segunda-feira, 24 de julho de 2023

A Polêmica Construção de uma Tirolesa no Pão de Açúcar, Rio de Janeiro, Brasil - Artigo

 


A Polêmica Construção de uma Tirolesa no Pão de Açúcar, Rio de Janeiro, Brasil - Artigo
Artigo

O morro do Pão de Açúcar está menor. Mais precisamente, 50 m3 menor – esse é o volume total de rochas que foi escavado do cume, sem autorização do Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, para a instalação de quatro linhas de tirolesa. Por se tratar de um bem tombado, o caso gerou uma investigação do Ministério Público Federal – que por sua vez, resultou em uma decisão liminar, expedida no início de junho, ordenando a interrupção imediata da obra. “Não se pode estimular ou incrementar o turismo colocando em risco a higidez de um monumento natural”, escreveu na decisão o juiz Paulo André Bonfadini, da 20ª Vara Federal do Rio de Janeiro. A Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar, que administra o bondinho, recorreu da liminar.
“Somando com o que foi extraído do morro da Urca, os caras tiraram em rocha o equivalente a quarenta caixas d’água”, calcula o ambientalista André Ilha, cofundador do Grupo Ação Ecológica, uma sociedade civil que defende causas ambientais no Rio de Janeiro. “E a instalação da tirolesa é só parte de algo muito mais grave.” Ilha refere-se a um projeto recente da empresa, ainda a ser avaliado pelo Iphan, que propõe expandir a área construída em cerca de 50%, tanto no Pão de Açúcar e no morro da Urca quanto na Praia Vermelha, de onde parte o bonde. “A concessão que existe é para que aquela área abrigue um teleférico e um centro de visitação, e não um espaço de entretenimento e lazer”, reclamou Ilha. “O tombamento do parque ocorreu exatamente cinquenta anos atrás. E cinquenta anos depois seguimos na mesma luta.”
Inaugurado em 1912, o bondinho do Pão de Açúcar é um dos principais cartões-postais do país, recebendo por ano pelo menos 1,5 milhão de pessoas, que pagam entre 80 e 300 reais para visitar o complexo turístico instalado em dois morros. O empreendimento sempre foi administrado pela Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar, primeiro através de uma licença concedida em 1909 pela prefeitura, e depois a partir de uma licitação ocorrida em 1969 (é esse documento que vale até hoje). Em 2021, a empresa tinha 115 milhões de reais em ativos, de acordo com uma auditoria feita pela PricewaterhouseCoopers. A obra da tirolesa foi orçada em 50 milhões de reais.
Não é de hoje que a Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar tem embates com a sociedade civil. Uma das primeiras brigas ocorreu em 1973, quando a empresa propôs a construção de um edifício espelhado de três andares no alto do Pão de Açúcar, para abrigar um restaurante. O projeto foi duramente criticado pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, pela pintora Djanira e pelo escritor Fernando Sabino, que escreveram uma carta ao Iphan pedindo o tombamento da área. O pedido foi endossado pelo paisagista Roberto Burle Marx, que deu entrevistas a O Jornal, da imprensa carioca, chamando as estações do bonde de “monstruosas” e declarando que o só tombamento evitaria a transformação do local “num centro de turismo feito à base de patriotadas”. O Iphan acatou o pedido ainda naquele ano.
Em 1991, a empresa propôs desmatar parte da vegetação existente entre os morros da Urca, – o mais baixo dos dois – e o do Pão de Açúcar para a construção de um anfiteatro que seria usado “para cursos de educação ambiental”. Em paralelo, a área também receberia um parque infantil da Turma da Mônica. A obra foi vetada pela prefeitura, e o caso impulsionou a sociedade civil a brigar, por quinze anos, para a transformação de toda a área numa unidade de conservação – o que ocorreu em 2006, com a criação do Monumento Natural dos Morros da Urca e do Pão de Açúcar (Mona Pão de Açúcar). Em 2012, o conjunto ainda seria declarado um patrimônio mundial pela Unesco, o braço cultural da ONU.
Naquele mesmo ano de 2012, com os morros tombados pelo Iphan e com a vegetação protegida pela unidade de conservação, a Companhia Caminho Aéreos Pão de Açúcar anunciou um novo projeto: a instalação de mais duas linhas de bonde conectando o Pão de Açúcar ao bairro do Leme, através dos morros do Leme ou da Babilônia. O projeto acabou gerando uma lei municipal bastante específica, vedando a “expansão do teleférico do Pão de Açúcar ou equipamento similar com destinação turística na área das APAs (Áreas de Proteção Ambiental) do Leme e da Babilônia e São João e em qualquer local do bairro do Leme”. A lei foi sancionada em 2015. Desde então, houve um período de armistício, interrompido recentemente com o caso das tirolesas.
