Criado Mudo - Eduardo Affonso
Artigo
Um dos
problemas do Brasil é a piada pronta.
A gente tenta
fazer graça com alguns absurdos, mas aí vem a realidade e pá! mostra que não há
ironia, sarcasmo ou deboche que chegue aos seus pés.
Uma empresa
vai tirar de linha o ‘criado mudo’, porque a expressão é racista.
Racista?
Os criados são
uma raça? Há uma raça de mudos?
Aquele móvel
onde você guarda remédios, lenços de papel, bombinha de asma, título de
eleitor, cópia da chave do carro, e que serve de apoio para livros e luminária,
alguma vez te lembrou um escravo calado, a noite inteira de pé ao lado da cama?
Bora rebatizar
os móveis e acessórios opressores e perpetuadores de discriminação!
‘Olho mágico’
tem um quê de alucinógeno, não tem? Será preconceito contra usuários de
substâncias ilícitas?
Por que essa
falta de mobilidade social que prende a ‘mesinha de centro’ ao centro e a
‘mesinha de canto’ ao canto? Abaixo o comodocentrismo das mesinhas de centro!
Liberdade para as mesinhas de canto assumirem o protagonismo!
Diga ‘não’ ao
trabalho análogo à escravidão. Se o nome é ‘pano de prato’, ele deve receber
hora extra quando for usado para enxugar talheres e panelas – e adicional de
insalubridade quando, na falta de luvas, pegar caçarolas quentes no fogão. Que
as lojas de artigos de cama e mesa mudem os nomes para ‘pano de garfo’, ‘pano
de faca’, ‘pano de frigideira’ etc.
O mesmo vale
para quem usa colher de sopa para medir açúcar, colher de chá para colocar pó
de café no coador, forma de bolo para fazer pudim, tábua de carne para picar
cebola…
Quer coisa
mais estadocivilnormativa que ‘cama de solteiro’ e ‘cama de casal’. Não é cama
que define o estado civil de ninguém. E como é que ficam os poliafetivos, os
menagers, os suínguers, sendo o tempo todo lembrados que aquele móvel foi feito
para um casal, não para práticas sexuais alternativas?
Também
precisamos repensar o gênero quando se trata de sofá-cama. Porque ‘o’
sofá-cama, não ‘a’ sofá-cama? Sofá-cama é genderfluid – ora sofá, ora cama –
portanto, nenhum gênero o/a define.
E a bicama?
Por que expor assim a orientação sexual de um móvel? Se ela é bi, isso é
questão de foro íntimo.
Desde quando
sapato e mala são roupas? E onde é que a gente guarda? Na parte de baixo e lá
na prateleira de cima do guarda-roupa. O nome ‘guarda roupa’ é discriminatório
e não inclusivo. Doravante, refira-se a ele como ‘guarda lenço bolsa toalha
sapato mala cinto e roupa’ (se preferir, use a sigla GLBTSMCR).
Como alguém
pode, em sã consciência, almoçar na mesa de jantar?
Lavar pano (de
prato, de talher, de panela, de chão) na lava-roupas?
Usar a
escrivaninha para desenhar?
Meu ferro
elétrico é quase todo de plástico, mas o plástico não tem representatividade –
só o ferro. Pode isso?
É justo
impedir a luminária de pé de se sentar? Chamar de corredor um lugar por onde a
gente normalmente anda em baixa velocidade? Usar o computador para tudo, menos
para computar? Apenas relaxar na espreguiçadeira?
E, já que o
criado-mudo é racista, o que dizer do machismo explícito de a cama king size
ser maior que a queen?

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