O Roubo da Cabeça de Tiradentes, Artigo
Artigo
Todos conhecem
a história da Inconfidência Mineira e seu trágico final. Nosso relato se
restringe ao destino da cabeça de Tiradentes.
Depois de
morto por enforcamento, ele teve seu corpo esquartejado e colocadas as partes
nos locais por onde ele havia passado e falado de suas ideias de liberdade. Era
a resposta do governo. Que ninguém mais ousasse se levantar contra a rainha de
Portugal! A cabeça, troféu maior, foi salgada, levada para Vila Rica e colocada
em uma gaiola presa numa estaca. Era o dia 12 de maio de 1792. No centro da
Praça de Santa Quitéria, hoje Praça Tiradentes, ela deveria ficar até que “o
tempo a consuma”.
Esse fato
ocorreu com grande aparato. Tropas de Dragões se postaram enfileiradas, impondo
a ordem e dando um caráter oficial ao evento. O povo se amontoava a certa
distância para ver o horrível espetáculo. Na Câmara Municipal os políticos
proferiam discursos exaltando Sua Majestade e maldizendo o “traidor”
Tiradentes, que recebera um castigo merecido. Que isto sirva de lição a outros
subversivos que ousarem se voltar contra nossa querida rainha D. Maria I!
E assim se
passou. Amaldiçoado pelas autoridades, olhado com temor e admiração pelo povo,
Tiradentes cumpriu a sua sina. À tardinha, todos se recolheram às suas casas, e
a praça se esvaziou por completo.
À noite,
ninguém costumava sair, pois a luz dos lampiões era muito fraca e todos tinham
muito medo de bandidos, assassinos ou até mesmo de almas penadas. Tudo era
silêncio na Praça de Santa Quitéria. Não havia viv’alma por ali. Apenas uma
neblina baixa passava lenta, tapando a pouca visão da praça.
Pois nessa
fria e escura madrugada a cabeça do Tiradentes foi roubada e escondida em algum
lugar onde ninguém jamais a encontrou. Livrou, dessa forma, o alferes da
desgraça de ter sua cabeça apodrecendo, em plena praça pública.
Alguns dizem
que a cabeça foi embalsamada e colocada numa urna de pedra hermeticamente
fechada depois de ser preenchida totalmente com ouro em pó e enterrada em local
desconhecido.
Outros dizem
que a cabeça foi roubada por um monge. Ele a guardava numa caixa e retirava de
vez em quando para meditar diante dela. Meditação sobre a vida e a morte.
Uma terceira
versão diz que Tiradentes tinha uma admiradora que, aproveitando-se da confusão
estabelecida na praça, sumiu com a gaiola. Sua escrava ficou distraindo o
soldado, que era o seu guardião, dando-lhe cachaça para beber. O destino dela
ninguém sabe dizer.
A cabeça
original nunca apareceu, mas uma réplica surgiu na Praça Tiradentes, dentro de
uma gaiola, sobre um poste, 200 anos depois. Foi quando se homenageou, nessa
data, o herói nacional e patrono da Polícia Militar mineira, Tiradentes.
As autoridades
planejaram uma festa à altura. Tropas de Dragões saíram a cavalo do Rio de
Janeiro pela Estrada Real e foram se revezando pelo caminho. Homens
e cavalos eram trocados até chegarem a Ouro Preto, onde os festejos em praça
pública aconteceriam.
A escola de
arte local havia providenciado réplicas em gesso do corpo do Tiradentes e da
sua cabeça. As partes, braços e pernas foram colocados em pontos estratégicos
de todo o centro da cidade. Eram tantas que dariam para formar uns sete corpos.
A intenção era impressionar. Pintaram com tinta vermelha nos lugares dos cortes
e a tinta fresca ainda pingava pelo chão dando a impressão terrível de ser
sangue.
A cabeça foi
colocada numa gaiola sobre um poste fincado no centro da Praça Tiradentes bem à
frente da estátua do mártir da independência. A banda da Polícia Militar tocou
acordes em homenagem ao grande herói nacional. A praça estava cheia, flores
foram colocadas aos pés da estátua do Tiradentes, cantou-se o Hino Nacional e
os discursos das autoridades exaltavam a grande figura do alferes, exemplo de
patriotismo. Terminada a festa pública, a praça foi se esvaziando, a tarde foi
caindo, tudo escureceu. Era noite fria de maio. A praça, agora mais iluminada
que há 200 anos antes, tinha ainda o mesmo aspecto macabro.
Naquela noite,
uma galeria da cidade havia feito a vernissage de uma exposição sobre Bené da
Flauta, extraordinária figura popular que aqui viveu e atuou nos anos 70. Tal
evento reuniu artistas e intelectuais e várias pessoas da comunidade, ávidas de
recordações dos áureos anos 70 em Ouro Preto.
