-ia nela tudo”. Esta célebre frase, aponta para as potencialidades da nova terra, formando imagem da exuberância da natureza enaltecida em outros trechos.
Este documento tem sido, desde a sua primeira publicação, objeto de diversos estudos. Inicialmente o que chamava a atenção dos estudiosos, era a chamada “questão da intencionalidade”, isto é, a intenção ou não da descoberta das terras em 1500. Isto porque embora a carta faça alusão à tempestade no Oceano Atlântico, que seria o responsável pelo desvio da rota, não revelaria nenhuma surpresa quanto à descoberta da nova terra. Na historiografia brasileira houve o embate entre os defensores da intencionalidade da descoberta como Varnhagen e os defensores do acaso como Capistrano de Abreu. O que muitos estudiosos afirmam é que, tirando o tom sereno, não há nenhuma sustentação sobre a intencionalidade portuguesa de realizar o desembarque no que seria o Brasil.
No trecho final da famosa carta, Caminha pede ao rei o fim do exílio na África de seu genro que havia sido condenado por ter cometido um assalto. Pero Vaz não chegou a exercer a sua função de feitor em Calicute, pois morreu ainda no ano de 1500 em combate, quando a frota de Pedro Álvares de Cabral encontrou resistência e hostilidade por parte da população local.
Em uma correspondência, o remetente sempre tem em mente a individualidade do destinatário, a fim de adaptar seu texto aos interesses e gostos de quem irá receber a missiva. Em primeiro de maio de 1500, ancorado em Porto Seguro, o escrivão Pero Vaz de Caminha dirigiu ao monarca de Portugal, D. Manuel I, um relato de tudo o que vira na terra recém-descoberta, logo denominada pelos navegadores Vera Cruz. Trata-se de uma correspondência em um só sentido, uma vez que o destinatário não iria responder ao escrivão, e também de uma carta muito especial, na medida em que tinha igualmente como objetivo requerer mercê ao rei, em retribuição ou graça pelo serviço prestado de narrar tão minuciosamente suas observações na terra desconhecida. Pedia Caminha a D. Manuel I que fizesse sair seu genro da ilha de São Tomé, onde este certamente se encontrava a contragosto. A carta-relatório era, portanto, encarada pelo emissor como um serviço que possibilitaria a concessão de uma mercê.
Não estamos perante um simples relato de viagem, semelhante àqueles que tinham resultado da navegação dos portugueses para a África e para a Índia, e que geralmente eram redigidos pelos pilotos ou pelo capitão da armada. A especificidade do texto de Caminha reside no tipo de observações feitas e nos comentários pouco habituais nos escrivães das naus quatrocentistas. Seus dotes literários eram superiores aos de seus congêneres e ele despreza em seu texto epistolar os aspectos mais técnicos da viagem até a Terra de Vera Cruz, que todos supunham então ser apenas uma ilha como tantas outras já descobertas no Atlântico. Ele próprio previne o rei de que não irá falar “da marinhagem e das singraduras do caminho” porque não o saberia fazer. Deixa esses pormenores para os pilotos. Limita-se a dizer que em 21 de abril começaram os navegadores a ver “alguns sinais de terra”.
Resta saber se o rei de Portugal apreciou devidamente a narrativa enviada, ou se teria preferido um texto mais enxuto. Será que ele se interessou pelas características dos habitantes das novas paragens, ou gostaria mais de ser simplesmente informado se ali havia ou não ouro e outros metais preciosos como na Índia?
Caminha foi direto em sua carta e descartou logo de início a possibilidade de obter qualquer informação concreta acerca do ouro, em parte pela dificuldade que os portugueses tiveram em se comunicar com aqueles habitantes, por não disporem de qualquer intérprete que pudesse estabelecer a comunicação verbal, e também devido ao curto período que ali permaneceram. Em contrapartida, o escrivão atardou-se na descrição da gente que habitava aquelas paragens, como se ela constituísse a verdadeira riqueza do novo território. E procurou mostrar muito claramente ao rei que aqueles habitantes diferiam dos africanos e dos asiáticos, tornando deste modo sua carta a D. Manuel I um documento precioso para os antropólogos e os historiadores.
