Hollywood e o Nazismo - Artigo
Artigo
Hitler era viciado em Netflix – ou quase isso. Todas as noites, o führer escolhia um filme para assistir, antes de dormir, em seu cinema particular (já que na década de 1930 não existia nem televisão).
O ritual era sagrado, e mesmo reuniões importantes raramente eram estendidas a ponto de furar o filminho da noite. O ditador via de tudo: gostava dos filmes da dupla O Gordo e o Magro, detestou Tarzan e até ganhou, de Natal, uma coleção de desenhos da Disney. O remetente? Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista.
O amor de Hitler pela sétima arte era mais que um hobby. Ele sempre soube do poder de convencimento que os filmes exercem sobre a população. Em Minha Luta, autobiografia que escreveu durante o tempo que passou na prisão, Hitler defende que livros não são capazes de inspirar mudanças. A maneira mais eficaz de fazer isso seria por meio da imagem.
Isso se tornou uma arma valiosa para a disseminação das sandices nazistas. Desde o momento em que Hitler se tornou ditador na Alemanha, em 1933, centenas de filmes foram feitos para exaltar o governo e a “raça ariana” – aquela ficção nazista segundo a qual os germânicos pertenciam a uma cepa superior de humanos, os “arianos”.
Mas o público alemão não assistia apenas a filmes nacionais (e nacionalistas). O país continuou recebendo produções hollywoodianas. E boa parte dos estúdios de cinema, com medo de perder o mercado da Alemanha, aceitava mudanças sugeridas pelos nazistas. Mas não é tão simples. Para entender melhor essa “passada de pano” histórica, é preciso voltar alguns anos no passado.
Antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Alemanha era o segundo maior mercado de exportação de Hollywood, atrás do Reino Unido. A indústria do cinema ainda engatinhava, mas alguns dos estúdios mais tradicionais já haviam aberto suas portas (a Paramount e a Universal, por exemplo, são de 1912).
Com a derrota na guerra, os germânicos pagaram o pato. O Tratado de Versalhes, acordo de paz assinado pelos países envolvidos no conflito, impôs uma série de obrigações para a Alemanha. Ela perdeu territórios e colônias, destruiu o arsenal do seu Exército e teve de arcar com os prejuízos da batalha. Some tudo isso à crescente instabilidade política e temos uma nação em colapso.
O ressentimento dos alemães deu origem a um nacionalismo radical, que viria a culminar em sua vertente mais extrema: o “nacional-socialismo” – que, apesar do nome, elegia os comunistas e os capitalistas como inimigos. Em alemão, é “Nationalsozialismus” – logo encurtado para as letras em negrito aqui.
Nos anos 1920, a Alemanha criou uma série de políticas protecionistas para fortalecer a economia. Nessa onda, nem o cinema escapou. Para proteger os estúdios locais, o governo impôs, em 1925, um rigoroso sistema de cotas: só era possível importar um filme estrangeiro para cada filme alemão produzido.
Àquela altura, a Alemanha já não era mais o mercado de antes. Mesmo assim, Hollywood estava preocupada, pois a decisão poderia inspirar outros países a criar restrições parecidas. Havia uma esperança: o Partido Nazista, cuja representação crescia no Parlamento Alemão, prometia afrouxar as rédeas do sistema de cotas caso chegasse ao poder.
As coisas ficaram mais claras a partir de 1930. Três anos antes de Hitler virar chanceler da Alemanha, chegava aos cinemas Sem Novidades no Front. O filme, feito em tom pacifista, humanizava os soldados alemães, mostrando-os como o que eram: pessoas comuns, falíveis (como qualquer soldado, de qualquer país). Foi um sucesso, e venceu o Oscar de Melhor Filme, mas os nazistas não gostaram nem um pouco. Entendiam que o filme desrespeitava a “bravura” germânica.
