quarta-feira, 30 de agosto de 2023

A "Resposta Histórica", 1924, Vasco da Gama, Rio de Janeiro, Brasil

 


A "Resposta Histórica", 1924, Vasco da Gama, Rio de Janeiro, Brasil
Rio de Janeiro - RJ
Fotografia



Texto 1:
A Resposta Histórica é uma carta enviada, em 1924, por José Augusto Prestes, então presidente do Club de Regatas Vasco da Gama, para a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA). Nela, Prestes explica que o clube não iria desfiliar seus doze atletas negros, operários e analfabetos. A desfiliação foi uma condição estabelecida pela associação para a filiação e subsequente participação do Vasco nos campeonatos organizados pela AMEA.
No ano anterior, o Vasco havia vencido, de forma inconteste, o Campeonato Carioca com um elenco racialmente diverso, com muitos jogadores negros e pardos, sendo quase todos de origens suburbanas. À época, o futebol era tido como um esporte das elites.
Hoje, a carta e a posição assumidas pelo Vasco são tidas como um marco na luta contra o racismo no Brasil e no futebol.
A história da introdução do futebol no Brasil e no Rio de Janeiro, no final do século XIX e no início do século XX, é marcada por uma divisão racial e socioeconômica. Haviam pioneiros que eram abastados e traziam o jogo de suas viagens pela Europa, como Oscar Cox; e outros eram marinheiros europeus. A própria ideia de que o esporte teria sido introduzido e ensinado por Charles Miller é tida hoje como contestável a partir dessa visão de disputa racial e econômica. É importante frisar que a introdução do esporte ocorreu poucos anos após a Abolição da escravatura no Brasil e que, naturalmente, haveriam reflexos disso em toda a sociedade.
Até os anos de 1920, o esporte era considerado de elite e ligado a um ideário de modernidade europeia.
O futebol carioca à época era dominado por times da Zona Sul da capital, notoriamente mais abastada, e era profundamente racista. Negros, pobres e analfabetos não eram bem-vindos no futebol profissionalizado, o que causava uma grande diferença técnica e de condição física em favor dos jogadores vindos das elites, que não precisavam se dedicar ao trabalho assalariado.
Apesar de outros clubes terem negros e pobres em seus planteis, o Vasco foi o primeiro a profissionalizar seus atletas com essas origens e o primeiro de um bairro pobre a ser campeão. A ascensão meteórica em 1922 e o título de 1923 vieram como um choque para os clubes da elite carioca, que até então não tinham tido sua hegemonia ameaçada. O escrete, que veio a ser conhecido como "Camisas Negras", era composto por operários, faxineiros, choferes e pintores, doze dos quais eram negros ou pardos.
A forma encontrada pelos clubes da elite para se defender foi criando a AMEA e exigindo do Vasco a exclusão de jogadores que "não se encaixavam na conduta esportiva requerida pelo campeonato", além de alegar a falta de um estádio, que seria construído quatro anos depois. Frente a isso, o então presidente do clube José Augusto Prestes enviou a carta endereçada à nova associação.
Texto da carta:
Rio de Janeiro, 7 de Abril de 1924.
Officio No 261
Exmo. Snr. Dr. Arnaldo Guinle, M. D. Presidente da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos.
As resoluções divulgadas hoje pela Imprensa, tomadas em reunião de hontem pelos altos poderes da Associação a que V. Exa. tão dignamente preside, collocam o Club de Regatas Vasco da Gama numa tal situação de inferioridade, que absolutamente não pode ser justificada, nem pelas defficiencias do nosso campo, nem pela simplicidade da nossa séde, nem pela condição modesta de grande numero dos nossos associados.
Os previlegios concedidos aos cinco clubs fundadores da A.M.E.A., e a forma porque será exercido o direito de discussão a voto, e feitas as futuras classificações, obrigam-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.
Quanto á condição de eliminarmos doze dos nossos jogadores das nossas equipes, resolveu por unanimidade a Directoria do C.R. Vasco da Gama não a dever acceitar, por não se conformar com o processo porque foi feita a investigação das posições sociaes desses nossos consocios, investigação levada a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.
Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um acto pouco digno da nossa parte, sacrificar ao desejo de fazer parte da A.M.E.A., alguns dos que luctaram para que tivessemos entre outras victorias, a do Campeonato de Foot-Ball da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o acto publico que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias.
Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da A.M.E.A.
Queira V. Exa. acceitar os protestos da maior consideração estima de quem tem a honra de subscrever
De V. Exa. Atto Vnr., Obrigado.
José Augusto Prestes
Presidente
Texto 2:
A 7 de abril de 1924, José Augusto Prestes, Presidente do Vasco da Gama, assinou uma missiva com um valor impar na história do futebol brasileiro. Nessa carta, o Vasco da Gama anunciava uma rutura com o status quo reinante no futebol carioca, afastando-se de todos os outros que defendiam a separação entre brancos e negros nos campos de futebol.
Para a direção do Vasco, para os seus sócios e atletas, era chegado o tempo de assumir que o clube não queria compactuar com os segregacionistas e o racismo vigente nas instituições desportivas do Rio de Janeiro. O Vasco da Gama abandonava a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos, recusando-se a excluir os seus atletas de cor, só para poder competir com os seus rivais.
A decisão deu brado na época, com polémica e acusações várias aos dirigentes do Vasco. As reações foram violentas, com os dirigentes de outros clubes a acusarem o «clube dos portugueses» de ajudar a destruir um desporto amado por todos, ameaçando o seu futuro, mas o tempo provou que os dirigentes do Vasco é que estavam certos, com a sua pioneira tomada de posição a ser um ponto de partida para a longa luta pela erradicação do racismo no futebol brasileiro.
A sociedade brasileira vivia momentos de transformação. A de 15 de novembro de 1889, o Marechal Deodoro da Fonseca, apoiado pelas elites repúblicanas, proclamou a República, tendo de seguida demitido o Conselho de Ministros e destituido o Imperador. Nessa mesma noite, o marechal assinava a proclamação da República e instalava um governo provisório.
Três dias depois, D. Pedro II e a família imperial partiam rumo à Europa. Ao fim de 67 anos a monarquia chegava ao fim, depois de uma longa agonia, que nada conseguira inverter, nem a abolição da escravatura em 1888, a famosa «Lei Áurea», proclamada pela Princesa Dona Isabel, regente na ausência do pai.
Abolida a escravatura, o racismo não acabou e a sociedade brasileira continuou segregacionista e feroz na sua oposição à convivência entre brancos e negros.
Os grandes proprietários começaram a importar mão-de-obra emigrante para colmatar a falta dos escravos, e centenas de milhares de europeus começaram a aportar nos portos brasileiros, como ou o Rio.
Italianos, espanhóis, suíços, alemães, todos procuravam a fortuna em terras brasileiras, mas também os portugueses, antigos senhores coloniais, partiam para o novo eldorado.
Foram alguns desses portugueses que ajudaram a fundar o Vasco, que pelas cores e emblema, queria homenagear a pátria distante e a gesta gloriosa dos heróis lusitanos, quiçá o mais importante de todos fosse Vasco da Gama, o Almirante que descobrira para El Rei D. Manuel I, o caminho marítimo para a Índia.
Fundado em 1898, com o nome de Clube de Regatas Vasco da Gama, tornou-se no clube representativo da comunidade portuguesa do Rio de Janeiro, mas desde cedo foi abrindo as suas portas a todos além dos lusos, fossem eles cariocas, ou provenientes de outras partes do Brasil, com incidência para os nordestinos. Brancos, negros e mulatos começaram a conviver no clube, que queria unir irmãos de diferentes raças, para desdém dos adversários que consideravam essa situação vergonhosa e um atentado aos bons costumes e civilização.
A abertura do clube a pessoas de outras raças era de tal forma, que o Vasco rompeu os caducos hábitos da época, não só abrindo «as portas» aos negros, como elegendo um mulato para presidente, Cândido José de Araújo, eleito em 1904, e reeleito um ano depois, uma verdadeira pedrada no charco, num ato pioneiro na sociedade brasileira.
Em 1923, o Vasco participa na liga com os seus rivais, usando diversos jogadores negros e mulatos na equipa, para profundo incomodo de adversários e organizadores da competição.
Insatisfeitos, os adversários tentam alegar que o Vasco usa jogadores profissionais, o que ia claramente contra as regras estabelecidas, que apenas permitiam a participação de jogadores amadores. Mas no fundo, todos percebem que o que realmente incomoda os restantes clubes é a presença de jogadores não brancos no campeonato.
Um ano depois, Botafogo, Flamengo, Fluminense e outros clubes resolvem abandonar a Liga Metropolitana e fundar a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), deixando deliberadamende de fora o Vasco da Gama.