Outros companheiros da frota transmitiram também a notícia da descoberta da nova terra. O capitão resolveu então encaminhar a Portugal a nau dos mantimentos com os relatos para que o rei pudesse ali mandar alguém que descobrisse a Terra de Vera Cruz melhor do que eles o poderiam fazer a caminho do Oriente. Mas nenhum capitão ou escrivão das naus da frota se alongou em sua narrativa como Caminha. Este, aliás, se escusou perante o rei pelo longo texto remetido, acentuando seu desejo de “tudo dizer”, mas sem nada embelezar ou enfear, e colocando em sua descrição apenas aquilo que vira ou que lhe parecera. Este último ponto é extremamente significativo, pois ele reconhecia que muitas vezes interpretara gestos e comportamentos dos nativos, sem saber ao certo se sua interpretação estava correta. Nas palavras finais escreve: “E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi e, se algum pouco me alonguei, ela me perdoe, porque o desejo que tinha de vos tudo dizer mo fez assim pôr pelo miúdo”. Passagem esta que revela não ter Caminha nenhuma dúvida de que o novo território pertencia ao rei de Portugal.
O foco descritivo de Caminha incidiu sobre os habitantes dessa terra desconhecida. Em primeiro lugar, atentou em seus rostos: “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes”. Em seguida observou: “Andam nus sem nenhuma cobertura”, ostentando seus corpos “com tanta inocência como têm em mostrar o rosto”. Esses homens pardos, todos nus, “sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas”, desconheciam o pudor dos homens brancos.
Nota-se sua admiração pelos mancebos “de bons corpos”, sendo estes “tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode mais ser”, subentendendo-se aqui uma comparação com os corpos dos europeus. Nem mesmo o lábio inferior perfurado por um osso “da grossura de um fuso de algodão” diminuiu esse encanto ou causou estranheza. Observou seus cabelos lisos e rapados por cima das orelhas, suas pinturas corporais em negro e vermelho, as quais, em vez de desaparecerem com a água, ficavam depois de molhadas ainda com as cores mais intensas. Provavelmente comparando os nativos com os africanos, Caminha acentuou “os bons narizes” e os cabelos “corredios”, ou seja, não tinham nariz largo e achatado, nem carapinha.
Em relação aos corpos femininos, sua admiração foi calorosamente expressa, referindo as moças “bem gentis com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas e suas vergonhas tão altas e saradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha”. Ao atentar nas mulheres nativas, a comparação com as europeias foi explicitada ao mencionar uma moça tão benfeita “e tão redonda”, com “sua vergonha” tão graciosa, que “a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha por não terem a sua como ela”, em um recurso literário aos dois sentidos da palavra vergonha: órgão sexual e sentimento.
Quer os corpos femininos, quer os masculinos, foram considerados belos, limpos, inocentes, o que certamente contrastava com os corpos pouco asseados e disformes dos europeus do início dos Quinhentos.
A gestualidade dominou os primeiros contatos entre os homens brancos e os homens pardos, uma vez que, segundo Caminha, com estes não era possível “haver fala nem entendimento”. Um gesto já utilizado com sucesso em relação aos africanos e aos asiáticos, e que possibilitara uma aproximação pacífica com essas populações exóticas, consistia na oferta de presentes, quinquilharias que os navegadores sempre carregavam consigo nas naus, como por exemplo barretes, carapuças, chapéus, tesouras, colares. Imediatamente se estabeleceu na Terra de Vera Cruz a reciprocidade com a oferta de adornos de penas e outros adereços por parte dos habitantes.
É interessante notar que para Caminha a impossibilidade de comunicação por palavras resultava do fato de se tratar de “bárbaros”. Com eles não havia fala nem entendimento “por a berberia deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém”. Ou seja, a culpa da incomunicabilidade era atribuída exclusivamente aos homens pardos, em uma atitude marcadamente eurocêntrica.
Como se tratava de “gente que ninguém entende”, de nada serviria embarcar à força nas naus um ou dois homens para enviá-los ao rei. Eles dificilmente aprenderiam a se comunicar em Portugal.
Em contrapartida, degredados que ali fossem deixados certamente aprenderiam a falar com os habitantes ao viverem com eles. Caminha exprimia assim uma noção diferenciada das capacidades linguísticas de brancos e pardos.