O partido, então, comprou centenas de ingressos para a estreia do longa e organizou uma manifestação. Goebbels fez um discurso dentro da sala de cinema criticando a obra, e a noite acabou com militantes nazistas jogando bombas de gás e soltando ratos em meio à multidão.
Deu certo. Em seis dias, o governo alemão baniu Sem Novidades no Front, e recomendou a outros países que fizessem o mesmo. O problema chegou até Carl Laemmle, presidente da Universal, distribuidora do filme. Nascido na Alemanha, ele queria que a produção passasse por lá. A solução foi acatar mudanças exigidas pela censura estatal.
Em 1931, Laemmle apresentou um novo corte do filme, que foi aprovado sob uma condição: todos os outros países onde o filme não havia estreado deveriam exibir essa versão editada, e não apenas a Alemanha. Laemmle concordou. Cenas que mostravam o cotidiano sofrido dos soldados foram amenizadas, e diálogos sobre a falta de sentido da guerra foram cortados. Com o passar dos anos, Carl se arrependeu da decisão, e passou a ajudar judeus a saírem da Alemanha – até 1939, quando morreu, foram mais de 300.
A censura a Sem Novidades no Front deu aos nazistas uma ideia: em vez de analisar um filme já pronto, por que não supervisionar a sua produção? Quando Hitler assumiu, o governo tratou de colocar um cônsul em Los Angeles, na cara do gol para monitorar os estúdios de Hollywood. O escolhido para a missão foi o diplomata Georg Gyssling, que já começou fazendo barulho.
Um ano antes, a Alemanha havia aprovado uma lei ainda mais rígida sobre a distribuição de filmes estrangeiros. Se os censores do governo achassem que uma produção desrespeitava os “valores alemães”, não só o longa era vetado, como o estúdio responsável também poderia ser banido do país. E foi exatamente o que Gyssling fez.
Uma das primeiras reuniões do cônsul nos EUA foi com executivos da Warner Bros. Ele foi convidado para assistir Prisioneiros!, filme ambientado em um campo de concentração alemão durante a Primeira Guerra. Gyssling não gostou nem um pouco, e elaborou uma lista com uma série de modificações.
Nos EUA, o filme saiu sem as alterações de Gyssling, que deu um ultimato para a Warner: ou eles fariam as edições, ou o estúdio sairia da Alemanha. Meses depois, Prisioneiros! ganhou uma nova versão, mas a Warner a exibiu para outro cônsul, Gustav Muller, que não era do Partido Nazista e aprovou o que viu. Gyssling não gostou nada disso, e fez de tudo para fechar o escritório da Warner da Alemanha, em 1934.
“De 1933 a 1940, os nazistas examinaram mais de quatrocentos filmes americanos”, afirma o historiador Ben Urwand no livro O Pacto entre Hollywood e o Nazismo, que se debruça sobre o tema. A partir daí, os estúdios passaram a tomar ainda mais cuidado para agradar Gyssling.
A interferência nazista em Hollywood ocorria, simultaneamente, nas duas pontas da produção: enquanto Gyssling analisava roteiros potencialmente problemáticos (e era convidado pelos estúdios a assistir filmes de antemão), o Ministério da Propaganda, de Goebbels, mantinha um departamento de censura, que dava a palavra final se um filme seria exibido ou não em solo germânico.
Em 1933, quando King Kong fazia um enorme sucesso nos EUA, Ernst Seeger, chefe da censura alemã, reuniu 11 pessoas para avaliar o filme. Produtores, filósofos, pastores e até um médico – todo mundo deu o seu pitaco.
A conclusão foi de que o filme ofendia os sentimentos raciais do povo alemão. Apresentar uma mulher loira, com “traços germânicos”, correndo perigo poderia “provocar pânico à população”. Mais: Seeger e os outros não gostavam do macaco. Anos antes, durante a Primeira Guerra, as propagandas dos Aliados representavam os alemães como gorilas selvagens.