Lá pelas cinco
horas da manhã, dois artistas plásticos da cidade, Gelcio Fortes e José
Efigênio Pinto Coelho, chegaram à praça, vindos da exposição. Viram então a
incrível cena da praça escura, com a neblina fria se movendo, iluminada pelas
luzes dos monumentos públicos com a cabeça do Tiradentes lá no alto do poste,
dentro da gaiola.
- Essa cabeça
não pode amanhecer aqui! Disse o José Efigênio.
- Ela foi
roubada há 200 anos e não amanheceu na praça. Já está quase amanhecendo. Temos
que roubar esta cabeça!
O Gê, muito
aflito, tentou demovê-lo da ideia, argumentando ser aquela uma festa de
militares e autoridades. Qualquer loucura que se fizesse iria acabar mal. Mas
não adiantou. O José Efigênio já estava lá no beco do Pilão à procura de uma
escada que não encontrou. Decidiu então sacudir o poste, no que foi ajudado
pelo Gê. Tanto fizeram que a cabeça caiu, mas ficou presa por uma corda. E agora?
O que fazer? Havia uns mendigos dormindo aos pés da estátua do Tiradentes e com
eles conseguiram um canivete com que foi cortada a corda. A cabeça se espatifou
no chão. Era de gesso e ainda estava meio mole. Apressados e nervosos, pois o
dia já clareava, os dois juntaram os cacos da cabeça e colocaram na Brasília
bege do Gê.
Seguiram para
a casa do José Efigênio e bateram à porta. Eram quase seis horas da manhã.
Foram atendidos pela esposa dele sonolenta e atordoada com as novidades. Os
dois entraram levando os cacos até o fundo do quintal, cavaram um buraco e
enterraram a prova do crime. Ninguém viu nada, ninguém sabe de nada e, como há
200 anos atrás, ninguém sabia quem havia sido o autor do roubo da cabeça do
Tiradentes. Promessa selada, cada um foi descansar em sua casa, pois a noite
havia sido muito longa.
Mas a paz
durou pouco. Às nove horas, aproximadamente, a polícia estava na porta da casa
do Gê e depois foi a vez do José Efigênio. Ainda sonolentos, os dois artistas
foram levados à delegacia.
O delegado era
homem vaidoso, vestia-se à moda sertaneja, com cinturão de fivela com cara de
cavalo, calça apertada com gorgorão nas laterais, uma camisa xadrez e botas de
salto alto.
Ao interrogar
nossos artistas, o homem foi duro. Acusou-os de haver roubado um bem público.
Aquela cabeça havia sido doada à Polícia Militar e eles foram pegos em
flagrante. Algumas pessoas, esperando ônibus do outro lado da praça, viram
tudo, anotaram a placa do carro e ligaram para a polícia denunciando o roubo. O
carro foi encontrado e com restos de gesso. Não havia como negar, as provas
estavam ali.
José Efigênio
ainda tentou explicar ao delegado que eles só haviam repetido o feito histórico
de 200 anos atrás, mas o delegado não sabia nada de história e nem queria
saber.
A coisa estava
nesse ponto quando passou por ali o vereador Flávio Andrade, e quis logo saber
o que estava acontecendo. Ciente da situação, levou o José a casa dele onde
desenterraram a prova do crime. Aproveitaram para pegar um livro onde estava
escrita a história do roubo da cabeça. Telefonaram para o diretor da Escola de
Artes que os tranquilizou dizendo que tinha outras cabeças de Tiradentes.
De volta à
delegacia, onde havia permanecido o Gê, mostraram ao delegado o livro e pediram
que telefonasse ao diretor da Escola de Artes. O delegado assim o fez e ficou
sabendo que existiam outras cabeças e que o roubo fazia parte das comemorações.
Soltos, os
dois foram colher os frutos de sua louca ação.
De manhã,
pessoas que passaram pela praça, vendo a gaiola vazia pensaram:
- É Ouro Preto
não tem jeito. É terra de vândalos, não respeitam nada.
Outros tiveram
reação oposta, como a funcionária do Museu da Inconfidência que, ao abrir a
janela, viu a gaiola vazia e suspirou aliviada pensando:
- Enfim alguém
roubou a cabeça do Tiradentes. Era assim que tinha de ser. O
vereador amigo disse que ficou com inveja, ele gostaria de ter sido o autor do
roubo da cabeça.
Na rua, por
onde passavam os dois artistas eram cumprimentados por todos. A cidade inteira
sabia o que tinham feito através da rádio ou dos cochichos. A maioria havia
aprovado. Era a resposta do povo ao autoritarismo de todos os tempos.
(Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier).
(Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier).

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