A linguagem gestual era passível de diferentes interpretações e Caminha tinha consciência dessa dificuldade, e de modo algum a escamoteava perante o rei. Quando um habitante apontou as contas de um rosário e o colar que o capitão trazia ao pescoço, acenando depois para o interior, os homens do mar interpretaram este gesto como significando “que dariam ouro por aquilo”. Mas o autor da carta não estava muito certo desta interpretação: “Isto tomávamos nós assim por o desejarmos, mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, porque lho não havíamos de dar”. A ambiguidade dos gestos era assim reconhecida, sendo sempre possível dar-lhes a interpretação que mais convinha a quem os interpretava.
Onde falhava a linguagem verbal, onde a linguagem gestual se apresentava ambígua, havia que observar atentamente os comportamentos nas mais diversas situações. Nos contatos iniciais mostraram-se os habitantes esquivos, sempre prontos a fugir para o interior, e Caminha ressalta sua “esquiveza de animais monteses”. Consequentemente, foram utilizadas estratégias de aproximação.
Além da oferta de presentes, procuraram os capitães controlar o vozear da marinhagem: “homem não lhes ousa de falar rijo por se mais não esquivarem e tudo se passa como eles querem para os bem amansar”. A suavidade das falas não seria certamente muito comum em homens rudes do mar...
Conseguiram os portugueses que dois nativos se dirigissem a uma das naus e ali permanecessem algum tempo. Imediatamente Caminha percebeu que a noção de hierarquia social lhes era desconhecida. O capitão da frota recebeu-os sentado em uma cadeira e vestido de acordo com o cargo que ocupava, ostentando um longo colar de ouro, enquanto os demais navegadores se sentavam simplesmente no chão, em cima de uma alcatifa. Os visitantes da terra, nada impressionados com tal aparato e cerimonial, “entraram e não fizeram nenhuma menção de cortesia, nem de falar ao capitão nem a ninguém”. Segundo Caminha, os nativos não reconheciam o capitão “por senhor”, parecendo-lhe que “não entendem nem tomavam disso conta”. Por outras palavras, não reconheciam qualquer relação hierárquica entre aqueles intrusos que tinham entrado em seu espaço.
Tampouco pareciam reconhecer entre si alguém como chefe, pois, embora um falasse muito fazendo ao mesmo tempo gestos para que se afastassem, Caminha não descobriu nenhuma liderança nessa atitude, nem viu nos demais nativos “acatamento ou medo” em relação a esse personagem.
Nessa visita à nau mostraram reconhecer o papagaio que o capitão sempre trazia consigo, acenando para terra como que querendo dizer que ali também se encontravam aquelas aves. Não prestaram qualquer atenção a um carneiro, mas uma galinha os assustou e não lhe quiseram tocar.
Perante a comida oferecida a bordo, pouca coisa aceitaram e, quando provavam alguma iguaria, logo a cuspiam. Não gostaram de vinho e nem mesmo a água beberam: “somente lavaram as bocas e lançaram fora”. Revelaria tal comportamento desconfiança em relação aos desconhecidos? Não parece provável, pois Caminha relata que, em determinada altura, sem qualquer receio, “estiraram-se assim de costas na alcatifa a dormir”.
Com o passar dos dias seu comportamento se tornou menos esquivo, como revelou um episódio narrado por Caminha. Este observou que costumavam dançar uns diante dos outros “sem se tomarem das mãos”, mas, quando um gaiteiro da frota, tocando sua gaita, os pegou pela mão para dançarem, “folgavam e riam e andavam com ele muito bem”.
Um dos pontos fortes da literatura de viagens cultivada com os descobrimentos dos portugueses no século XV foi sem dúvida a descrição do modo de vida dos habitantes das novas terras abordadas pelos navegadores. No caso da carta de Caminha ao rei também não podia faltar esse ingrediente, embora tais observações se encontrem espalhadas por todo o texto e não concentradas em um só momento da escrita.
Apesar da resistência inicial em permitirem aos portugueses visitar suas aldeias, algumas descrições puderam ser feitas acerca de suas povoações. Estas tinham poucas casas, mas elas eram tão compridas que pareciam naus, e em cada uma moravam entre trinta e cinquenta pessoas. Chamou a atenção de Caminha o fato de em seu interior não serem levantadas quaisquer divisórias. Somente se encontravam ali “muitos esteios”, nos quais estavam penduradas as redes em que dormiam.