Claro que os alemães não conseguiram impedir a realização do filme. Mas pediram cortes para liberá-lo ao mercado germânico. Tiraram cenas em que a mocinha parecia assustada demais, para evitar o tal “pânico”, e proibiram uma cena em que o gorila faz um trem do metrô descarrilar, para “não baixar a confiança da população no transporte público”. Para deixar claro que tudo ali era fantasia mesmo, o filme foi lançado na Alemanha com o título A Fábula de King Kong, Um Filme Americano de Truque e Sensação. Isso dá uma bela ideia do quão patética pode ser a intervenção de um regime autoritário em obras culturais.
A intervenção em King Kong foi algo pueril. O problema mesmo era que produções nitidamente críticas ao nazismo nem saíram do papel na época. É o que aconteceu com The Mad Dog of Europe (“O Cachorro Louco da Europa”), também em 1933. O longa, que ainda estava em fase de projeto, traria Hitler como vilão – e jamais foi filmado. Louis B. Mayer, chefão da gigante MGM, deu a palavra final, informando os produtores que ninguém em seu estúdio poderia fazer algo do tipo, para não perder o dinheiro do mercado alemão.
A parceria de Hollywood com os nazistas contribuiu, de certa forma, com a perseguição aos judeus. Em 1933, os judeus que trabalhavam com cinema na Alemanha foram demitidos, e não demorou para que o governo nazista intimasse as companhias americanas com escritórios no país a fazer o mesmo.
Os métodos eram, no mínimo, persuasivos. Um sobrinho de Carl Laemmle, que trabalhava para a Universal em Berlim, passou algumas horas na prisão. Um executivo da Warner teve seu carro roubado e, em seguida, apanhou de capangas.
Os estúdios, então, atenderam aos pedidos do governo alemão. Em 1936, Hitler proibiria oficialmente a participação de judeus no mercado de distribuição de filmes. Vale lembrar: a maioria dos fundadores das companhias de Hollywood eram imigrantes judeus: William Fox (Fox), Louis B. Mayer (MGM), Jack e Harry Warner (Warner Bros), Adolph Zukor (Paramount).
Mesmo assim, a representação dos judeus começou a sumir também nas telonas. O protagonista de Paixão do Dinheiro, do estúdio RKO, seria originalmente um homem de negócios judeu – o que foi alterado. Em outro exemplo, a Twentieth Century cortou personagens judeus do filme Alma sem Pudor. Simplesmente para garantir a exportação das produções para a Alemanha. Àquela altura, o país já tinha voltado a ser um grande mercado – era o terceiro do planeta, atrás do Reino Unido e da França.
Talvez o caso mais emblemático seja de Emile Zola. Sucesso de público e crítica da Warner, conta a história real do capitão francês Albert Dreyfus, acusado de traição apenas por ser judeu. Uma ótima oportunidade para discutir antissemitismo, certo? Só tem um detalhe: a palavra “judeu” não é dita uma única vez. Gyssling revisou o roteiro e as eliminou. Ela só aparece num breve momento, de relance, escrita em uma folha de papel.
O namoro estava firme. Em 1937, a Paramount escolheu como gerente de sua filial alemã um membro do Partido Nazista. No ano seguinte, a Fox enviou uma carta ao escritório de Hitler, pedindo que o führer expressasse sua opinião sobre o cinema americano. Na despedida, escreveram: “Heil Hitler!”
Em 1938, as coisas começaram a mudar de figura. A perseguição dos nazistas aos judeus atingiu outro patamar. Na chamada Noite dos Cristais, em novembro, milhares de lojas e casas de famílias judaicas foram destruídas. Dias depois, um jornal panfletário de Goebbels declarou que “um terço dos artistas de Hollywood era judeu”.
Na mesma época, o Ministério da Propaganda liberou uma lista com mais de 60 personalidades do cinema americano. E afirmou: se alguma delas tivesse um papel importante em determinado filme, a produção não entraria em solo alemão.