Quando os vascaínos tentaram aderir à nova associação, receberam uma dura condição para poderem se filiar na AMEA. O Vasco recebeu uma lista de doze atletas - todos negros - que deviam ser excluídos do clube, com acusação de que teriam uma «profissão duvidosa».
Confrontado com o triste ultimato, o Presidente José Augusto Prestes, enviou uma carta à AMEA, que ainda hoje é recordada como a "resposta histórica", recusando liminarmente as condições impostas e desistindo de filiar-se a AMEA.
Deste modo, o Vasco manteve-se na LMDT, que vencera em 1923 - defrontando todos os cinco grandes carioca. Em 1924 defrontando equipas de menos gabarito, venceu todos os jogos, mas em 1925, acabou por ser admitido na AMEA, podendo enfrentar os adversários podendo utilizar todos os seus jogadres, fossem eles brancos, negros ou mulatos.
Uma reprodução do documento, pode ser encontrada nos nossos dias, na Sala de Troféus, localizada na Sede em São Januário, encimada por um frase que faz pensar a todos os amantes do futebol, sejam eles brasileiros ou não:
"Sem o Vasco, o futebol brasileiro não teria conhecido Pelé."
Para os vascaínos, e com razão, o documento é um dos grandes orgulhos da história centenária do clube de São Januário. No momento da sua redação, poucos fariam ideia do impacto que a carta teria no futebol brasileiro. E a lista de craques que vestiram a canarinha durante estes anos todos, é a prova cabal da importância fulcral para o futuro do jogo no Brasil, que teve a decisão tomada, nesse 7 de abril de 1924.
Texto 3:
Depois de atropelar os adversários no ano anterior, em 1924 o Vasco já era o inimigo número 1 das demais torcidas cariocas. Um rival a ser batido, de qualquer maneira. E já que era difícil batê-lo em campo, os dirigentes dos clubes rivais resolveram investigar as atividades profissionais e sociais dos camisas negras, uma vez que o futebol ainda era amador e os jogadores não podiam receber salário por praticarem o esporte. Um verdadeiro golpe para tirar o Vasco das disputas.
Na verdade, o que não agradava os adversários era a origem daqueles jogadores: um time formado por negros, mulatos e operários, arrebanhados nas áreas pobres da cidade do Rio de Janeiro.
Depois de esgotadas todas as possibilidades de retirar o Vasco da disputa, por intermédio do regulamento da Liga Metropolitana, os adversários apelaram para a criação de uma nova entidade, a Associação Metropolitana de Esportes Athléticos (AMEA) e recusaram a inscrição dos vascaínos. Segundo os dirigentes adversários, o time cruzmaltino era formado por atletas de profissão duvidosa e o clube não contava com um estádio em boas condições.
Nesse contexto, a AMEA solicitou ao Vasco que excluísse doze de seus jogadores da competição que, não por coincidência, eram todos negros e operários. O Club de Regatas Vasco da Gama recusou a proposta prontamente. E através de uma carta histórica de José Augusto Prestes, então presidente cruzmaltino, o Gigante da Colina mostrou sua total indignação à discriminação racial: “Estamos certos de que Vossa Excelência será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno de nossa parte sacrificar, ao desejo de filiar-se à Amea, alguns dos que lutaram para que tivéssemos, entre outras vitórias, a do Campeonato de Futebol da Cidade do Rio de Janeiro de 1923 (…) Nestes termos, sentimos ter de comunicar a Vossa Excelência que desistimos de fazer parte da AMEA”. Vítima do racismo de seus adversários, restou ao Vasco disputar, com outros times de menor expressão, o campeonato da abandonada Liga Metropolitana de Desportos Terrestres.
Nesse dia histórico, o futebol brasileiro começou a ser do povo. Começou a forjar a tolerância, traço fundamental da cultura brasileira, que possibilitou a diversidade e a riqueza racial e cultural que vivenciamos hoje. No ano de 1923 começou a ser possível conhecermos Pelé, Garrincha, Didi, Barbosa, Romário e tantos e tantos outros talentos inigualáveis do nosso esporte. E o Vasco deu o seu mais importante passo para ser o gigante no qual ele se tornou.
O ingresso do Vasco na AMEA foi aprovado em tempo para o campeonato de 1925, com os mesmos direitos que os clubes fundadores. Os “camisas negras” obtiveram a terceira colocação na volta ao convívio com os principais clubes do Rio de Janeiro, em 1925, e conquistaram o vice-campeonato no ano seguinte.

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