Foi em janeiro do ano passado que a Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar protocolou no Iphan um anteprojeto de “reforma simplificada” para a instalação de quatro linhas de tirolesa ligando o Pão de Açúcar ao Morro da Urca, em paralelo aos cabos do bondinho. A ideia era que o usuário pudesse “voar” entre os dois morros ao longo de 40 segundos, preso apenas por um cabo, a uma velocidade que poderia chegar a 100 km/h. Como o documento não mencionava a extração de rochas – afinal, tratava-se de uma “reforma simplificada”, termo técnico para designar intervenções de pouco impacto –, o anteprojeto acabou sendo aprovado. Mas havia ali um detalhe capcioso: se a extração houvesse sido citada, a empresa seria obrigada a apresentar novo requerimento, bem mais detalhado, chamado “projeto executivo” – e este sim, o projeto executivo, é que serviria como base para a aprovação ou não da obra.
Um ano depois, em janeiro de 2023, surgiu uma mancha branca na parede rochosa do Pão de Açúcar. O morro foi então visitado pela Coordenação Técnica do Iphan, que deu de cara com a extração dos 50 m3 de rocha no Pão de Açúcar, e de mais 78 m3 no Morro da Urca – uma intervenção irreversível, que não tinha nada de simplificada, num bem natural tombado. A obra foi imediatamente interrompida, por ordem do Iphan. Dias depois, a Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar finalmente apresentou o projeto executivo ao instituto e requereu uma reunião para prestar esclarecimentos.
A reunião ocorreu na manhã do dia 26 de janeiro de 2023, na Superintendência do Iphan no Rio de Janeiro. Primeiro, a fiscal técnica Cláudia Espasandin relatou a visita em que flagrou as irregularidades. Em depoimento registrado em ata, disse que “o engenheiro civil Márcio Santos, da empresa RAC Engenharia S/A, informou que a composição [da mancha branca] era de pó de rocha e água, proveniente de corte de rocha”. Em seguida, Espasandin lembrou que a extração jamais havia sido mencionada nos documentos apresentados pela empresa, e perguntou o porquê do anteprojeto não ter feito “qualquer sinalização ou indicação […] de que haveria corte de rocha”. Em resposta, o gerente de novos projetos da Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar, Marcelo Gomes, respondeu que “não ficou clara a necessidade do envio do projeto executivo” especificando a extração. O argumento foi endossado pelo arquiteto Guto Índio da Costa, do escritório de arquitetura Índio da Costa, responsável pelo projeto da tirolesa, que concordou ter havido “uma falha do projeto, mas que em momento algum foi uma questão que eles [a empresa e seu escritório] visaram esconder”. Ou seja, um dos escritórios de arquitetura mais requisitados do Rio de Janeiro, que já assinou projetos de urbanismo para a prefeitura, deu a entender que esquecera como funcionam os trâmites burocráticos para fazer uma obra em um bem tombado.
Onze dias depois, deu-se uma estranha reviravolta. No lugar de multar a empresa – afinal, a obra fora feita sem a autorização necessária –, o Iphan aprovou o projeto executivo. Diante disso, o Grupo Ação Ecológica e o Movimento Pão de Açúcar Sem Tirolesa enviaram uma carta ao presidente nacional do Iphan, Leandro Grass, reclamando de excessiva “boa vontade demonstrada com a empresa”. Na carta, os dois grupos diziam-se esperançosos de que “a nova administração do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, neste histórico momento de reconstrução nacional dos efeitos perversos dos atos do governo anterior, (…) acatará os nossos argumentos e agirá com a urgência que o caso requer”. O pedido não foi acatado.
Foi assim que o Ministério Público Federal passou a investigar o caso – e que o Iphan acabou sendo arrolado no processo como réu, junto com a empresa responsável pelo Pão de Açúcar.