Dentro dessas casas “faziam seus fogos” e cada uma só tinha duas portas pequenas, notando portanto a ausência total de janelas.
Quanto à alimentação, referiu Caminha “muito inhame e outras sementes que na terra há”, sem contudo mencionar a caça e a pesca, talvez porque não teve ocasião de observar os nativos nessas atividades. Não havia indícios de se dedicarem à agricultura, alimentando-se apenas dos “frutos que a terra e as árvores de si lançam”. Apesar de sua frugalidade, gozavam de ótima saúde: “andam tais e tão rijos e tão nédios que não somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos”.
A técnica nativa na construção de embarcações era diferente daquela que Caminha já conhecia em outras regiões: “não são feitas como as que eu já vi, somente são três traves atadas juntas e ali se metem 4 ou 5”. Esta descrição indica que em 1500, naquela região de Porto Seguro, eram as jangadas e não as canoas que predominavam, e com elas os habitantes não se afastavam muito da costa.
Notou Caminha a curiosidade dos habitantes pelos instrumentos de ferro de que se serviam os carpinteiros das naus. E explicou: “eles não têm coisa que de ferro seja e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas metidas em um pau entre duas talas muito bem atadas”. A mesma ausência de ferro se observava em suas armas: “Os arcos são pretos e compridos e as setas compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá”. Esta frase indica que os artefatos indígenas seriam remetidos ao rei, na medida em que os portugueses conseguissem trocá-los pelas suas quinquilharias. Com guizos e outros objetos puderam os navegadores recolher papagaios “muito grandes e formosos”; enfeites plumários usados na cabeça; e mesmo “um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso”.
Um toque curioso deixou ainda Caminha ao informar o rei acerca do modo como as mulheres carregavam os filhos pequenos ao colo, atados com um pano cujo material desconhecia, e tão bem protegidos que “não apareciam senão as perninhas”.
Em vários momentos refere as danças, mas raramente menciona os instrumentos utilizados nelas.
Só uma vez fornece uma informação instrumental: “tangeram corno ou vozina, e começaram a saltar e dançar”. Ao contrário do que ocorrerá séculos mais tarde, os comentários de Caminha, quer em relação à cultura material, quer no que se refere aos costumes nativos, não são perpassados por nenhuma conotação pejorativa, embora em dado momento não se coíba de considerar aquela gente “bestial e de pouco saber”. Constatou muito simplesmente que desconheciam a agricultura e os animais domésticos: “eles não lavram nem criam, não há aqui boi nem vaca, nem cabra nem ovelha nem galinha”.
Rituais religiosos diferentes dos católicos já tinham sido observados pelos navegadores dos Quatrocentos. O cuidado com que Caminha observou os nativos de Vera Cruz, tão diferentes dos outros povos já visitados na África e no Oriente, levou-o a formular uma teoria acerca de suas crenças, apesar do insuperável obstáculo da impossibilidade de comunicação verbal.
Contrastando com o que os navegadores de outras paragens tinham narrado, Caminha e seus companheiros não tiveram dúvidas: “Pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm”.
Constatação que certamente facilitaria a conversão ao catolicismo, pois se tratava de “gente de tal inocência que, se os homens os entendessem, e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem nenhuma crença”. Ou seja, a ausência de ídolos ou deuses tornava-os uma tábua rasa, na qual tudo se poderia gravar. Não seria portanto necessário lutar contra as religiões locais, como ocorria em território de africanos e de orientais.
Se os degredados que iriam permanecer naquela terra conseguissem dominar sua língua e fazer-se entender, seria possível encaminhá-los mais tarde na direção pretendida e incluí-los na Igreja católica: “esta gente é boa, e de boa simplicidade, e imprimir-se-á neles qualquer cunho que lhes quiserem dar”. Caminha partia aqui de uma premissa: a de que o rei de Portugal se interessaria por ocupar aquela “ilha” de Vera Cruz, e não optaria por deixá-la ao abandono como algumas outras ilhas do Oceano Atlântico.