A paranoia nazista aumentou drasticamente. A marcação ficou tão cerrada que, a partir de 1938, só três estúdios haviam sobrado por lá: MGM, Paramount e Twentieth Century-Fox. Em 1939, os censores permitiram apenas 20 filmes de Hollywood nos cinemas alemães.
A Segunda Guerra começou em setembro daquele ano, com a invasão nazista à Polônia. Os EUA ainda não tinham entrado no conflito. Mas a relação entre Hollywood e o governo alemão minguou de vez. Foi aí que os projetos de filmes antinazistas, antes rejeitados de prontidão pelos estúdios, começavam a surgir.
O primeiro deles foi Confissões de um Espião Nazista, da Warner. A produção foi envolta em segredos, com medo de que o roteiro vazasse. O filme estreou naquele mesmo ano. Agora, as portas estavam abertas, e quem aproveitou foi um dos donos da United Artists: Charles Chaplin. Em 1940, o gênio lançou seu O Grande Ditador.
O filme tira sarro abertamente de Hitler, retratado (muito justamente) como um imbecil megalomaníaco, e traz um grande, belo, discurso antifascista no final. Foi um sucesso estrondoso – que segue firme nas listas de melhores filmes de todos os tempos. Mas ele quase não aconteceu.
Ameaçado por nazistas desde o anúncio da produção, Chaplin pensou em desistir de levar o projeto adiante. Mesmo décadas depois, em sua autobiografia, o cineasta afirmou que, caso soubesse sobre os campos de concentração e toda a verdade da perseguição aos judeus, provavelmente não conseguiria fazer piada com a loucura nazista.
Mas o filme saiu, e se tornou a maior bilheteria de Chaplin – ainda que proibido não só na Alemanha, mas também na França, já ocupada por Hitler.
Em 1941, quando os EUA entraram na Segunda Guerra, Gyssling foi deportado. “Os estúdios poderiam ter alertado o mundo para a ameaça do nazismo?”, questiona o crítico de cinema americano David Denby, em uma reportagem sobre o tema. “É difícil dizer. Ainda assim, teria sido bom se eles tivessem tentado.”
O ritual era sagrado, e mesmo reuniões importantes raramente eram estendidas a ponto de furar o filminho da noite. O ditador via de tudo: gostava dos filmes da dupla O Gordo e o Magro, detestou Tarzan e até ganhou, de Natal, uma coleção de desenhos da Disney. O remetente? Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista.
O amor de Hitler pela sétima arte era mais que um hobby. Ele sempre soube do poder de convencimento que os filmes exercem sobre a população. Em Minha Luta, autobiografia que escreveu durante o tempo que passou na prisão, Hitler defende que livros não são capazes de inspirar mudanças. A maneira mais eficaz de fazer isso seria por meio da imagem.
Isso se tornou uma arma valiosa para a disseminação das sandices nazistas. Desde o momento em que Hitler se tornou ditador na Alemanha, em 1933, centenas de filmes foram feitos para exaltar o governo e a “raça ariana” – aquela ficção nazista segundo a qual os germânicos pertenciam a uma cepa superior de humanos, os “arianos”.
Mas o público alemão não assistia apenas a filmes nacionais (e nacionalistas). O país continuou recebendo produções hollywoodianas. E boa parte dos estúdios de cinema, com medo de perder o mercado da Alemanha, aceitava mudanças sugeridas pelos nazistas. Mas não é tão simples. Para entender melhor essa “passada de pano” histórica, é preciso voltar alguns anos no passado.
Antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Alemanha era o segundo maior mercado de exportação de Hollywood, atrás do Reino Unido. A indústria do cinema ainda engatinhava, mas alguns dos estúdios mais tradicionais já haviam aberto suas portas (a Paramount e a Universal, por exemplo, são de 1912).