Enquanto o caso da tirolesa caminha na Justiça Federal do Rio de Janeiro, um segundo projeto de expansão do complexo turístico do Pão de Açúcar tramita no Iphan. Protocolado em dezembro do ano passado, o documento fala em “requalificação arquitetônica e urbanística de toda a área”, para que ela se torne “a melhor plataforma integrada de experiências sustentáveis em turismo, entretenimento e mídia da América do Sul”. Na prática, isso significa um acréscimo de 6.310 m2 de área construída – o equivalente à área de cinco piscinas olímpicas – somando as ampliações no Pão de Açúcar (627 m2), Morro da Urca (3.749 m2) e Praia Vermelha (1.933 m2). No último mês de março, o projeto recebeu parecer favorável do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, o órgão da prefeitura que cuida do patrimônio cultural da capital fluminense. O Iphan ainda não publicou seu parecer.
Procurada pela piauí, a Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar respondeu, por meio de sua assessoria de imprensa, que o projeto de ampliação não será executado sem que haja “o devido diálogo com a sociedade civil, nem as devidas aprovações dos órgãos responsáveis pela empresa, conforme os procedimentos seguidos e respeitados sempre pela empresa”.
Já no caso da tirolesa, a empresa respondeu que o anteprojeto “já contemplava informações sobre o nivelamento de rocha para permitir a ampla acessibilidade de pessoas com deficiência à atração”. Também procurado pela piauí, Guto Índio da Costa respondeu, por WhatsApp, que “todas as estruturas apresentadas no [croqui do] anteprojeto estão fixadas na rocha”. Em seguida enfatizou que seu escritório não é responsável por protocolar o projeto no Iphan. “Como eu te disse acima, todo o processo de licenciamento foi feito por terceiros, e não pela Indio da Costa”, escreveu, aludindo à Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar. A piauí teve acesso a todos os documentos do anteprojeto, incluindo os croquis, e nenhum fala de extração de rocha – muito menos extração para justificar acessibilidade.
A Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar lembrou que, para além do Iphan, o projeto foi aprovado pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Clima; pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação; pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade; pelo Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural; e pela Fundação Instituto de Geotécnica do Rio de Janeiro (GEO-RIO). É verdade. Mas nenhuma delas emitiu a licença mesmo depois de constatar uma irregularidade, como foi o caso do Iphan. “Por isso o Iphan é corresponsável”, disse à piauí o procurador da República Sergio Gardenghi Suiama, responsável pelo inquérito do MPF que resultou na Ação Civil Pública contra a empresa e o instituto. “Quando o Iphan deveria autuar, ele foi lá e autorizou a obra.”
A piauí pediu ao Iphan uma entrevista com o atual presidente, Leandro Grass. A instituição respondeu com um release disponível em seu site desde abril, onde diz que “as soluções propostas pelo Iphan foram contempladas no projeto aprovado”, e que neste caso específico do Pão de Açúcar, “as intervenções em rocha, do ponto de vista do tombamento nacional, são admissíveis na escala do bem tombado”.
Não é o que acha o desembargador Luiz Paulo da Silva Araújo Filho, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. No último dia 30 de junho, o magistrado recusou o recurso da empresa Caminho Aéreo Pão de Açúcar, referendando assim a decisão da primeira instância que ordenou a paralisação da obra. A retomada acarretaria em um risco “para toda a sociedade, tendo em vista, como evidenciado pela própria agravante, que o corte e a perfuração de rocha nos Morros do Pão de Açúcar e Urca não são passíveis de recomposição”, escreveu na decisão. À piauí, a Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar disse que o caso “ainda será julgado pela Sétima Turma Especializada do TRF2”, e que a “a empresa seguirá aguardando a decisão, consciente de que todas as evidências da solidez jurídica e processual do projeto para a tirolesa do Parque Bondinho Pão de Açúcar foram apresentadas”.
A história gera uma preocupação adicional à cidade do Rio de Janeiro. Em junho, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios da Unesco (Icomos) enviou uma carta à Direção do Centro de Patrimônio Mundial da própria Unesco, em Paris, pedindo que ela também se debruce sobre o caso: “Espera-se que o acolhimento dessa denúncia pela Unesco resulte em tratativas para o cancelamento da licença da obra da tirolesa […], evitando a inclusão do sítio na Lista de Patrimônio Mundial em Perigo e até mesmo a exclusão da lista de Patrimônio Mundial.” Há precedentes. Dresden, na Alemanha, e Liverpool, na Inglaterra, já perderam o título, no passado, em função de intervenções urbanas.

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