A parte final da missiva a D. Manuel I concentra-se, como seria de esperar, em um relato que serviria também para alcançar uma mercê régia, nas potencialidades da nova terra descoberta. Esta afigurava-se muito vasta a Caminha: “pelo sertão nos pareceu do mar muito grande porque a estender olhos não podíamos ver senão terra e arvoredos”. E espantava-o esse arvoredo, que era “tanto, tamanho e tão basto” até onde o olhar alcançava.
Embora não tivesse conseguido averiguar se ali haveria ouro, prata, ou metais úteis como o ferro, Caminha previa na Terra de Vera Cruz um brilhante futuro agrícola: “querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”, ou seja, dada a existência de rios. Outra vantagem ainda ela apresentava para a Coroa portuguesa, como porto estratégico na navegação da Índia.
Convém sublinhar que os poucos dias passados em Porto Seguro não permitiram aprofundar os conhecimentos acerca das riquezas naturais. Caminha limita-se a falar de uns camarões “grossos e curtos” descobertos na costa; de “muito bons palmitos” de que se tinham alimentado em abundância; dos tubarões que tinham avistado; das várias espécies de papagaios, pombas e umas aves negras parecidas com pegas. E no sertão muitos outros pássaros seriam certamente encontrados, dada a grande variedade avistada junto da costa e que tanto impressionou o escrivão.
Quando Caminha escreveu sua carta em Porto Seguro, havia já meio século que os escrivães das naus registravam os fatos ocorridos durante as viagens. Existiam relatos do interior da África, da viagem de Vasco da Gama à Índia sob a forma de roteiro etc., mas só depois de Caminha essas narrativas adquirem maior fôlego e se tornam mais minuciosas e ricas do ponto de vista antropológico.
Como se tratava de uma missiva destinada ao rei, e não para circulação entre outros leitores, ela permaneceu desconhecida do grande público até 1817, quando o padre Manuel Aires de Casal resolveu incluí-la em sua Corografia Brasílica, publicada na Impressão Régia do Rio de Janeiro.
Dela tinha sido feita uma cópia em 1773 por ordem do guarda-mor do Arquivo da Torre do Tombo, “para melhor inteligência do seu original”, uma vez que a letra de 1500 certamente dificultava sua leitura e compreensão. E foi essa cópia que Aires de Casal localizou no Arquivo da Marinha quando a Corte portuguesa se transferiu para o Brasil, na sequência das invasões napoleônicas na Península Ibérica. Deve contudo ser assinalado que a primeira versão impressa foi devidamente censurada, para evitar que os leitores se chocassem com a crueza da descrição dos corpos dos nativos.
A Carta de Pero Vaz de Caminha pode ser tida como documento de certidão de nascimento do Brasil. Justifica-se a posse portuguesa em terras do Novo Mundo, atesta-se o pioneirismo lusitano (que já se fazia envolvente desde Os Lusíadas), sedimenta-se ato cartorial que dá início a regime de propriedade, centrada no Estado, modelo que mais tarde se cristalizou definitivamente na Lei de Terras de 1850, fórmula definitiva desenhada no Segundo Reinado.
Tem-se em torno (e a partir) da carta de Caminha a justificativa histórica para todo o sistema cartorial brasileiro. Tem-se também receita que nos vincula culturalmente a Portugal. Gênero literário que supostamente remonta a Heródoto, e que fez estação definitiva em Marco Pólo, a narrativa de viagem é substrato nada ingênuo, que se presta a propósitos muito bem definidos. A carta de Caminha não foge à regra; pelo contrário, a comprova, e o faz de modo muito bem engendrado.
Na provocativa passagem de instigante pensador de nossa história cultural, a carta de Caminha protagoniza três finalidades muito claras: a) promove a filiação do Brasil à formação portuguesa; b) mantém a hegemonia da oligarquia lusa sobre minorias étnicas aqui encontradas, e para aqui posteriormente deslocadas; c) impõe visão do Brasil como uma utopia.
Concomitantemente, propicia documento cartorial justificativo de posse (e de propriedade), nos exatos contornos da tradição romanística que se vivia no ocidente, potencializada pelos bartolistas, e no caso identificada pelo princípio do uti possidetis, centro do Tratado de Madrid, de 1750, documento que nos garantiu terras além da linha de Tordesilhas, por obra bélica dos bandeirantes e diplomática de Bartolomeu de Gusmão.