Com a derrota na guerra, os germânicos pagaram o pato. O Tratado de Versalhes, acordo de paz assinado pelos países envolvidos no conflito, impôs uma série de obrigações para a Alemanha. Ela perdeu territórios e colônias, destruiu o arsenal do seu Exército e teve de arcar com os prejuízos da batalha. Some tudo isso à crescente instabilidade política e temos uma nação em colapso.
O ressentimento dos alemães deu origem a um nacionalismo radical, que viria a culminar em sua vertente mais extrema: o “nacional-socialismo” – que, apesar do nome, elegia os comunistas e os capitalistas como inimigos. Em alemão, é “Nationalsozialismus” – logo encurtado para as letras em negrito aqui.
Nos anos 1920, a Alemanha criou uma série de políticas protecionistas para fortalecer a economia. Nessa onda, nem o cinema escapou. Para proteger os estúdios locais, o governo impôs, em 1925, um rigoroso sistema de cotas: só era possível importar um filme estrangeiro para cada filme alemão produzido.
Àquela altura, a Alemanha já não era mais o mercado de antes. Mesmo assim, Hollywood estava preocupada, pois a decisão poderia inspirar outros países a criar restrições parecidas. Havia uma esperança: o Partido Nazista, cuja representação crescia no Parlamento Alemão, prometia afrouxar as rédeas do sistema de cotas caso chegasse ao poder.
As coisas ficaram mais claras a partir de 1930. Três anos antes de Hitler virar chanceler da Alemanha, chegava aos cinemas Sem Novidades no Front. O filme, feito em tom pacifista, humanizava os soldados alemães, mostrando-os como o que eram: pessoas comuns, falíveis (como qualquer soldado, de qualquer país). Foi um sucesso, e venceu o Oscar de Melhor Filme, mas os nazistas não gostaram nem um pouco. Entendiam que o filme desrespeitava a “bravura” germânica.
O partido, então, comprou centenas de ingressos para a estreia do longa e organizou uma manifestação. Goebbels fez um discurso dentro da sala de cinema criticando a obra, e a noite acabou com militantes nazistas jogando bombas de gás e soltando ratos em meio à multidão.
Deu certo. Em seis dias, o governo alemão baniu Sem Novidades no Front, e recomendou a outros países que fizessem o mesmo. O problema chegou até Carl Laemmle, presidente da Universal, distribuidora do filme. Nascido na Alemanha, ele queria que a produção passasse por lá. A solução foi acatar mudanças exigidas pela censura estatal.
Em 1931, Laemmle apresentou um novo corte do filme, que foi aprovado sob uma condição: todos os outros países onde o filme não havia estreado deveriam exibir essa versão editada, e não apenas a Alemanha. Laemmle concordou. Cenas que mostravam o cotidiano sofrido dos soldados foram amenizadas, e diálogos sobre a falta de sentido da guerra foram cortados. Com o passar dos anos, Carl se arrependeu da decisão, e passou a ajudar judeus a saírem da Alemanha – até 1939, quando morreu, foram mais de 300.
A censura a Sem Novidades no Front deu aos nazistas uma ideia: em vez de analisar um filme já pronto, por que não supervisionar a sua produção? Quando Hitler assumiu, o governo tratou de colocar um cônsul em Los Angeles, na cara do gol para monitorar os estúdios de Hollywood. O escolhido para a missão foi o diplomata Georg Gyssling, que já começou fazendo barulho.
Um ano antes, a Alemanha havia aprovado uma lei ainda mais rígida sobre a distribuição de filmes estrangeiros. Se os censores do governo achassem que uma produção desrespeitava os “valores alemães”, não só o longa era vetado, como o estúdio responsável também poderia ser banido do país. E foi exatamente o que Gyssling fez.
Uma das primeiras reuniões do cônsul nos EUA foi com executivos da Warner Bros. Ele foi convidado para assistir Prisioneiros!, filme ambientado em um campo de concentração alemão durante a Primeira Guerra. Gyssling não gostou nem um pouco, e elaborou uma lista com uma série de modificações.