A carta de Pero Vaz de Caminha é tratada nos manuais de história e de literatura como documento que atesta a presença da esquadra de Pedro Álvares Cabral no Brasil, legitimando-se a posse da terra, bem como vínculo cultural que nos faria herdeiros diretos da tradição lusitana.
Seus traços heróicos marcam posse fictícia, que no plano fático fez-se pela força das armas; justifica-se o genocídio, sem que se fale da carnificina que seria feita. O documento ganha sentido ainda mais hierático, quando se lembra que a carta ficara no esquecimento, perdida na Torre do Tombo em Portugal, ao lado de tantos outros documentos, à espera de uso. É documento híbrido. Trata-se originariamente de epístola, escrita por burocrata, e dirigida ao Rei de Portugal. Não é texto ficcional.
Obra de uso comum, de estudos de literatura, de autoria de Alfredo Bosi, participa da formatação do cânone festivo, embora, reconheça-se, de forma um pouco mais discreta:
O que para a nossa história significou uma autêntica certidão de nascimento, a Carta de Caminha a D. Manuel, dando notícia da terra achada, insere-se em um gênero copiosamente representado durante o século XV em Portugal e Espanha: a literatura de viagens. Espírito observador, ingenuidade (no sentido de um realismo sem pregas) e uma transparente ideologia mercantilista batizada pelo zelo missionário de uma cristandade ainda medieval: eis os caracteres que saltam à primeira leitura da Carta e dão sua medida como documento histórico (...) A conclusão é edificante (...).
Trata-se de documento que pretende compartilhar de visão do paraíso, percepção que desenvolvia no mundo renascentista, inclusive em seu sentido iconográfico. Historiografia tradicional, centrada em Capistrano de Abreu, outorgou à carta de Caminha o sentido de “(...) diploma natalício lavrado à beira do berço de uma nacionalidade futura (...)”.
Leitura bem menos ingênua, sustenta louvação em favor do nativo, e produzida por Caminha, no sentido de que o escriba português não se furtava de “(...) deliciosa e esmerada descrição de seus corpos [dos ameríndios] e de seus ornamentos, não escondendo detalhe algum e pondo sempre em evidência dotes corporais que saltavam à vista”.
Há quem sugira que a carta de Caminha seria no plano pragmático o que Os Lusíadas representariam no plano ideal; propondo-se “(...) abordagem realista de que a Carta de Caminha é a primeira página”. De qualquer modo, a carta é “(...) a mais meticulosa dentre as fontes primárias que se conhecem acerca do descobrimento (...). De modo também mais equilibrado manifestou-se José Guilherme Merquior:
(...) Persistia o mito do Eldorado, base do desapego à terra e do tratamento predatório de seus recursos. O Brasil dos primeiros tempos foi o objeto dessa avidez colonial. A literatura que lhe corresponde é, por isso, de natureza parcialmente superlativa. Seu protótipo é a carta célebre de Pero Vaz de Caminha, o primeiro a enaltecer a maravilhosa fertilidade do solo. Assim, o conhecimento da terra compõem-se muitas vezes com intenções exclamativas, onde a vontade de elogiar reduz o exercício do espírito de análise (...).
Em sentido totalmente oposto, isto é, desmistificando a carta de Pero Vaz de Caminha (e seu conteúdo), o pensamento de Flávio Kothe, a partir do qual as presentes reflexões se fazem. Reproduzo alguns excertos:
A Carta de Caminha, que não foi escrita para ser publicada e cuja primeira edição é somente de 1817, tinha características adequadas para ocupar posto estratégico no que se queria que fosse a formação e a determinação do cânone da literatura brasileira, onde costuma ser vista como o seu grande momento inaugural. Isso é estranho, pois a Carta sequer é um texto literário nem de autor brasileiro. Descoberta no século XIX, ela não estava "no início": este foi construído, inventado (...).
Segundo o autor citado, “fundamental não era o ‘descobrimento’, mas a apropriação jurídica da terra”.
E continua, em passo que revela crítica literária que apreende o entorno jurídico de modo muito preciso:
A Carta de Caminha participa da ficção legitimadora da presença portuguesa, e ela mesma é uma ficção, mas uma ficção jurídica: um ato de posse, em nome do rei de Portugal, como se, ao invés de maçados, índios e papagaios, o universo inteiro estivesse a contemplar a apropriação dentro de um cartório, conforme a partilha do planeta feita pelo papa como intérprete oficial do ‘testamento de Adão e Eva’. A ficção impregna e domina essa realidade. O sentido de tal ficção é conferir um direito divino aos portugueses em relação ao Brasil, ficção que os brasileiros tendem a assumir como legitimação de sua identidade, a começar pela língua que usam. Não se trata, em primeiro lugar, de uma ficção literária, que justificaria a participação de tal texto no sistema de uma literatura nacional: trata-se sobretudo de uma ficção jurídica, com todo o aparato da cena montada por ocasião da Primeira Missa.
O traço jurídico do texto que se explora no presente ensaio, na compreensão do crítico citado, “(...) documento jurídico português, e não um texto literário brasileiro (...), isto é, foi uma ficção jurídica, não uma ficção literária”.
E ainda:
A cerimônia de posse foi uma cena teatral, de caráter jurídico: uma cerimônia com a intenção cartorial de ser ato de Direito Internacional. A carta de Caminha participa dessa ficção jurídica: ato cartorial de declaração de propriedade, num lugar onde não havia cartório algum. Declarava-se a propriedade sobre uma ilha, e não havia ilha; não só havia ficção quanto ao objeto, mas se inventava uma repartição pública, para cumprir a ficção de uma partilha papal do planeta, com a ficção de um desvio de rota, pela ficção da vontade divina. O direito de propriedade pretendia basear-se numa posse – o uti possidetis – o "como possuis" do que não se possuía nem se sabia o que era. A posse do território era uma ficção (...) O sistema de propriedade rural brasileiro constrói-se à base dessa ficção: e com ele o sistema de poder e de organização social.
Tratar-se-ia de ficção cartorial metamorfoseada em ficção literária. A carta fora aproveitada pela tradição que se desenvolveu no Brasil, e que nos vincula a Portugal, em todos os sentidos. Do ponto de vista linguístico, a concepção de uma fala oficial portuguesa, tal como constitucionalizado no art. 13 da Constituição de 1988. No sentido literário, marca-se linha supostamente evolutiva que nos aproxima definitivamente da tradição literária lusitana. No que toca ao sentido jurídico propriamente dito sedimenta-se arquétipo cartorial, relativo às linhas de posse e de propriedade da terra. Em princípio, ainda antes do modelo de sesmarias, e de capitanias hereditárias.
Na Carta, Caminha principia com explicação dos porquês da redação do documento. Lembra que ainda que Cabral e demais capitães da frota tivessem redigido relatos pertinentes ao achamento da terra nova, insistia que daria testemunho próprio. Caminha pede que o Rei tome por boa vontade a ignorância do autor da carta. Dizendo-se neutro, afirmava categoricamente que não aformosearia nem afearia o relato. O exórdio insiste em proposições como achamento e terra nova, o que provavelmente nos remete a categorias romanísticas clássicas de res nullius.
Caminha insiste que não falaria do caminho que traçaram (marinhagem e singraduras do caminho). O assunto seria mais de técnica náutica, e o burocrata não detinha conhecimento para tanto. Lembra que a esquadra partiu de Belém, numa segunda-feira, 9 de março. Alcançaram as Ilhas Canárias no dia 14 do mesmo mês. No dia 22 de março chegaram às Ilhas de Cabo Verde. Narrou que a nau de Vasco de Ataíde se perdeu. Seguiram caminho, depois de infrutíferas buscas por Vasco de Ataíde. No dia 21 de abril a esquadra deu conta de sinais de terra. No dia seguinte, 22 de abril, verificaram aves, às quais chamaram de fura-buxos. Terra à vista; ao que consta um monte, ao qual chamaram de Monte Pascoal. E a terra nominaram de Terra de Vera Cruz. Ancoraram. Avançaram por terra firme no dia seguinte, e então avistaram homens que andavam pela praia. O capitão Nicolau Coelho avançou pelo rio que então teriam encontrado. Por aqui não havia cartórios e nem tabeliães, mas o registro ficou, provando a supremacia da fonte escrita.

Nenhum comentário:

Postar um comentário