Nos EUA, o filme saiu sem as alterações de Gyssling, que deu um ultimato para a Warner: ou eles fariam as edições, ou o estúdio sairia da Alemanha. Meses depois, Prisioneiros! ganhou uma nova versão, mas a Warner a exibiu para outro cônsul, Gustav Muller, que não era do Partido Nazista e aprovou o que viu. Gyssling não gostou nada disso, e fez de tudo para fechar o escritório da Warner da Alemanha, em 1934.
“De 1933 a 1940, os nazistas examinaram mais de quatrocentos filmes americanos”, afirma o historiador Ben Urwand no livro O Pacto entre Hollywood e o Nazismo, que se debruça sobre o tema. A partir daí, os estúdios passaram a tomar ainda mais cuidado para agradar Gyssling.
A interferência nazista em Hollywood ocorria, simultaneamente, nas duas pontas da produção: enquanto Gyssling analisava roteiros potencialmente problemáticos (e era convidado pelos estúdios a assistir filmes de antemão), o Ministério da Propaganda, de Goebbels, mantinha um departamento de censura, que dava a palavra final se um filme seria exibido ou não em solo germânico.
Em 1933, quando King Kong fazia um enorme sucesso nos EUA, Ernst Seeger, chefe da censura alemã, reuniu 11 pessoas para avaliar o filme. Produtores, filósofos, pastores e até um médico – todo mundo deu o seu pitaco.
A conclusão foi de que o filme ofendia os sentimentos raciais do povo alemão. Apresentar uma mulher loira, com “traços germânicos”, correndo perigo poderia “provocar pânico à população”. Mais: Seeger e os outros não gostavam do macaco. Anos antes, durante a Primeira Guerra, as propagandas dos Aliados representavam os alemães como gorilas selvagens.
Claro que os alemães não conseguiram impedir a realização do filme. Mas pediram cortes para liberá-lo ao mercado germânico. Tiraram cenas em que a mocinha parecia assustada demais, para evitar o tal “pânico”, e proibiram uma cena em que o gorila faz um trem do metrô descarrilar, para “não baixar a confiança da população no transporte público”. Para deixar claro que tudo ali era fantasia mesmo, o filme foi lançado na Alemanha com o título A Fábula de King Kong, Um Filme Americano de Truque e Sensação. Isso dá uma bela ideia do quão patética pode ser a intervenção de um regime autoritário em obras culturais.
A intervenção em King Kong foi algo pueril. O problema mesmo era que produções nitidamente críticas ao nazismo nem saíram do papel na época. É o que aconteceu com The Mad Dog of Europe (“O Cachorro Louco da Europa”), também em 1933. O longa, que ainda estava em fase de projeto, traria Hitler como vilão – e jamais foi filmado. Louis B. Mayer, chefão da gigante MGM, deu a palavra final, informando os produtores que ninguém em seu estúdio poderia fazer algo do tipo, para não perder o dinheiro do mercado alemão.
A parceria de Hollywood com os nazistas contribuiu, de certa forma, com a perseguição aos judeus. Em 1933, os judeus que trabalhavam com cinema na Alemanha foram demitidos, e não demorou para que o governo nazista intimasse as companhias americanas com escritórios no país a fazer o mesmo.
Os métodos eram, no mínimo, persuasivos. Um sobrinho de Carl Laemmle, que trabalhava para a Universal em Berlim, passou algumas horas na prisão. Um executivo da Warner teve seu carro roubado e, em seguida, apanhou de capangas.
Os estúdios, então, atenderam aos pedidos do governo alemão. Em 1936, Hitler proibiria oficialmente a participação de judeus no mercado de distribuição de filmes. Vale lembrar: a maioria dos fundadores das companhias de Hollywood eram imigrantes judeus: William Fox (Fox), Louis B. Mayer (MGM), Jack e Harry Warner (Warner Bros), Adolph Zukor (Paramount).
Mesmo assim, a representação dos judeus começou a sumir também nas telonas. O protagonista de Paixão do Dinheiro, do estúdio RKO, seria originalmente um homem de negócios judeu – o que foi alterado. Em outro exemplo, a Twentieth Century cortou personagens judeus do filme Alma sem Pudor. Simplesmente para garantir a exportação das produções para a Alemanha. Àquela altura, o país já tinha voltado a ser um grande mercado – era o terceiro do planeta, atrás do Reino Unido e da França.
Talvez o caso mais emblemático seja de Emile Zola. Sucesso de público e crítica da Warner, conta a história real do capitão francês Albert Dreyfus, acusado de traição apenas por ser judeu. Uma ótima oportunidade para discutir antissemitismo, certo? Só tem um detalhe: a palavra “judeu” não é dita uma única vez. Gyssling revisou o roteiro e as eliminou. Ela só aparece num breve momento, de relance, escrita em uma folha de papel.
O namoro estava firme. Em 1937, a Paramount escolheu como gerente de sua filial alemã um membro do Partido Nazista. No ano seguinte, a Fox enviou uma carta ao escritório de Hitler, pedindo que o führer expressasse sua opinião sobre o cinema americano. Na despedida, escreveram: “Heil Hitler!”
Em 1938, as coisas começaram a mudar de figura. A perseguição dos nazistas aos judeus atingiu outro patamar. Na chamada Noite dos Cristais, em novembro, milhares de lojas e casas de famílias judaicas foram destruídas. Dias depois, um jornal panfletário de Goebbels declarou que “um terço dos artistas de Hollywood era judeu”.
Na mesma época, o Ministério da Propaganda liberou uma lista com mais de 60 personalidades do cinema americano. E afirmou: se alguma delas tivesse um papel importante em determinado filme, a produção não entraria em solo alemão.
A paranoia nazista aumentou drasticamente. A marcação ficou tão cerrada que, a partir de 1938, só três estúdios haviam sobrado por lá: MGM, Paramount e Twentieth Century-Fox. Em 1939, os censores permitiram apenas 20 filmes de Hollywood nos cinemas alemães.
A Segunda Guerra começou em setembro daquele ano, com a invasão nazista à Polônia. Os EUA ainda não tinham entrado no conflito. Mas a relação entre Hollywood e o governo alemão minguou de vez. Foi aí que os projetos de filmes antinazistas, antes rejeitados de prontidão pelos estúdios, começavam a surgir.
O primeiro deles foi Confissões de um Espião Nazista, da Warner. A produção foi envolta em segredos, com medo de que o roteiro vazasse. O filme estreou naquele mesmo ano. Agora, as portas estavam abertas, e quem aproveitou foi um dos donos da United Artists: Charles Chaplin. Em 1940, o gênio lançou seu O Grande Ditador.
O filme tira sarro abertamente de Hitler, retratado (muito justamente) como um imbecil megalomaníaco, e traz um grande, belo, discurso antifascista no final. Foi um sucesso estrondoso – que segue firme nas listas de melhores filmes de todos os tempos. Mas ele quase não aconteceu.
Ameaçado por nazistas desde o anúncio da produção, Chaplin pensou em desistir de levar o projeto adiante. Mesmo décadas depois, em sua autobiografia, o cineasta afirmou que, caso soubesse sobre os campos de concentração e toda a verdade da perseguição aos judeus, provavelmente não conseguiria fazer piada com a loucura nazista.
Mas o filme saiu, e se tornou a maior bilheteria de Chaplin – ainda que proibido não só na Alemanha, mas também na França, já ocupada por Hitler.
Em 1941, quando os EUA entraram na Segunda Guerra, Gyssling foi deportado. “Os estúdios poderiam ter alertado o mundo para a ameaça do nazismo?”, questiona o crítico de cinema americano David Denby, em uma reportagem sobre o tema. “É difícil dizer. Ainda assim, teria sido bom se eles tivessem tentado.”
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